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Percepções dos discentes de terapia ocupacional sobre a experiência de integração ensino-serviço-comunidade

Percepções dos discentes de terapia ocupacional sobre a experiência de integração ensino-serviço-comunidade

Autores:

Renato da Costa Teixeira,
Roberta de Oliveira Corrêa,
Ester Miranda da Silva

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional

versão On-line ISSN 2526-8910

Cad. Bras. Ter. Ocup. vol.26 no.3 São Carlos jul./set. 2018

http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoao1167

1 Introdução

O processo de trabalho em ações integrais em saúde, quando bem gerenciado, possibilita o compartilhamento das responsabilidades com toda a equipe saúde (VIEGAS; PENNA, 2013), e quando o contexto do trabalho tem a missão de agregar processos formativos, os desafios se tornam ainda maiores e instigantes, pois extrapolam a dimensão exclusiva do cuidado em saúde e do ensino de forma dicotomizada.

As demandas de saúde exigidas no mundo contemporâneo superam as necessidades de profissionais competentes e habilitados em diagnósticos, prescrições e operação de equipamentos sofisticados e de alta complexidade (MERHY et al., 2010), exigindo, de tal modo, novos perfis com capacidade e habilidade profissionais para trabalho em equipe, compartilhamento de informações e valorização de aspectos como: escuta, acolhimento, vínculo e cuidado na perspectiva da integralidade (MERHY et al., 2010; BRASIL, 2004).

Baseados em tal lógica de raciocínio, ressaltam Mello, Almeida Filho e Ribeiro (2009, p. 3):

Além de especialistas competentes, é necessário formar indivíduos criativos, críticos, empreendedores e, sobretudo, excelentes cidadãos. Sim, porque para mudar o mundo, no novo milênio, já não basta formar profissionais competentes e cientistas produtivos (que podem inclusive reproduzir e ampliar, com perversa eficiência, desigualdades e injustiças existentes). É imprescindível formar, além de tudo, homens e mulheres comprometidos com a ética da causa pública, com as consequências da própria ação, com interesses republicanos.

Os cenários de aprendizagens devem favorecer aos discentes a reflexão crítica sobre sua ação e a realidade em que estão inseridos, buscando problematizar o seu cotidiano, articulando a teoria e a prática no processo da aprendizagem significativa e do trabalho em equipe; e ao usuário do serviço a possibilidade de uma assistência de qualidade e com rigor científico, na perspectiva de uma compreensão integral do ser humano e do processo saúde-doença, com humanização da atenção e cuidado integrados (CECCIM; FEUERWERKER, 2004; FERNANDES et al., 2005).

No contexto atual das políticas de educação e de saúde, a aproximação entre o ensino e o sistema locorregional de saúde, segundo Mello, Almeida Filho e Ribeiro (2009, p. 6-7) favorece:

Ambientes de aprendizagem pedagogicamente promissores não apenas à preensão mais competente do saber já disponível, com (e sobretudo) propícios à reflexão crítica sobre a realidade nacional e à produção de um saber autônomo - esta, sim, a ferramenta diferencial dos povos desenvolvidos.

Considera-se que a saúde se apresenta como campo interdisciplinar com alta complexidade, pois o processo saúde-doença, no seu âmbito social, envolve simultaneamente relações sociais, emocionais, afetivas e biológicas, além de razões sócio-históricas e culturais dos indivíduos e grupos (GOMES et al., 2011; MINAYO, 2002). Em decorrência dessas dimensões, compreende-se que o trabalho em saúde é “[…] um trabalho de escuta, em que a interação entre profissional de saúde e usuário é determinante da qualidade da resposta assistencial” (CECCIM; FEUERWERKER, 2004, p. 49).

A compreensão do papel de corresponsável na formação de futuros profissionais vem sendo desvelada e construída nos serviços de saúde, com toda a complexidade da integração ensino-serviço-comunidade. A integração ensino-serviço-comunidade deve ser entendida como um trabalho pactuado e integrado entre discentes, docentes, gestores, trabalhadores das equipes dos serviços de saúde e usuários (CECCIM; FEUERWERKER, 2004).

