versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622
Epidemiol. Serv. Saúde vol.25 no.1 Brasília jan./mar. 2016
http://dx.doi.org/10.5123/s1679-49742016000100019
to describe the perceptions and attitudes of dentists working in Primary Healthcare Units in the face of family violence in 24 municipalities in the interior of São Paulo state, Brazil.
this is a descriptive study conducted between July 2013 and July 2014; the study population was comprised of 294 professionals; data were collected through a questionnaire containing objective and subjective questions.
111 dentists took part (37.8%), 67.5% of whom were unaware of existing legislation on cases of violence; 70.0% did not know how to report the occurrence of cases; 55.0% reported not having any responsibility for notification; 85.0% were unaware of the notification form; and 60.0% said they should intervene in cases of family violence.
the perceptions and attitudes of dentists have shortcomings in relation to notification of family violence and this hinders early diagnosis of the victims of such violence.
Key words: Domestic Violence; Epidemiology, Descriptive; Dentists; Forensic Dentistry; Domestic Violence
describir la percepción y actitud frente a la violencia intrafamiliar entre cirujanos-dentistas que actúan en las unidades básicas de salud de 24 municipios del interior de São Paulo, Brasil
estudio descriptivo realizado entre julio de 2013 y julio de 2014. La población de estudio estuvo compuesta de 294 profesionales; los datos fueron recolectados a través de un cuestionario con preguntas objetivas y subjetivas.
111 dentistas aceptaron participar (37,8%) de los cuales 67,5% desconocía la legislación vigente para los casos de violencia; 70,0% no sabía reportar la presencia de casos; 55,0% manifestaron no tener ninguna responsabilidad sobre la notificación; 85% no conocían el formulario de notificación; 60,0% consideraba una necesidad intervenir sobre la violencia doméstica.
la percepción y actitud de los dentistas son fallas en relación a la notificación de violencia familiar, lo que dificulta el diagnóstico precoz de las víctimas de violencia.
Palabras-clave: Violencia Doméstica; Epidemiología Descriptiva; Odontólogos; Odontología Forense; Violencia Doméstica
Os episódios de acidentes e violências passaram a ser foco de atenção da Saúde após ocupar lugar de destaque nas ocorrências de morbimortalidade na população brasileira:1 em 2009, esses agravos representavam a terceira causa de morte na população geral e a primeira na população de 1 a 39 anos de idade.2 Um levantamento realizado pelo Ministério da Saúde apontou que nos anos de 2009 e 2010, foram realizadas 113.643 notificações de casos de violência, 21.199 delas relacionadas a crianças de zero a 9 anos, 29.502 entre adolescentes de 10 a 19 anos, 57.372 em adultos de 20 a 59 anos e 5.568 em idosos (a partir de 60 anos), além de dois casos cuja idade não foi informada.2
Nas regiões interioranas, diferentemente das capitais e regiões metropolitanas, carece-se de mais dados e informações disponíveis e por conseguinte, de estudos sobre situações de violência vividas nas localidades mais distantes dos grandes centros urbanos.3
A principal forma de atuação do profissional de saúde face à violência intrafamiliar é a notificação dos casos suspeitos ou confirmados, dando início ao processo de assistência às vítimas.4 Os profissionais da Saúde, quando se encontram diante de uma suspeita ou da constatação de violência intrafamiliar em um paciente, no dia-a-dia de trabalho, têm a obrigação legal e moral de identificar e notificar o caso. Trata-se de um dever civil implícito nos Códigos de Ética das diversas profissões de saúde.4,5
O artigo 245 da Lei no 8069, de 13 de junho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - define que, em casos de negligência e abuso infantil, o cirurgião-dentista tem a obrigação de informar essas situações. Se o profissional não efetuar a notificação, estará sujeito a penalidade de multa no valor de três a 20 salários de referência, aplicada em dobro se houver reincidência.6
