versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.4 Rio de Janeiro abr. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017224.26982016
O Contrato Organizativo da Ação Pública da Saúde (COAP), preconizado pelo Decreto 7.508/20111, trouxe a possibilidade jurídico-legal de uma gestão cooperada2,3 do Sistema Único de Saúde (SUS), fortalecendo a lógica do sanitarismo federalista brasileiro4,5.
Constitui-se como instrumento de caráter plurilateral, com responsabilidades, competências e acordos sanitários entre os entes federados, definidos em planejamento integrado das ações e serviços de saúde, nas Regiões de Saúde (RS), expressando processos e fluxos de organização e funcionamento do Sistema, compromissos e metas das esferas de gestão do SUS quanto à garantia do direito à saúde1.
A aplicabilidade do COAP ao âmbito regional possibilitou a instrumentalização dos entes federados na gestão da RS, cuja territorialidade não dispõe de conformação governamental correspondente no federalismo brasileiro. Entre os gestores do SUS, é destacada a indefinição de papéis quanto à esfera responsável pela garantia do acesso à serviços de maior densidade tecnológica na Região6. Alguns autores7,8 problematizam a ausência de uma autoridade sanitária regional, debatendo sobre qual institucionalidade deveria assumir a gestão de equipamentos regionais. Outros5, indicam possibilidades de superação deste limite em modelos de gestão regional, atrelando a eles o COAP.
A proposição do COAP põe em discussão a exigência de atualização do Pacto Federativo em torno da saúde, sob o exercício de uma gestão trina cooperada e regionalizada, em abertura às necessidades e dinâmicas locorregionais. A efetivação de acordos intergovernamentais impõe-se como estratégico à integralidade em saúde, dada a interdependência municipal e a complementariedade em rede de serviços3,9,10.
No cenário nacional, o COAP foi implantado no Mato Grosso do Sul e no Ceará, perfazendo 6% das Regiões estruturadas no país. No Ceará, a adesão ao COAP foi de 100% de suas Regiões, destacando-o como solo fértil para estudos que problematizam e analisam a regionalização da saúde em diálogo com a instituição do COAP, no contexto do federalismo brasileiro. A regionalização da saúde no Ceará está em processualidade desde meados de 1990 até os dias atuais, situando-o como um estado de forte tradição na descentralização do SUS11.
Nessa perspectiva, este artigo objetiva compreender as percepções de gestores estaduais da saúde do Ceará sobre a implantação do COAP no Estado, analisando suas implicações na regionalização e na produção do direito à saúde, em diálogo com o federalismo brasileiro. Considera-se que o desenho de novos campos de visibilidade e dizibilidade da regionalização da saúde, à luz do COAP, é potente à discussão de pistas de como prosseguir na regionalização da saúde e produção do SUS constitucional.
Trata-se de um estudo qualitativo, desenvolvido de 2013 a junho de 2015, que adotou como cenário o Ceará constituído por cinco Macrorregiões de Saúde e 22 RS, das quais 20 assinaram o COAP em 2012 e as demais em 2014. A produção das informações se deu por análise documental dos COAP, além de entrevistas abertas12 com gestores estaduais de saúde, sendo 5 do nível central da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (SESA) e 18 representantes das suas Coordenadorias Regionais de Saúde (CRES). Todos os entrevistados foram informados sobre os objetivos da pesquisa e convidados a assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Garantiu-se o sigilo e o anonimato dos envolvidos.
A escolha dos gestores estaduais de saúde, como sujeitos participantes do estudo, considerou que a construção do COAP foi coordenada pela SESA, tendo as CRES como instâncias descentralizadas de comando, articulação e execução desse processo nas RS. Para inclusão dos sujeitos no estudo, adotou-se como critérios: sua participação e articulação direta na produção do COAP; suas funções exercidas na SESA, tanto no nível central como nas CRES, considerando que tais funções ampliavam ou não suas responsabilidades de produção do COAP; sua vinculação com o processo de regionalização da saúde do Ceará. Em relação aos gestores de saúde das CRES, acresceu-se o critério de inclusão dos que atuavam em uma das Regionais de Saúde, de modo a contemplar a representação de todas as macrorregiões do estado: Fortaleza, Sobral, Litoral Leste/Jaguaribe, Sertão Central e Cariri.
