versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.27 no.1 São Paulo jan./fev. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20152013065
A gagueira é um distúrbio de comunicação com manifestações variadas, caracterizado, principalmente, por repetições involuntárias de sílabas, prolongamentos e bloqueios, assim como por reações fisiológicas, comportamentais e emocionais às rupturas da fala( 1 ).
As principais atitudes e sentimentos das pessoas com gagueira em relação ao distúrbio são: negação, passividade, falta de esperança, culpa, timidez, vergonha e medo relacionado à fala, ansiedade, além de frustração e raiva( 2 ).
Reações adversas emocionais nas situações comunicacionais rotineiras( 3 ), como prejuízos físicos, psicológicos, sociais e vocacionais( 4 ), foram relatadas por indivíduos que gaguejam. Pais de crianças com gagueira descreveram que os filhos frequentemente apresentam alterações comportamentais na escola e nos relacionamentos com seus pais e colegas( 5 ).
Indivíduos que gaguejam são considerados emocionalmente instáveis( 6 , 7 ), nervosos, desajeitados e incapazes de se comunicarem efetivamente na vida diária( 7 ). Outros estereótipos também foram descritos, como inseguros, reticentes, reservados, com comportamentos de fuga, hesitantes, depressivos, nervosos, tensos e medrosos( 8 ), tímidos, quietos e introvertidos( 7 , 8 ).
Alguns pesquisadores investigaram a personalidade e o temperamento de indivíduos que gaguejam( 9 ), porém ainda não existe consenso se, de fato, a gagueira ocasiona impacto significativo sobre a personalidade dos mesmos( 6 ).
As interações sociais algumas vezes são evitadas e temidas em virtude da ansiedade vivenciada pelo indivíduo com gagueira( 10 ) e são influenciadas pelas respostas negativas dos pares de comunicação diante da fala disfluente( 11 ). Os relacionamentos com os parceiros podem ser prejudicados, pois, frequentemente, percebem a fala como um obstáculo para o desenvolvimento de relações sociais( 12 ).
A fadiga física e emocional do constante monitoramento da fala e do esforço no controle da gagueira pode contribuir para a percepção individual da qualidade de vida do indivíduo que gagueja( 3 ). O impacto negativo da gagueira na qualidade de vida foi descrito por alguns pesquisadores( 2 , 4 , 13 ).
No entanto, não existe consenso na literatura sobre a relação da severidade da gagueira e seu impacto na qualidade de vida. Alguns autores acreditam que quanto maior a severidade, maior o impacto na qualidade de vida( 14 ), enquanto outros encontraram dados contraditórios( 2 , 15 , 16 ).
Sendo assim, os objetivos desta pesquisa foram: investigar o perfil comportamental e de competências sociais de indivíduos com gagueira e comparar com indivíduos sem gagueira, a partir da opinião dos pais; correlacionar o desempenho comportamental e de competência social e o grau de severidade da gagueira.
Esta pesquisa configura-se como um estudo experimental e transversal com comparação entre grupos, sendo composto por 64 indivíduos, na faixa etária entre 6 e 18 anos (média=8,9 anos; desvio padrão - DP=2,4), faixa esta que o instrumento abarca. O grupo experimental (GE) foi formado por 32 indivíduos com diagnóstico de gagueira desenvolvimental persistente, sendo 23 do gênero masculino e nove do feminino. O grupo controle (GC) foi formado por 32 indivíduos fluentes, pareados por gênero e idade. O grupo experimental foi formado por indivíduos avaliados no Laboratório de Estudos de Avaliação e Diagnóstico Fonoaudiológico (LEAD) e/ou no Laboratório de Estudos da Fluência (LAEF) do Centro de Estudos da Educação e da Saúde (CEES) da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - Marília (SP); o GC foi composto por alunos das escolas municipais e estaduais do município onde a pesquisa foi realizada.
A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP (CEP/FFC/UNESP), sob o Protocolo de nº 0402/2011. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido antes de participar do estudo. Foram seguidas todas as recomendações da Resolução nº 196/96, do Conselho Nacional de Saúde.
Os requisitos de inclusão dos dois grupos foram: ser falante nativo do Português Brasileiro e ter idade entre 6 e 18 anos. Os indivíduos com gagueira (GE) deveriam apresentar:
diagnóstico fonoaudiológico de gagueira desenvolvimental persistente, por profissional especialista da área;
apresentar mínimo de 3% de disfluências gagas;
duração mínima de 12 meses das disfluências;
apresentar gagueira classificada no mínimo de grau leve de acordo com o Instrumento de Severidade da Gagueira (SSI-3)(17).
Para a composição do grupo controle de indivíduos fluentes (GC), foram seguidos os critérios de inclusão:
não apresentar queixa de gagueira atual ou pregressa;
histórico familial negativo de gagueira;
apresentar menos de 3% de disfluências gagas na avaliação específica.