Outrossim, conforme o artigo 57 do Estatuto do Idoso, qualquer profissional de saúde ou responsável por estabelecimento de saúde ou instituição de longa permanência que deixar de comunicar à autoridade competente um caso suspeito ou identificado por ele como de violência contra idosos também terá de pagar uma multa, que pode variar de R$500,00 a R$3.000,00 reais.7
Em defesa das mulheres, foi implantada a Lei no 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), com o intuito de protege-las da violência doméstica. Esta, se confirmada, implica penalidade de três meses a três anos de detenção do agressor.8
Para que façam a notificação, os cirurgiões-dentistas devem ser capazes de diagnosticar essas situações, conhecer os aspectos legais de sua obrigatoriedade, bem como as políticas públicas de saúde adotadas no país, seu estado e município de atuação. Seu empenho nesse sentido pode contribuir significativamente para a redução do problema.4
O cirurgião-dentista vinculado ao serviço público e, como outros trabalhadores da Saúde, na qualidade de corresponsável pelo processo de redução e prevenção das causas externas - nas quais se enquadram os atos de violência -, é o profissional mais indicado a fazer o diagnóstico primário das lesões físicas atribuídas à violência contra pessoas por ele atendidas: a maioria dessas lesões encontra-se na cabeça e pescoço, área de domínio desse profissional.9
Entretanto, muitas dessas lesões podem passar despercebidas pelos cirurgiões-dentistas durante a anamnese, simplesmente porque não estão adequadamente capacitados para as identificar essas injúrias físicas indicadoras de violência.10
O objetivo deste estudo foi justamente descrever a percepção e a atitude do cirurgião-dentista, atuante nas unidades básicas de saúde (UBS) de 24 municípios do interior do estado de São Paulo, diante de possíveis casos de violência intrafamiliar.
Foi realizado um estudo descritivo com cirurgiões-dentistas lotados nas UBS de 24 cidades do interior de São Paulo, Brasil, sobre dados coletados no período de julho de 2013 a julho de 2014.
Os municípios selecionados, escolhidos por conveniência da pesquisa, pertencem aos seguintes Departamentos Regionais de Saúde (DRS) de São Paulo:
DRS de Araçatuba (DRS II), do qual foram selecionadas dez cidades:
- Auriflama - 14.202 hab.
- Bento de Abreu - 2.674 hab.
- Bilac - 7.048 hab.
- Guararapes - 30.597 hab.
- Guzolândia - 4.754 hab.
- Nova Castilho - 1.125 hab.
- Nova Luzitânia - 3.441 hab.
- Rubiácea - 2.729 hab.
- Santo Antônio do Aracanguá - 7.626 hab.
- Valparaíso - 22.576 hab.
DRS de São José de Rio Preto (DRS XV), com nove cidades selecionadas:
- Catanduva - 112.820 hab.
- Elisiário - 3.120 hab.
- Guapiaçú - 17.869 hab.
- Ibirá - 10.896 hab.
- Mirassol - 53.792 hab.
- Novais - 4.592 hab.
- Onda Verde - 3.884 hab.
- Palmares Paulista - 10.934 hab.
- São José do Rio Preto - 408.258 hab.
DRS de Campinas (DRS VII), com uma cidade selecionada:
- Jundiaí - 370.126 hab.
DRS de Bauru (DRS VI), com uma cidade selecionada:
- Torrinha - 9.330 hab.
DRS de São João da Boa Vista (DRS XIV), com uma cidade selecionada:
- Caconde - 18.538 hab. e
DRS de Marília (DRS IX), com duas cidades selecionadas:
- Vera Cruz - 10.769 hab.
- Paraguaçu Paulista - 42.278 hab.
Foram incluídos no estudo todos os cirurgiões-dentistas em atividade nas UBS desses municípios. O instrumento de coleta de dados constituiu-se de um questionário elaborado especialmente para a pesquisa, previamente testado (em abril de 2013) com dez cirurgiões-dentistas da rede pública - sete mulheres e três homens, na faixa etária de 28 a 38 anos. O questionário, semiestruturado, foi composto por 16 perguntas subjetivas e 14 objetivas, dirigidas apenas aos cirurgiões-dentistas das UBS dos municípios selecionados. Para os profissionais que não puderam responder o questionário no momento da primeira entrevista, foi agendada uma nova visita.