Uma das potências da abordagem qualitativa é o desvelamento compreensivo e interpretativo da experiência vivida12. Nesse sentido, foi pedido ao entrevistado a abordagem de sua trajetória profissional, traçando os caminhos percorridos até chegar à sua posição atual. A questão norteadora indagou sobre a regionalização da saúde e a adesão ao COAP, possibilitando ao entrevistado discorrer sobre o tema segundo seu olhar e experiência construída.
As entrevistas foram gravadas e transcritas, constituindo os textos narrativos da pesquisa, sendo destacados nos Resultados como Entrevistado 1 (E1) e assim sucessivamente. Não houve a identificação do nível, central ou regional, ocupado pelo entrevistado, considerando a condição de ambos como gestores estaduais de saúde.
Adotou-se para análise o método hermenêutico por considerá-lo adequado à abordagem qualitativa, à compreensão e à interpretação de fenômenos contextualizados na realidade e materializados na comunicação em seu núcleo central que é a linguagem, no caso, transcrita em texto12,13. A interpretação comporta uma multiplicidade de sentidos, articulada pela distanciação e apropriação. Pela distanciação, a palavra escrita ganha autonomia em relação às intenções de seu autor, objetivando-se para o exercício da interpretação, enquanto que pela apropriação, o leitor, uma vez distanciado das intenções do autor, apropria-se da “coisa do texto”, compreendendo não só o texto como também a si mesmo13.
A análise das informações qualitativas se deu por meio da leitura das entrevistas em texto e narrativas documentais, permitindo a impregnação pelo sentido do todo desse conjunto, possibilitando o exercício explicativo, compreensivo e interpretativo de forma profunda e contextualizada, conforme recomenda a hermenêutica12,13.
O que se encarna, então, neste artigo, é a tecitura das conexões entre as coisas e os atos realizados na implantação do COAP e suas implicações, segundo as percepções de gestores estaduais de saúde, em diálogo com a regionalização e o federalismo brasileiro. Entre as dimensões trabalhadas, possibilitadas pela compreensão do texto analisado, destacam-se: governança regional; organização e funcionamento das redes de atenção à saúde e regulação assistencial.
Este artigo é um dos produtos vinculado à Pesquisa ‘Modelo de Governança, Regionalização e Redes de Atenção à Saúde no Estado do Ceará: Contexto, Condicionantes, Implementação e Resultados’, do Programa de Pesquisa para o SUS. Foi financiado pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP) e aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal do Ceará.
A adesão ao COAP, pelo estado do Ceará, foi uma decisão política que contou com a participação direta do ministro da saúde, do governador e dos prefeitos municipais, via Associação dos Prefeitos do Estado do Ceará (APRECE) e dos secretários municipais de saúde, por meio do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde (COSEMS). Para dar conta dessa decisão política, no ano de 2012, a prioridade de todas as ações da Secretária de Saúde, como demanda para as regionais (referindo às CRES), seria a construção dessa agenda do COAP (E2), conferindo aos coordenadores e suas equipes o exercício de funções políticas e técnicas no âmbito da RS.
Dois mil e doze foi um ano eleitoral, potencializando no calendário do COAP o atropelamento do tempo técnico pelo tempo político (E1). Entre os gestores, foi recorrente o sentido de que o COAP tinha aqui uma data X para a gente finalizar e aquela data X era menos de um ano (E15), configurando o sentido de vamos fazer porque o momento político é este, se não fizermos agora talvez não consigamos fazer amanhã, então, vamos fazer e depois a gente faz um aditivo e ajusta o que precisar (E14).
A supremacia do momento político sobre o momento técnico gerou problemas centrais ao COAP no tocante a sua dimensão organizativa. O primeiro referiu-se à manutenção e ao uso da Programação Pactuada e Integrada (PPI) em curso. Uma PPI que a gente tinha que reformular, tinha que fazer algumas alterações e não tinha dinheiro novo [...] e aí os municípios só alteraram poucas coisas (E8). Manteve-se a lógica da programação de procedimentos e capacidade de oferta irreal, substituindo o preconizado pelo Decreto 7.508, que era a utilização da Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (RENASES).