Os mesmos autores evidenciaram em seus estudos que a integração ensino-serviço-comunidade implica em profundas mudanças conceituais, estruturais e estratégicas nos currículos dos cursos da área da saúde, na formação de profissionais com competências comuns, nos processos de trabalho e na gestão, repercutindo positivamente na formação de profissionais qualificados no contexto das políticas públicas, na atualização constante dos profissionais inseridos nos serviços de saúde e na melhoria do serviço oferecido à comunidade.

A Unidade de Ensino e Assistência de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (UEAFTO), é um Centro de Reabilitação tipo II, foi fundada em 1997, vinculada ao Centro de Ciências Biológicas e da Saúde - Campus II da Universidade do Estado do Pará - UEPA, com a missão de prestar assistência nas áreas de fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia e psicologia. Tem em sua clientela exclusivamente pacientes do SUS com as mais diversas deficiências, tanto físicas quanto intelectuais, realizando cerca de 65.000 atendimentos/ano em diversos ambulatórios, entre os quais: ambulatório de atividades da vida diária; ambulatório de psicomotricidade; ambulatório de terapia ocupacional motora global; ambulatório de terapia ocupacional infantil; ambulatório de terapia de mão; ambulatório de estimulação cognitiva; ambulatório de terapia ocupacional em grupos e oficinas e ambulatório de tecnologias assistivas.

Nesta unidade trabalham cerca de 50 profissionais entre fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos e psicólogos além dos docentes dos cursos de fisioterapia e de terapia ocupacional da universidade que a utilizam como campo de estágio e aulas práticas, tendo a missão de aproximar o mundo do ensino ao do trabalho, visando propiciar a troca de experiência nos estágios curriculares, profissionalizantes e residência multiprofissional.

Este estudo foi originado a partir da observação e vivência no cotidiano do trabalho no Laboratório de Atividade de Vida Diária da Unidade de Ensino e Assistência de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (UEAFTO), que levou os autores a perceber que o contato e o diálogo permanente entre profissionais, discentes, docentes e usuários do serviço apontam convergências e divergências relacionadas à integração das ações de ensino no contexto de prática do serviço e que as dissonâncias desse processo impactam no ensino e no serviço, provocando uma fragilidade de apropriação do cenário de prática pelos discentes e uma desconexão do processo de trabalho dos técnicos com as ações do ensino.

Assim, este estudo teve o objetivo de compreender as percepções de discentes do estágio profissionalizante em terapia ocupacional sobre a experiência de integração ensino-serviço-comunidade vivenciada em um laboratório de atividade de vida diária.

2 Método

Trata-se de um estudo qualitativo e exploratório realizado durante o segundo semestre letivo de 2014.

Foram incluídos todos os discentes matriculados em duas subturmas da disciplina “Estágio profissionalizante em reabilitação” do quarto ano do curso de terapia ocupacional em um número total de quatorze discentes (sete de cada subturma), não havendo perda amostral.

Foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Campus II da Universidade do Estado do Pará, sob parecer de aprovação nº 657.258 de 02/05/2014. Os participantes concordaram em participar através da assinatura no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) sendo garantido o sigilo e a não identificação, cumprindo a Resolução 466/12 CNS.

A coleta de dados foi obtida por meio de entrevistas semiestruturadas. O local da pesquisa foi o Ambulatório de Atividades da Vida Diária (AVD) da Unidade de Ensino e Assistência em Fisioterapia e Terapia Ocupacional (UEAFTO) do Campus II da Universidade do Estado do Pará. As entrevistas tiveram um roteiro pré-estabelecido e ocorreram de junho a novembro de 2014, tendo sido gravadas e transcritas o mais próximo possível da data de realização. O local e horário foram previamente acordados com os participantes.

Para análise das entrevistas, utilizou-se a técnica de análise de conteúdo, fundamentada em Bardin (2011) e Minayo (2014), a partir da transcrição das narrativas dos discentes. Após a leitura minuciosa das falas dos participantes, foram constituídas três categorias temáticas - integração ensino-serviço-comunidade, aprendizagem significativa e relação teoria-prática -, porém para este artigo optou-se por fazer um recorte apenas da categoria “integração ensino-serviço-comunidade”.