As variáveis estudadas foram: (i) sexo, (ii) idade e (iii) responsabilidade e conhecimento sobre a Legislação e a ficha de notificação, esta agrupada na categoria de análise definida para esta pesquisa: a percepção e atitude do cirurgião-dentista diante da violência, deduzida a partir de sua resposta às variáveis 'Atitude tomada perante a suspeita ou confirmação de caso de violência intrafamiliar' e 'Possíveis melhorias a propor para o setor Saúde diante de casos de pessoas maltratadas', no sentido de prevenir, atender e orientar cidadãos em geral, especialmente crianças, mulheres e idosos vítimas ou suspeitos de sofrer esse tipo de violência.
Os dados foram analisados com auxílio do software estatístico Epi Info versão 3.5.1, para verificação da frequência das respostas.
O projeto da pesquisa foi submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Odontologia de Araçatuba (FOA-UNESP), sendo aprovado via Processo n° 00645/2010. O consentimento dos cirurgiões-dentistas foi solicitado e obtido antes do início da coleta de dados, após o esclarecimento dos objetivos do estudo.
Do total de 294 cirurgiões-dentistas lotados nas UBS sob análise, no momento da coleta de dados, 111 responderam o questionário (37,8%) e 34% recusaram-no; 28,2% foram considerados perdas pelo estudo, seja por não estarem presentes no momento da entrevista, seja por se encontrarem em período de férias ou sob licença do serviço. Entre os respondentes, predominaram mulheres (56,0%) e indivíduos com idade até 45 anos (63,0%) (Tabela 1).
Quando questionados sobre sua responsabilidade em notificar casos de violência, 55,0% relataram não ter dever algum com o procedimento, enquanto 45% afirmaram-se responsáveis pela notificação.
Contudo, apenas 26,0% dos cirurgiões-dentistas notificaram os casos de violência quando diagnosticados por eles. Grande parte dos entrevistados - 74,0% - afirmou não saber como notificar um caso de violência intrafamiliar. A maioria (67,5%) dos respondentes declarou desconhecer a legislação existente para casos de violência, 28,0% afirmaram conhecer as leis sobre a obrigatoriedade dessa notificação e 4,5% não souberam responder à questão. Sobre o que significa a notificação compulsória, 70,0% desconheciam o assunto.
Sobre a ficha de notificação, 85,0% ignoravam a existência do documento.
Quando questionados sobre sua reação frente a uma situação de violência, 60,0% afirmaram que se sentiam no dever de tomar alguma atitude, 30,0% relataram que não tomariam nenhuma atitude e 10,0% não souberam responder à questão. Entre os que se propunham a agir de alguma forma, apenas 24 cirurgiões-dentistas relataram que notificariam o caso aos órgãos responsáveis, 21 orientariam as vítimas a procurar ajuda e 12 buscariam mais informações sobre as providências cabíveis e legais possíveis de serem tomadas (Tabela 2).
Sobre o que poderia ser feito para melhorar o setor Saúde no sentido de torná-lo mais apto a lidar com casos de pessoas maltratadas - salvo os que não justificaram uma resposta à questão (34,0%), a maioria indicou a preparação da equipe profissional (32,4%) (Tabela 3).
Os profissionais apresentaram dificuldades em relação à notificação dos casos de violência intrafamiliar, devido à falta de conhecimento sobre a legislação em vigor e sobre o papel civil do cirurgião-dentista diante desses casos.
A violência intrafamiliar tornou-se um problema de Saúde Pública de âmbito mundial.11 Os cirurgiões-dentistas, aparentemente, estão entre os profissionais que menos se envolvem com a detecção da violência intrafamiliar, muitas vezes por receio e/ou falta de capacitação,11-13 conforme observou este estudo. De fato, a maioria desses profissionais não se sente responsável pela notificação dos casos. Segundo Sales-Peres e colaboradores,13 além do dever jurídico, existe o contundente dever moral do profissional de saúde enquanto corresponsável pelos avanços e melhorias da sociedade, da saúde à qualidade de vida da população.