Outro problema, em diálogo com o primeiro, foi a falta de atualização do Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde (CNES). A impossibilidade de execução desses dois pilares básicos dificultou a identificação real dos vazios assistenciais e da capacidade de oferta do Sistema. E isso, mesmo com a utilização do Mapa da Saúde, que está muito longe de fornecer a análise, definida lá no Decreto do COAP como sendo uma análise da capacidade instalada dinâmica e essa análise envolve o conhecimento de rede privada e pública e esse conhecimento não está disponível (E14). Em consequência, o Sistema, mesmo regionalizado, não teria como dar vazão aos fluxos assistenciais programados e, muito menos, a operar sob a lógica das necessidades em saúde da população.
Apesar dos atropelos do tempo técnico pelo tempo político, a produção do COAP foi assegurada mediante a coesão político-técnica constituída no contexto de regionalização da saúde no estado. Coesão essa garantida por um quadro profissional estável da SESA, operando a regionalização desde meados de 1990, tanto no âmbito central como nas CRES. Especialmente, nas gestões de 2007 a 2014, sob a condução direta do governador nas pautas da saúde, além dos prefeitos municipais.
Entretanto, a coesão político-técnica não foi identificada em relação ao Ministério da Saúde. Segundo as narrativas, a condução do processo teria sido dada pela Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde (SGEP). As demais Secretarias ministeriais teriam se engajado mais tardiamente (E1), dificultando a produção do documento-contrato como o enfrentamento cooperado trino de problemas estruturais do SUS, apontados na sequência.
A elaboração do COAP constituiu-se, assim, como um intenso e complexo processo coordenado pelos gestores estaduais de saúde, sob o reconhecimento de que a gente passou muito tempo estagnada e aí de repente vem a construção das redes de atenção, vem o COAP e dá uma reviravolta no SUS [...] porque estava avançando muito devagar (E9). O COAP se fez em “aprendizado tecido à luz de noites e noites de trabalho (E6). Uma vez finalizados, continham, em média, mais de 300 páginas, chegando até a 500 páginas, ou mais. Mas quais as implicações do COAP na produção da regionalização da saúde?
O COAP foi considerado um avanço em relação ao Pacto pela Saúde, destacando a positividade da responsabilização federativa trina pelo direito à saúde. Entretanto, a assunção cooperada das metas regionais soam, ainda, como desafio, em submissão aos interesses de cada ente federado e aos recursos financeiros insuficientes para dar conta do atendimento referenciado.
Diferentemente do Pacto pela Saúde, o COAP é reconhecido como um instrumento norteador no planejamento regional, em que a gente não está mais somente pactuando indicadores, está propondo ações, está propondo investimentos, está propondo outras situações, por isso que ele é um norte (E11). Acresce-se a isso o exercício do monitoramento e a avaliação, requerido pelo COAP para a (re)atualização dos pactos, metas e processos, dada sua natureza contratual. Segundo as narrativas, o COAP não estaria sendo igual ao Pacto pela Saúde, no qual muitas vezes você tinha aquele termo de compromisso que os prefeitos assinavam (Termo de Compromisso de Gestão), mas eles não tinham, eles assinavam e colocavam na gaveta (E18).
A transparência orçamentária dos recursos financeiros disponibilizados para a saúde foi outro aspecto ressaltado. Por outro lado, o registro das previsões orçamentário-financeiras não implicou, em alguns municípios, no manuseio autônomo da ‘caixa preta’ do orçamento e financiamento da saúde, mostrando-se como uma área, ainda, de não domínio por parte dos secretários, desfavorecendo o desenrolar do que foi planejado.
Entre as narrativas mais consensuais, houve o indicativo de fortalecimento institucional da Comissão Intergestores Regional (CIR) para discussão e negociação federativa. O COAP, em 2012, foi uma das suas principais pautas, tendo acontecido nesse espaço as pactuações para sua elaboração e implementação posterior. Houve, também, uma maior institucionalidade das suas Câmaras Técnicas, destacando-se a implantação de Câmaras de Auditoria e de Assistência Farmacêutica em algumas Regiões. Tratam-se de áreas estimuladas pelo COAP, seja em sua Parte 4, de Monitoramento, Avaliação de Desempenho e Auditoria ou nas metas relacionadas à Diretriz da Assistência Farmacêutica com a implantação do Sistema Nacional de Gestão da Assistência Farmacêutica – HÓRUS.
Foram registrados avanços organizacionais relacionados à implantação de Ouvidorias e HÓRUS municipais, além do registro da informação sobre a força de trabalho existente na rede, que possibilitou o conhecimento sobre quantos trabalhadores do estado nós tínhamos dentro das Regiões (E3), até então invisível no Sistema.