No que tange a categoria escolhida, o roteiro de entrevistas foi constituído por quatro perguntas sobre a percepção do discente sobre a integração entre ensino-serviço-comunidade: I) Qual sua expectativa em relação ao serviço realizado no cenário de prática da UEAFTO antes de conhece-lo?; II) Em quais setores da UEAFTO você desenvolveu sua pratica? Existiu diferença nos atendimentos realizados nesses setores?; III) Quais as principais dificuldades e facilidades encontradas durante os atendimentos no estágio?; IV) Como foi sua experiência no setor de AVD? Contribuiu para sua formação?

As respostas dos participantes a essas perguntas geraram quatro subcategorias: I) Expectativa de práticas integradas entre o ensino e assistência; II) Realidade do trabalho em equipe; III) Processo organizacional; IV) Troca de experiências e produção de conhecimento.

Como critério de análise foram observadas as semelhanças, a distinção entre os conteúdos e identificadas as ideias centrais das narrativas sobre as categorias temáticas.

3 Resultados e Discussão

Participaram do estudo 14 discentes (10 do sexo feminino e 4 do masculino) com idade média de 21,45 anos que estavam cursando a quarta série do curso.

A partir das respostas dadas pelos participantes às quatro perguntas, e baseado nas frequências de ocorrência, foram geradas as quatro subcategorias mostradas a seguir.

3.1 Expectativa de práticas integradas entre o ensino e assistência

Nas falas dos quatorze entrevistados, foram identificadas referências implícitas em relação à expectativa da vivência do estágio no cenário de prática da UEAFTO, sendo reveladas, de forma recorrente, questões-chave sobre o que os discentes esperavam com a aproximação do mundo do ensino ao mundo do trabalho. Nesses depoimentos, os discentes revelaram suas expectativas com ênfase no desenvolvimento de práticas permeadas pela articulação das ações do ensino e da assistência e, consequentemente, com troca de conhecimento entre acadêmicos e profissionais do serviço, e com trabalho em equipe, o que não ocorreu na prática.

[…] Eu esperava algo mais integrado com os profissionais da unidade, […] porque a gente vê uma realidade muito restrita, é só uma experiência de pouco tempo […] porque quando termina o estágio esses pacientes são repassados pros profissionais daqui […] Precisa dessa troca pra que eles saibam ou conheçam o que a gente vinha fazendo […] Depois da vivência eu vi que não tem essa troca […] essa interação profissional e os acadêmicos, o que era a missão da unidade […] (Discente 1).

[…] Aquela visão da unidade como ensino, na verdade ficou um pouco defasada, porque fica parecendo que é mais uma unidade para assistência, aonde de um modo mais grosseiro o discente tá ali pra suprir a demanda muito grande que a unidade tá recebendo, […] A gente não tem conhecimento, qual é o tipo de planejamento que se faz nessa divisão da fisioterapia com a terapia ocupacional, se são os mesmos pacientes, se eles estão articulados […] após a vivência, a expectativa não foi correspondida justamente por essa questão da ideia de ensino ficar um pouco defasada, então a unidade ficou apenas com aquela função de assistência mesmo, e aí no caso nós, como discentes, estaríamos sendo um “objeto” pra tá suprindo um pouco essa demanda de paciente que tá chegando, que é bastante grande (Discente 3).

Bom, eu acho que tá faltando mesmo organizar essa dinâmica, porque até agora eu não vivenciei essa questão ensino, assistência e comunidade (Discente 9).

A organização do processo de trabalho é uma das principais questões a serem enfrentadas para que a dinâmica de comunicação e integração entre a equipe ocorra voltada ao usuário e às suas necessidades, haja vista que a característica da prestação de serviços em saúde requer uma interação rompendo com a divisão do trabalho e valoração dos trabalhadores. Essa interação também deve ser de forma articulada ao processo de aprendizagem dos discentes (VIEGAS; PENNA, 2013).

3.2 Realidade do trabalho em equipe

Para doze entrevistados, o processo de trabalho enfatiza a assistência com cumprimento de metas, pouco priorizando ações de ensino. Isso pode ser observado na fala do discente que aponta o reflexo do volume significativo de demanda, com repercussão no estágio, que tenta, inclusive, absorver parte dessa clientela:

[…] não sei se ele [profissional do serviço] tem essa visão, ou às vezes ele só atende ali pra cumprir metas, que a gente sabe que ali no serviço do SUS ele tem um atendimento mínimo (Discente 3).