Os critérios de exclusão para os dois grupos foram:
apresentar qualquer distúrbio neurológico genético ou não, tais como distonia, doenças extrapiramidais, deficiência mental, epilepsia ou transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH);
sintomas ou condições psiquiátricas;
perda auditiva condutiva ou neurossensorial;
outras condições pertinentes que pudessem gerar erros no diagnóstico.
Inicialmente, foi realizado o registro audiovisual de uma amostra de fala autoexpressiva dos participantes do GE, composta de 200 sílabas fluentes, com o auxílio de uma filmadora digital Sony e um tripé. A transcrição e análise da fala foram realizadas de acordo com o Teste de Linguagem Infantil - Fluência (ABFW)( 18 ), que considera a tipologia das disfluências, a velocidade de fala e a frequência das rupturas. Posteriormente, o SSI-3( 17 ) foi aplicado para classificar o grau de comprometimento da gagueira em leve, moderada, severa ou muito severa.
No segundo momento, o perfil comportamental e das competências sociais dos indivíduos do GE e do GC foi obtido por meio da aplicação do instrumento Child Behavior Checklist (CBCL), para pais, destinado à faixa etária de 6 a 18 anos( 19 ). Esse instrumento foi traduzido e adaptado para o Português como Lista de Verificação Comportamental para Crianças ou Adolescentes( 20 ).
Para caracterizar o perfil comportamental, os pais responderam a 118 itens que listavam uma série de comportamentos desejáveis e disruptivos. Para cada uma das perguntas, os pais classificaram o comportamento dos seus filhos em: falso ou ausente, parcialmente verdadeiro e bastante verdadeiro. Os 118 itens formam oito escalas individuais, que podem ser agrupadas em três diferentes escalas somadas:
problemas internalizantes (ansiedade/depressão, isolamento/depressão, queixas somáticas);
problemas externalizantes (quebrar regras, agressividade);
outros problemas (problemas sociais, problemas de pensamento e problemas de atenção).
O escore total dos problemas comportamentais (perfil comportamental) foi obtido quando os resultados das três escalas foram somados.
Quanto à caracterização do perfil social, os pais responderam a 20 itens, os quais formaram três escalas individuais: atividades, sociabilidade e escolaridade, cuja soma representa o total das competências sociais. Os itens exigiam que os pais comparassem o filho com outras pessoas da mesma idade, identificando-as como "Abaixo da Média", "Acima da Média" ou "Dentro da Média".
De acordo com as respostas obtidas, o instrumento CBCL 6/18 anos classifica cada uma das escalas, as individuais e as somadas, em "Clínica (ou alterada)", "Limítrofe" ou "Não Clínica", tanto para os comportamentos quanto para as competências sociais, de acordo com amostra normativa de pares( 19 ).
Os dados foram armazenados e tabulados. Aplicou-se o teste estatístico da razão de verossimilhança para comparar o comportamento e as competências sociais entre os grupos (GE e GC), de acordo com a distribuição entre as categorias "Clínica", "Limítrofe" e "Não Clínica".
O teste de Mann-Whitney foi utilizado para comparar escores do CBCL quanto ao comportamento e competência social entre os grupos (GE e GC). Finalmente, o teste de Jonckheere-Terpstra foi aplicado para verificar possíveis diferenças do comportamento e das competências sociais, segundo os diferentes graus de severidade da gagueira, quando comparados concomitantemente. Para todos os testes utilizados, o nível de significância adotado para a aplicação dos testes estatísticos foi de 5% (0,05). A análise dos dados foi realizada utilizando o programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) em sua versão 20.0.
Com relação ao perfil comportamental do GE, foi possível constatar que tanto a média do escore total como a média do escore dos problemas internalizantes foram classificadas como clínica. O escore total dos problemas externalizantes foi classificado como "não clínica", assim como todas as médias das escalas individuais do perfil comportamental. O escore total do perfil social foi classificado como "clínica", e todas as escalas individuais foram classificadas como não clínicas (Tabela 1).
Tabela 1. Caracterização do perfil comportamental e social dos escores do instrumento Child Behavior Checklist do grupo experimental
CBCL | SG (n=32) | ||
---|---|---|---|
Classificação | Média (DP) | Mín–Máx | |
Perfil comportamental | |||
Escore total | Clínica* | 63,12 (6,49) | 53–76 |
Escore dos problemas internalizantes | Clínica* | 64,06 (7,23) | 52–80 |
Ansiedade/depressão | Não clínica** | 66,13 (7,25) | 50–78 |
Isolamento/depressão | Não clínica** | 61,41 (9,34) | 50–83 |
Queixas somáticas | Não clínica** | 56,44 (5,95) | 50–74 |
Escorre dos problemas externalizantes | Não clínica*** | 59,13 (8,17) | 44–74 |
Quebrar regas | Não clínica** | 56,28 (7,31) | 50–72 |
Agressividade | Não clínica** | 61,13 (7,29) | 50–79 |
Problemas sociais | Não clínica** | 64,97 (6,62) | 56–86 |
Problemas de pensamento | Não clínica** | 58,16 (6,96) | 50–73 |
Problemas de atenção | Não clínica** | 59,91 (6,64) | 51–79 |
Perfil social | |||
Escore total | Clínica**** | 31,34 (6,42) | 18–43 |
Atividades | Não clínica***** | 33,41 (6,35) | 22–43 |
Sociabilidade | Não clínica***** | 37,56 (7,68) | 24–52 |
Escolaridade | Não clínica***** | 42,28 (7,10) | 25–55 |
Legenda: CBCL = Child Behavior Checklist; GE = grupo experimental; DP = desvio padrão; Mín = mínimo; Máx = máximo Nota 1: Escore total -