O estudo destacou a instituição dos Fóruns Regionais de Conselheiros, os quais permanecem em realização. Os Fóruns abrigaram discussões entre os conselheiros de saúde e gestores municipais e estaduais de sua respectiva Região, apontando para um grande avanço, depois do Decreto 7.508, porque até então, eu não tinha tido experiência de discussões nos Fóruns Regionais de Conselheiros Municipais de saúde sobre mapa da saúde, sobre as doenças da região e não só daquele município, sobre o COAP (E19). Mas, reiterou, também, a lacuna existente de uma instância de deliberação no âmbito regional e apontou a qualificação da participação dos conselheiros como um desafio na gestão do SUS e no exercício do controle social.
O funcionamento do sistema em rede, a regulação assistencial, o financiamento e a educação permanente em saúde destacaram-se como os grandes desafios do Sistema e da implementação do COAP.
Conforme narrativa, a noção de regionalização, a gente aprende quando já está em um nível de coordenação (E9), limitando-se, portanto, mais ao exercício dos gestores, em que o profissional que está lá na ponta ele não tem muita noção disso. Ele está preocupado ali, com o território que ele trabalha e para ele ter conhecimento de onde ele vai referenciar, para quem ele vai referenciar, fica muito no âmbito do município, passou daí o problema é da Secretaria de Saúde (E9).
O distanciamento entre o planejado e o executado foi perceptível, apontando a perspectiva de que o problema não se centra no desenho da rede ou em sua concepção, mas no fazer depois, condicionado ao cumprimento das pactuações intermunicipais, à regulação e ao apoio logístico, além do necessário entendimento por parte dos profissionais que integram a rede.
A educação permanente em saúde foi explicitada como necessária para que todos tenham uma informação, que a gente chama base, para você garantir a comunicação horizontal e a formação das equipes multiprofissionais [...] porque a conduta ela tem que ser na totalidade da unidade (E1). Foi indicado, assim, que a organização e o funcionamento em rede requerem mais do que a planificação do desenho assistencial em si pela gestão. A resolutividade das redes temáticas inclui, também, o conhecimento e a prática específicos e especializados.
A regulação assistencial surgiu como outro grande desafio na regionalização, nos marcos de implementação do COAP e das Redes Temáticas, apontando para uma porta da informalidade muito mais efetiva no acesso do que a porta oficial e, assim, denotando a fragilidade real do papel regulador do Estado, uma fragilidade muito presente no Pacto, e ao longo desse processo, quando do Decreto 7.508 (E1).
Outro desafio posto, todos os secretários que pactuaram o COAP vão dizer a mesma coisa [...] o problema é financiamento (E10). A adesão ao COAP não trouxe novos recursos. A possibilidade de captura de novos recursos estava na organização das redes temáticas, mas, mesmo assim, com dificuldades.
No financiamento, outras questões surgiram (re)visitando pautas antigas como a revisão da Tabela SUS, em que a totalidade de procedimentos pactuados em PPI não tem como ser cumprida dada a defasagem de valor em relação ao praticado no mercado. Neste cenário, o estudou reiterou o já posto: como é que eu vou estar responsável por uma outra população, se eu não tenho como oferecer o serviço e meu financiamento continua o mesmo? (E9).
O sentido e a materialidade da governança devem ser compreendidos e forjados em meio à capacidade dos atores integrantes da política de construir um quadro institucional estável que favoreça: i) a participação e a negociação de uma ampla gama de atores; ii) a administração de conflitos e o estabelecimento de relações cooperativas entre atores (governos, organizações e cidadãos); iii) o estabelecimento de uma ação coordenada, direção ou rumo voltado para a consecução de metas e objetivos definidos e acordados11.
Impõe-se, desse modo, a atenção sobre as conexões entre Estado, Sociedade e Mercado, em suas diferentes representações, estabelecendo a “governança como a ação de governar, incluindo o exercício de poder e a condução da política pública, em um processo que envolve relações entre múltiplos atores em contextos institucionais específicos”14. Perspectiva reiterada por Andrade15, em que a governança requer “mecanismos informais de caráter não governamental”.