Aspectos político-administrativos e orçamentários adquirem muita importância, enquanto os pedagógicos e didáticos se tornam cada vez mais abstratos (PERRENOUD, 2000).

Em doze falas, notou-se a falta de interação no espaço físico e na sua lógica operacional, impactando na compreensão do discente sobre a rotina do serviço, a dinâmica de trabalho, o fluxo dos atendimentos e, sobretudo, a apropriação desse cenário de aprendizagem.

[…] Têm setores que o discente nunca ouviu nem falar, já tá perto de formar e nunca nem visitou algumas salas daqui, devido às práticas de estágio programadas pela coordenação (Discente 8).

A fala do discente 8 é representativa da maioria dos entrevistados, que informaram utilização restrita do contexto de prática. Assim, não vivenciaram as especificidades dos diferenciados espaços do serviço.

O contexto de aprendizagem na Unidade é subutilizado pelos discentes. Há concentração de atividades predominantemente na sala de aula utilizada para treinamento prático. Tal fator leva à falta de interlocução e integração de ações ensino-serviço-comunidade.

Para os entrevistados, houve dificuldade na efetivação da integração ensino-serviço-comunidade, sobretudo devido à falta de interação com a equipe assistente:

[…] [a integração ensino-serviço-comunidade] está bastante defasada, […] falta conhecimento sobre o espaço e o que é feito na UEAFTO. Não tem contato com os outros profissionais, não tem interdisciplinaridade. Na proposta tem, mas na prática não acontece (Discente 3).

As relações de integração na prática ocorrem por rotina e processos de trabalhos não compartilhados, com pouca interseção das atividades do serviço e predominância de rotina organizacional.

Essa realidade é dissonante ao esperado em processos de trabalho produtivos. Franco (2007) afirma que a realidade em unidade de saúde é produzida pela comunicação entre trabalhadores, gestão e usuários.

Quanto às facilidades manifestadas, foram ressaltados os seguintes aspectos: a conduta e o manejo adequados do professor-supervisor do estágio na supervisão dos atendimentos e as demandas diversificadas, consideradas importantes no processo de aprendizagem.

[…] A gente tem problema, não tem sala adequada pra discussão de casos, […] mas o professor atua como facilitador no ensino e na prática (Discente 6).

A facilidade do estágio é a demanda diversificada, isso ajuda a entender que precisa estudar mais (Discente 3).

Os discentes enfatizaram a necessidade de valorização e interlocução das ações do estágio com as atividades cotidianas da equipe assistente. Essa ausência foi destacada como entrave, contribuindo para a descaracterização da missão do serviço em relação às situações de aprendizagem.

Apesar dos problemas mencionados, todos os entrevistados referiram que o estágio foi significativo para o aprendizado. A experiência propiciou contato com a complexidade e a realidade do mundo do trabalho e, principalmente, aprendizado na relação com os usuários do serviço:

[…] Contribuiu, né? Mais na questão da comunidade, porque o ensino e assistência eu percebo que ele tá meio quebrado. A assistência tá sobressaindo ao ensino. Na UEAFTO, parece que não há comunicação entre os docentes e a equipe assistencial. Para mim tá mais assistência do que ambiente de ensino pros alunos (Discente 10).

Cada instituição é construída no modelo assistencial vigente. Todavia, a proposta formulada (missão) para a UEAFTO requer esforço conjunto da universidade e do próprio serviço em direção a um replanejamento político e pedagógico e espaços de interseção entre ensino e serviço.

Por vezes, concede-se aos docentes a autoridade do saber enquanto que, aos profissionais dos serviços, são dispensadas vozes secundárias, provocando uma hierarquização das relações e fragmentação das ações que deveriam ser de trocas e integração.

A seguir, as entrevistas mostram convergência no que tange a não existência de integração entre ensino-serviço nas falas dos discentes:

Integração ensino, assistência, comunidade a gente enxerga na teoria, na prática não tem, não percebo a comunidade como um todo, se eu circulasse pelos outros setores e conversasse com outros profissionais, […] estaria a par do que os profissionais estariam trabalhando (Discente 3).