A maioria dos cirurgiões-dentistas desconhece a legislação e não sabe da relevância ou o significado de uma notificação compulsória para identificação de uma situação epidemiológica. É possível que, dado o desconhecimento sobre como proceder e sentindo-se despreparados, parcela significativa desses profissionais se omita da notificação ou qualquer reponsabilidade no encaminhamento de um caso de violência. Entretanto, é dever de todo profissional de saúde a comunicação dos casos de violência intrafamiliar por eles atendidos aos órgãos competentes locais, sem prejuízo de outras medidas legais cabíveis.5,13,14
De fato, a notificação é muitas vezes negligenciada, embora o procedimento seja uma estratégia importante para a prevenção da violência.4 Em 2011, o custo da violência no país foi estimado em R$207,2 bilhões, 5% do PIB (produto interno bruto) nacional. Segundo cálculo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), para cada dólar gasto em prevenção, economiza-se de seis a sete vezes os recursos investidos em repressão policial à violência.15 O custo dessa prevenção, seja em recursos humanos, seja em financeiros, é tão significativo que mesmo intervenções marginalmente eficazes resultam rentáveis.16
Segundo Tornavoi e cols.,11 a primeira atitude a ser tomada pelos profissionais, em relação às suspeitas de violência, é o encaminhamento aos órgãos competentes. O estudo em tela encontrou que a maioria dos cirurgiões-dentistas teria essa atitude, diante de uma situação de violência.
A ausência ou insuficiência de uma capacitação profissional para identificar e notificar casos de violência familiar decorre da falta de definição de uma conduta-padrão, uma postura mais adequada frente a esses incidentes. Quanto maior o conhecimento sobre os casos de maus-tratos, mais eficiente mostra-se o combate à violência intrafamiliar,10,17-19 e os profissionais de saúde podem contribuir nesse sentido facilitando a divulgação, oferecendo apoio e encaminhamento, serviço médico adequado e cuidados de acompanhamento às vítimas.20
Nesse sentido, Gomes e cols.21 e Carvalho e cols.22 constataram um despreparo desses profissionais, que se atêm a cuidar apenas das lesões físicas e se esquecem das situações de violência vivenciadas pelas vítimas em seu lar. Um dos achados do presente trabalho foi o fato de a maioria dos entrevistados que responderam à solicitação de sugestões para a solução do problema, considerarem que a preparação da equipe profissional melhoraria o atendimento dos casos de violência intrafamiliar pelo setor Saúde. Cabe à Saúde e à instituição Universidade desenvolverem estratégias capazes de contribuir para a redução dos casos de violência intrafamiliar, em que o cirurgião-dentista assumisse seu protagonismo de profissional mais indicado para o diagnóstico de casos de violência. A parceria multidisciplinar ainda é a forma mais eficaz de abordar o problema, nos níveis operacional e estratégico, assegurando que os profissionais sejam treinados para agir com eficiência perante a violência doméstica.16
A elevada proporção de perdas e recusas foi a principal limitação encontrada para a consecução deste estudo, haja vista alguns cirurgiões-dentistas se recusarem a responder o questionário, e outros não se encontrarem na unidade de saúde no momento da coleta, por motivo de férias ou licença. Não obstante, tendo os entrevistadores voltado várias vezes à UBS, os mesmos profissionais antes não encontrados, então presentes, recusaram-se a participar da pesquisa. Ademais, é possível que as pessoas de acordo em participar tenham maior conhecimento ou experiência/capacidade de resposta a esses casos - de modo que a falta desse conhecimento e a omissão sobre essas ocorrências, entre os profissionais da odontologia, possam ser ainda mais frequentes.
Embora os resultados não possam ser generalizados a toda a população de cirurgiões-dentistas da área de estudo, constataram-se falhas de percepção e atitude dos cirurgiões-dentistas em relação à notificação da violência intrafamiliar: a maioria dos cirurgiões-dentistas não sabe como informar as ocorrências dos casos, dificultando o diagnóstico precoce, em seu ambiente de trabalho, das vítimas de violência.
Os trabalhadores das unidades básicas de saúde têm por dever de respeito à Lei notificar a violência intrafamiliar. Porém, os resultados apresentados mostraram que isso não ocorre. Sugere-se medidas de apoio às políticas existentes, para que os cirurgiões-dentistas e outros profissionais de saúde, quando comunicarem a suspeita ou diagnóstico de violência aos órgãos competentes de maneira oportuna, tenham o devido respaldo legal da UBS e não sejam apontados como únicos responsáveis pela delação dos casos, preservando sua segurança pessoal e uma saudável relação paciente-profissional.