Entretanto, a regionalização da saúde no Brasil tem se constituído mediante a institucionalização de uma governança que privilegia a participação e o diálogo entre os gestores federados do SUS. Entre outros aspectos, isso pode estar contribuindo para fragilizar a articulação do Sistema em rede, considerando a complexidade da produção da saúde e da prestação de serviços por uma multiplicidade de instituições e sujeitos, governamentais e não governamentais, públicos e privados.
No Ceará, marcadores políticos, tecidos ao longo da regionalização da saúde no estado, esboçam uma governança regional com centralidade nos propósitos e atuação governamentais, não tendo o movimento de adesão e produção do COAP se diferenciado deste regime, não por uma escolha local dos seus gestores, mas por um conjunto de normativas que induzem fortemente tal conformação discursiva e prática.
Destacam-se, portanto, marcadores políticos como: i) a participação decisória dos representantes formais dos governos estadual e municipais nas pautas da saúde, incluindo o governador e os prefeitos; ii) a coordenação do processo pela Secretaria Estadual da Saúde; iii) a forte institucionalização das Comissões Intergestores Regionais como espaço de pactuação e relação interfederativa; e, mais recentemente, iv) a constituição de Fóruns Regionais de Conselheiros.
O estudo apontou para o desenho de marcadores políticos que fortalecem uma “governança burocrática hierárquica”, marcada pela “autoridade pública para definir prioridades e fronteiras de direito”8, frente à impotente institucionalidade do Estado na “governança de rede”, potencializando a “governança de mercado” nas relações de produção do SUS, fortalecendo a lógica empresarial.
Coloca-se, então, a urgência em discutir os padrões de governança em curso, fortalecido pelo campo discursivo-prático legal em desenvolvimento no SUS Regional. É preciso ampliar os sujeitos em diálogo e reconhecer a multiplicidade de atores no exercício da política de saúde, adotando, para isso, a governança em produção de “mecanismos – recursos, contratos e acordos – complementares à autoridade e às sanções da esfera pública”8, potencializando seu exercício para auxiliar “na compreensão das múltiplas variáveis e multiníveis de ações que influenciam o desempenho de uma determinada política pública”8.
Nessa perspectiva, os marcadores políticos da governança regional do Ceará requerem reflexões. A participação ativa do governador e dos prefeitos municipais na instituição do COAP configurou uma governança regional do SUS, também alinhavada por acordos políticos ‘externos’ às instâncias de deliberação do Sistema, como os Conselhos de Saúde, e àquelas de pactuação, como às Comissões Intergestores. Outras pesquisas alertam para o fato de que “diversas questões e decisões estratégicas para a política de saúde não passam pela CIT (Comissão Intergestores Tripartite) ou são ali abordadas de forma periférica”16.
No exercício da “governança burocrática hierárquica”, no Ceará, a centralidade para tomada de decisão estava na esfera estadual, à época sob o comando do governador, operacionalizada pela SESA e suas Regionais, que atuaram como atores estratégicos na coordenação e mobilização de prefeitos e secretários municipais de saúde, quando da elaboração do COAP.
Estudos sobre a regionalização da saúde17-19, mesmo com variados enfoques, destacam a importância do papel de coordenação desse processo pela Secretaria Estadual de Saúde e suas respectivas instâncias regionais. Porém, outros autores9 alertam para o desafio decorrente do fato de competir aos gestores estaduais à coordenação da regionalização, considerando que o espaço regional, além de ser desprovido de uma representação política no federalismo brasileiro, é permeado pela maioria de atores e instituições municipais.
Estudo desenvolvido sobre governança regional20 discute a baixa autonomia dos gestores da saúde, em relação ao poder executivo municipal, como uma das barreiras para o fortalecimento das decisões colegiadas. Espera-se que o protagonismo dos prefeitos empodere a representação municipal nas pautas locorregionais, influenciando as relações interfederativas estabelecidas nas CIR.
Nesse sentido, considerou-se potente à regionalização a participação ativa dos prefeitos na agenda do COAP. E, isso, não só pela possibilidade de legitimação dos acordos assistenciais selados, mas, também, pela possibilidade formativa de uma cultura institucional compartilhada e cooperada.
A superação da ‘cultura individualista’, presente na elaboração e desenvolvimento do COAP, não compete apenas aos municípios. Ela é resultante de uma racionalidade federal que acabou produzindo um tipo de municipalismo autárquico por dentro de uma descentralização tutelada e controlada pelo governo central, principalmente pela via do financiamento, desvirtuando o ideal federalista brasileiro centrado na autonomia administrativa, política e cooperada entre os entes federados.