Há visão crítica do trabalho na Unidade e descontinuidade da integração ensino-serviço-comunidade. Assim, o desafio atribuído atualmente aos profissionais da rede de serviço do SUS é contribuir com os processos formativos, o que requer muito mais que boa vontade no desempenho da assistência.

Para doze entrevistados, a equipe foi considerada inadequada, com pouca habilidade e preparo técnico para lidar com discentes, não exerce o papel de facilitador na formação no contexto de prática por diversas razões: falta de capacitação, receptividade, motivação, didática e trabalho em equipe.

[…] alguns técnicos poderiam ter mais didática, pra saber lidar com o discente […], a gente tá aqui pra aprender e a gente sabe que vocês têm muito pra passar pra gente […], falta um pouco de comunicação. […] Nos outros locais de prática que a gente vai […], tem uma reunião com a equipe (Discente 11).

Embora reconheçam como potentes as estratégias no processo ensino-aprendizagem, ressaltaram não ter vivenciado tais experiências na Unidade:

[…] não sei por que não tem essa questão de reuniões, […] plano terapêutico integrado (Discente 1).

Nas entrevistas, foi possível notar a pertinência e coerência dos entrevistados com o que Merhy et al. (2011, p. 57) ressaltam

[…] produzir cuidado por meio do trabalho em saúde depende da construção de processos relacionais - entre gestores e trabalhadores, trabalhadores e usuários - que possam suportar a exposição das implicações que a produção do cuidado opera.

A mobilização para o exercício de ações pactuadas é complexa. Segundo Franco (2007), os serviços de saúde têm lugares de poder, práticas e regras de funcionamento.

O debate coletivo é necessário para problematizar e ressignificar a prática. O objetivo é suscitar novas reflexões e percepções dos discentes, para que sejam protagonistas e mobilizadores, provocando enfrentamento de ações dissonantes ao esperado e preconizadas no projeto de criação do serviço.

3.3 Processo organizacional

Nas entrevistas, é evidente a necessidade de reorganização da assistência, como:

Eu acho que tá faltando organizar a dinâmica, até agora não vivenciei ensino, assistência e comunidade (Discente 8).

[…] A gente encontra, muitas vezes, um local de prática que não tem os recursos necessários que a gente precisa, não tem alguns materiais, a gente tem que trazer o material de casa (Discente 2).

[…] A gente ficou vinculado só num setor, não teve nenhum tipo de interação assim com o espaço, com os outros setores, foi exclusivo só num espaço (Discente 13).

A ausência de estratégias (estudos, discussão de equipe, reuniões etc.) que favoreçam a socialização de casos clínicos, informações sobre os usuários e a dinâmica do serviço foi apontada como um aspecto negativo no processo de aprendizagem esperado para tal cenário de prática.

Para Perrenoud (2000, p. 169), “[…] as prioridades, os conteúdos e os procedimentos deveriam depender de uma elaboração cooperativa, de discussão compartilhada sobre formação”, favorecendo um trabalho engajado.

Segundo Pissinato e Motta (2014), a alienação dos trabalhadores do seu processo de trabalho reflete nas relações trabalhador-usuário e tem como consequência este se realizar de forma compartimentada sem a necessária integração multidisciplinar.

Quatorze entrevistados apontaram pouca interação com a equipe técnica e desarticulação do ensino-serviço na UEAFTO. Com isso, infere-se a descontinuidade da construção do trabalho em equipe e de intervenções com troca de saberes e produção de conhecimento, o que pode ser percebido nas falas mais enfáticas sobre o tema.

[…] Eu esperava algo mais integrado com os profissionais da unidade, […] Precisa dessa troca pra que eles saibam ou conheçam o que a gente vinha fazendo […] Depois da vivência eu vi que não tem essa troca […] essa interação profissional e os acadêmicos, o que era a missão da unidade (Discente 1).