Há, assim, a necessidade do encontro entre o “federalismo formal” e o “federalismo real”2, ou ainda, a superação dos “dilemas relativos ao Pacto Federativo”16. Autores21 destacam que a Constituição Federal de 1988 “não alterou a estrutura vertical de distribuição de autoridade das políticas sociais, herdada do regime militar”.
Nesse sentido, indaga-se como efetivar a autonomia federativa em cooperação, pelo COAP, quando grande parte dos recursos financeiros do SUS estão centralizados na esfera federal? Como operacionalizar o COAP e o funcionamento em rede sem a entrada de novos recursos para a consecução das pactuações intermunicipais?
Conflitos de baixa resolução e governança no âmbito regional, à exemplo do financiamento insuficiente e centralizado na esfera federal, permanecem nas relações federadas. A governança regionalizada pressupõe a democratização efetiva das decisões, não cabendo maiores poderes a nenhuma das esferas de gestão11,16.
Na produção e desenvolvimento do COAP, a CIR foi fortalecida como instância de negociação da organização e funcionamento de serviços regionais. Porém, muitos conflitos relacionados ao atendimento intermunicipal, em pauta na CIR, são de difícil resolução, colocando a rede de atenção como um dos grandes desafios para o desenvolvimento do COAP na regionalização da saúde.
Outro marcador político identificado na produção do COAP, que requer maior investigação, diz respeito ao Fórum Regional de Conselheiros, cujo funcionamento retoma uma questão estratégica da governança regionalizada, que é a participação de representantes vinculados às organizações da sociedade civil, reiterando a necessidade de sua ampliação para além do escopo governamental15.
O desenvolvimento do COAP acabou esbarrando em questões estruturais do Sistema, cujo enfrentamento real foi postergado em atropelamento do tempo técnico pelo tempo político, despontecializando intervenções para a superação da fragmentação das ações e serviços de saúde.
O estudo apontou para a fragilidade na ordenação e coordenação das redes temáticas, pela atenção básica, reforçando a perda de vínculo e responsabilização para com o usuário que requer um atendimento fora do município, comprometendo a perspectiva usuário-centrada e a integração do movimento em rede.
Portanto, é urgente que a formulação e a operacionalização do desenho em rede extrapole o campo da gestão, incluindo os profissionais e os usuários do SUS, para dar vazão e permeabilidade à regionalização em constituição de “redes de conversação”22, em um exercício de microrregulação23, que se faz em produção de “atos vivos de saúde”, permanecendo o desafio de investimento na “micropolítica do trabalho vivo em saúde”24.
Outro aspecto a destacar refere-se a não adoção dos dispositivos que deveriam estar associados ao COAP, como a Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (RENASES) e a Programação Geral de Ações e Serviços de Saúde (PGASS) em substituição à PPI1.
A primeira RENASES, conforme Decreto 7.508, seria a somatória de todas as ações e serviços de saúde já ofertados pelo SUS, diretamente ou não1. Trata-se de uma limitação às necessidades em saúde, considerando que historicamente o produzido não é suficiente para a garantia da atenção integral. Acresce-se a isso, o subfinanciamento da saúde e a desatualização dos valores da Tabela SUS, reiterados como problemas crônicos do SUS, principalmente no atendimento de serviços de média ou alta complexidade20.
O uso da PPI, enquanto instrumento de gestão, tem como escopo a assistência à saúde, de elaboração por ente federado, com abertura programática restrita à Tabela de Procedimentos e com uma lógica de funcionamento do Sistema centrado na oferta de procedimentos, passando ao largo das necessidades em saúde da população e acomodando-se ao limite do teto financeiro existente, portanto, com parâmetros de alocação de recursos e estabelecimento de meta física restritos a este teto.
Já a PGASS aponta, normativamente falando, para a constituição de um modelo de atenção à saúde ao incorporar a vigilância à saúde e a assistência farmacêutica, além da tradicional área assistencial, ultrapassando o escopo de um modelo assistencial. As necessidades devem ser identificadas em coerência com a regionalização e o desenho em rede, quando de sua formação; pressupõe o agrupamento de procedimentos, ampliando a perspectiva do cuidado em saúde que não se restringe ao procedimento, mas a um conjunto de ações e serviços agrupados com vistas à integralidade1.