[…] Aquela visão da unidade como ensino, na verdade ela ficou um pouco defasada, porque fica parecendo que é mais uma unidade para assistência, aonde de um modo mais grosseiro o aluno tá ali pra suprir a demanda muito grande que a unidade tá recebendo, […] A gente não tem conhecimento, qual é o tipo de planejamento que se faz nessa divisão da fisioterapia com a terapia ocupacional, se são os mesmos pacientes, se eles estão articulados […] após a vivência, a expectativa não foi correspondida justamente por essa questão da ideia de ensino ficar um pouco defasada, então a unidade ficou apenas com aquela função de assistência mesmo, e aí no caso nós, como discentes, estaríamos sendo um “objeto” pra tá suprindo um pouco essa demanda de paciente que tá chegando, que é bastante grande (Discente 7).

Nunca foi uma profissional da unidade que ficou com a gente no setor, então eu não sei o que acontece ali naquele setor, como ele é utilizado, não sei […] tenho desconhecimento disso e também como é o funcionamento do fluxo, eu não sei como é o fluxo do setor aqui, mesmo estando no local do meu ensino eu não conheço (Discente 12).

A avaliação crítica dos discentes reflete que, implicitamente, o papel de contribuir com processos formativos vem sendo desvelado e construído cotidianamente com seus erros e acertos. As pactuações referidas nas diretrizes ainda não se concretizam na prática e, por conseguinte, não correspondem ao idealizado/esperado no processo de aprendizagem.

Franco (2007, p. 3) ressalta que:

O olhar do planejador caminha no seu interior, buscando o organograma, os fluxos estruturados, o padrão funcional, as normas elaboradas para a regulação da vida, enfim, ela vai se revelando pela ótica do mundo racionalmente concebido que reflete a realidade de certo ângulo. A mudança do foco do olhar pode viabilizar uma percepção desses estabelecimentos de outras formas, concebê-los mais ou menos organizados, analisar seus funcionamentos e se apropriar da qualidade dos serviços que prestam […].

3.4 Troca de experiências e produção de conhecimento

A Constituição Federal e a Lei Orgânica de Saúde estabelecem que compete ao SUS ordenar a formação de profissionais para a área de saúde para que estes possam estar preparados para compreender com seus princípios: universalidade, equidade e integralidade da atenção à saúde.

As percepções dos entrevistados sobre o perfil do profissional do serviço enquanto facilitador do processo de integração entre o ensino e o serviço foram antagônicas ao esperado:

[…] Eu já tive essa experiência de atender em outro local com outro profissional e ficava assim: Ah aqui é meu território e você pode ir até ali (Discente 1).

A integralidade, um dos princípios doutrinários do SUS, se destina a conjugar ações no atendimento em saúde. Segundo Santos et al. (2015), a integralidade nega a fragmentação frente aos problemas de saúde, na qual cada profissional se responsabiliza por uma parte do indivíduo, necessitando, para sua concretização, de ações interdisciplinares. No entanto, há dificuldades para se chegar a ela pois cada profissional marca o seu território e no campo do estágio isso dificulta que novos profissionais possam compreender a integralidade. Segundo Feuerwerker e Sena apud Capozzolo et al. (2013), é necessário que haja mudanças na lógica de formação dos profissionais de saúde, para que estes possam compreender os principais problemas de saúde da população.

Segundo os entrevistados, a experiência do estágio contribuiu para a compreensão/reflexão sobre o SUS e o entendimento de que as intervenções devem buscar responder às demandas de saúde dos usuários.

[…] Acho importante conhecer o contexto, não centrar na patologia, mas na realidade do SUS […]. Traz muitas experiências saber lidar com as diversidades no estágio, podem acontecer na vida profissional (Discente 5).

A gente nota que por ser uma demanda muito grande, muita gente fica em espera […] O SUS é uma proposta boa só que às vezes se torna difícil […] a demanda é muito grande, então não tem vagas pra todos. Vejo esses entraves durante a prática (Discente 14).

As diretrizes curriculares das profissões de saúde colocam como uma necessidade a formação em unidades do SUS. Segundo Damiance et al. (2016), a formação em saúde tem de sensibilizar o aluno para lidar com os problemas que afetam a saúde das populações, para que ele possa efetivamente estar preparado para resolver os problemas de saúde das populações.

Peres et al. (2012) veem os serviços de saúde como locais de aprendizagem e de trabalho fomentando um papel transformador no futuro profissional, constituindo-se em ambientes onde, pelo contato direto, estudantes podem conhecer as dificuldades, lutas e histórias de vida dos sujeitos sociais neles presentes.

3.5 Sugestões

Os entrevistados sinalizaram ações de planejamento estratégico que poderiam contribuir para a integração ensino-serviço-comunidade se tornar efetiva e indutora da aprendizagem. As sugestões abrangem percepções críticas sobre a concepção e missão da UEAFTO e o método de gestão do estágio.

O planejamento das práticas deve ter integração com a UEAFTO, de comunicação com os profissionais, de quantas vezes na semana eles podem demonstrar serviço pro discente. Eles devem sensibilizar os profissionais de que é importante ajudar os discentes, eles tão em formação e vão ser os terapeutas posteriormente. […] O plano de ensino da docência deve estar relacionada com os profissionais, é aí que acontece a quebra, o profissional acaba achando que é mais alguém que vai ficar dentro da sala sem importância (Discente 4).

Foram citadas estratégias para melhoria da integração ensino-serviço-comunidade (estudo de caso, reunião, plano terapêutico, capacitação permanente da equipe, etc.) e favorecer o processo formativo, a articulação, a integração com a equipe e a percepção crítica das rotinas diferenciadas.

No NASF, tem estudo de caso. Isso integra a equipe, dá pra ver o olhar de outros profissionais. Esses estudos é uma boa ferramenta pra integração (Discente 6).

O projeto terapêutico construído coletivamente favorece o cuidado em saúde conforme as necessidades do usuário e os recursos disponíveis e ultrapassa a dimensão estritamente pedagógica (SLOMP JUNIOR; FEUERWERKER; LAND, 2015).

A observação crítica a seguir, quanto à “zona de conforto”, recai sobre a subutilização dos setores da Unidade pelo estágio; isso pode impactar negativamente no aprendizado, pois o discente tem uma visão parcial dos processos de trabalho e da dinâmica institucional. Assim, há o risco dessa prática naturalizar-se e se consolidar como rotina do estágio.

Seria bom se tivesse a proposta no currículo o discente passar pelos principais setores da UEAFTO. A sala de Atividade de Vida Diária deveria ser obrigatória […], quando é livre, é mais complicado a adesão dos discentes, porque sai da zona de conforto […]. Seria bem produtivo, o profissional poderia trocar trabalhos científicos (Discente 1).

São legítimas as preocupações apresentadas, pois o modelo de gestão do serviço não contempla as demandas suscitadas pelos discentes e pouco contribui para as mudanças desejadas nos processos formativos.

Esse descompasso entre formação acadêmica e realidade dos serviços é um problema grave para efetivação do SUS; a formação de profissionais em saúde é um eixo estratégico para a construção desse sistema.

Nas práticas de saúde ocorrem diversas disputas e constituição de políticas, decorrentes da ação de distintos atores que se aliam ou se confrontam conforme seus interesses e capacidade de ação (MERHY, 2002).

4 Conclusão

São legítimas as demandas e estratégias levantadas com criticidade pelos discentes, visando à melhoria do ensino-assistência, que envolve responsabilidades diferenciadas da gestão da unidade, da coordenação do curso e do processo de trabalho dos técnicos.

Os resultados obtidos apontaram distanciamento entre o esperado e a realidade da rotina de trabalho, revelando incongruências entre as expectativas dos discentes e a realidade vivenciada na unidade por estes. As percepções dos entrevistados revelaram que a dinâmica de trabalho ocorre sem planejamento coletivo das ações de cuidado e sem interlocução com o ensino.

Os discentes sugeriram ações de planejamento estratégico e estratégias que poderiam contribuir para que a integração ensino-serviço-comunidade se torne mais efetiva e indutora da aprendizagem e favorecer o processo formativo, a articulação, e a integração com a equipe e ainda que fosse obrigatório ao discente passar pela vivência no laboratório de AVD.

Há necessidade de escuta dos outros atores sociais (trabalhadores, gestores e usuários do serviço) para que a compreensão desse contexto ocorra na integralidade, refletindo de forma fidedigna os conflitos, interseções e interesses divergentes e convergentes.

REFERÊNCIAS

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