Outro aspecto diferencial da PGASS refere-se à utilização de parâmetros para definição de metas físicas dissociados da alocação financeira, portanto, sem se restringir ao limite do teto financeiro existente, indicando a possibilidade de tensionamento para o aumento dos recursos financeiros frente às necessidades identificadas.
Nesse sentido, a manutenção do uso da PPI acabou fragilizando, no COAP, a pactuação dos fluxos de atendimento intermunicipal, a organização sistêmica e em rede, além de incapacitar, ainda mais, a efetiva regulação em saúde por parte dos gestores do SUS, conforme indicado nos resultados deste estudo.
A lógica da programação das ações e serviços de saúde, no âmbito regional, restringiu-se a área assistencial e centrou-se, mais uma vez, em uma ‘suboferta’ da capacidade instalada, dado o desconhecimento da capacidade real do setor complementar, reiterando a necessidade de uma regulação em saúde efetiva sobre o setor privado.
Nesse contexto, o cumprimento do direito à saúde integral põe-se refém da porta de informalidade, desnudando as fragilidades dos entes federados frente à responsabilidade de regulação do Sistema, indicando não se ter ainda um Estado regulador forte, necessário ao SUS que preconiza, a título complementar, a contratação da rede privada.
Na regionalização da saúde, o COAP deu visibilidade e dizibilidade à dimensão jurídico-legal em diálogo com a dimensão técnico-política, fortalecendo a governança regional em arranjos institucionais restritos ao governo para ampliar sua capacidade de gestão do SUS. Colocou, assim, em atualização um regime de governança que pode não estar ‘governando’, deixando lacunas para que outros agentes, atuantes no SUS, estejam em relação de poder, dado sua força política e assistencial, determinando regras com implicações na organização e prestação de serviços e na produção constitucional do direito à saúde.
Outros modos de governança regional devem, então, ser aportados. A experiência do Fórum Regional de Conselheiros, embora pautando-se na lógica de governança do Sistema, destaca-se em possibilidade de deslocamento e tecitura de outros sentidos e modos de governar, sendo fundamental novos estudos que aprofundem tal realização.
A atualização de pactos federativos, sob o signo do COAP, fortaleceu a perspectiva da regionalização da saúde nos governos subnacionais, institucionalizando a existência da Região de Saúde. Porém, apontou que não basta a efetivação contratual para fazer valer a colaboração interfederativa e a organização regional. O documento-contrato não é suficiente para isso, principalmente não havendo consenso político-técnico sobre seu uso, como indicou a experiência do Ceará quanto ao engajamento institucional do Ministério da Saúde.
Há, portanto, que se inventar o movimento-processo, que não só (re)visite os desafios do SUS, mas que desencadeie novas processualidades para o seu enfrentamento. Algumas, induzidas pelo COAP, representaram ganhos de desenvolvimento institucional, como a implantação do serviço de Ouvidoria e do Sistema HÓRUS nos municípios; o conhecimento de informações regionalizadas da força de trabalho estadual e a transparência dos recursos orçamentário-financeiros disponibilizados por cada ente federado. Porém, as incipientes institucionalidades do funcionamento em rede e da regulação assistencial permanecem comprometendo a potência conectiva entre Região e Rede, essencial para o enfrentamento da fragmentação das ações e serviços de saúde e garantia da integralidade.
Assim, põem-se em urgência a revisão do federalismo que permanece sendo mais formal do que real. Dos atropelamentos “do tempo técnico pelo político” nas relações de produção do SUS. Do regime de governança, cujas fronteiras são os próprios braços do Estado. Ou, ainda, das condições crônicas de subfinanciamento e mercantilização crescente das relações de produção da saúde e da prestação de serviços.
O aparecimento real de possíveis virtualidades, produzidas no entremeio do enlace entre Região e Redes, estão, ainda, a requerer processualidades do como fazer o funcionamento da rede, a gestão cooperada, a regulação e o financiamento dos serviços regionais. Isso é um desafio posto na conjugação do federalismo brasileiro com a regionalização da saúde.
Conclui-se que o COAP inaugurou uma Regionalização Contratual Interfederativa, positivando a discursividade da regionalização aliada ao federalismo, mas revelando uma baixa institucionalidade no SUS e impotência para a consecução de seus princípios, dado o não enfrentamento de problemas estruturais em cooperação trina.