*clínica (>63); Nota 2: Escalas individuais -
** não clínica (33).
A comparação entre o GE e GC quanto às classificações Clínica, Limítrofe e Não Clínica mostrou que os grupos apresentaram diferenças estatísticas no perfil comportamental, quanto ao escore total, dos problemas internalizantes e externalizantes e em três escalas individuais (ansiedade/depressão, isolamento/depressão e problemas sociais). Com relação ao perfil social, os grupos apresentaram diferença estatística, tanto no escore total como na escala de atividades (Tabela 2).
Tabela 2. Comparação do perfil comportamental e social dos escores do instrumento Child Behavior Checklist dos grupos experimental e controle, de acordo com a distribuição entre as categorias de clínica, limítrofe e não clínica
CBCL | GE (n=32) | GC (n=32) | Valor de p | ||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Clínica | Limítrofe | Não clínica | Clínica | Limítrofe | Não clínica | ||||||||
n | % | n | % | n | % | n | % | n | % | n | % | ||
Perfil comportamental | |||||||||||||
Escore total | 14 | 43,8 | 10 | 31,2 | 8 | 25 | 1 | 3,10 | 3 | 9,40 | 28 | 87,50 | <0,001* |
Escore dos problemas internalizantes | 20 | 62,5 | 3 | 9,4 | 9 | 28,1 | 4 | 12,5 | 2 | 6,2 | 26 | 81,2 | <0,001* |
Ansiedade/depressão | 9 | 28,1 | 7 | 21,9 | 16 | 50 | 2 | 6,2 | 1 | 3,1 | 29 | 90,6 | 0,002* |
Isolamento/depressão | 4 | 12,5 | 6 | 18,8 | 22 | 68,8 | 1 | 3,1 | 1 | 3,1 | 30 | 93,8 | 0,037* |
Queixas somáticas | 1 | 3,1 | 2 | 6,2 | 29 | 90,6 | 0 | 0 | 0 | 0 | 32 | 100 | 0,207 |
Escore dos problemas externalizantes | 8 | 25 | 6 | 18,8 | 18 | 56,2 | 1 | 3,1 | 2 | 6,2 | 29 | 90,6 | 0,007* |
Quebrar regas | 1 | 3,1 | 4 | 12,5 | 27 | 84,4 | 0 | 0 | 1 | 3,1 | 31 | 96,9 | 0,215 |
Agressividade | 4 | 12,5 | 2 | 6,2 | 26 | 81,2 | 1 | 3,1 | 0 | 0 | 31 | 96,9 | 0,120 |
Problemas sociais | 3 | 9,4 | 11 | 34,4 | 18 | 56,2 | 1 | 3,1 | 0 | 0 | 31 | 96,9 | <0,001* |
Problemas de pensamento | 2 | 6,2 | 5 | 15,6 | 25 | 78,1 | 1 | 3,1 | 1 | 3,1 | 30 | 93,8 | 0,178 |
Problemas de atenção | 1 | 3,1 | 3 | 9,4 | 28 | 87,5 | 1 | 3,1 | 1 | 3,1 | 30 | 93,8 | 0,586 |
Perfil social | |||||||||||||
Escore total | 26 | 81,2 | 1 | 3,1 | 5 | 15,6 | 12 | 37,5 | 3 | 9,4 | 17 | 53,1 | 0,002* |
Atividades | 10 | 31,2 | 11 | 34,4 | 11 | 34,4 | 3 | 9,4 | 8 | 25 | 21 | 65,6 | 0,025* |
Sociabilidade | 6 | 18,8 | 4 | 12,5 | 22 | 68,8 | 3 | 9,4 | 1 | 3,1 | 28 | 87,5 | 0,172 |
Escolaridade | 2 | 6,2 | 2 | 6,2 | 28 | 87,5 | 1 | 3,1 | 1 | 3,1 | 30 | 93,8 | 0,692 |
*Valores significativos (p
O GE apresentou uma tendência de os pais informarem quanto à maior ocorrência de problemas no comportamento dos filhos, pois os valores máximos foram, na maioria dos escores, tanto totais como das escalas individuais, maiores do que o GC, e os valores mínimos do GE ou foram semelhantes aos valores do GC ou maiores. Os valores de DP sugeriram que o GE é mais heterogêneo em termos de presença de alterações no comportamento dos filhos, segundo opinião dos pais, do que o GC. Houve diferença estatística entre os grupos na comparação de todas as médias dos escores, tanto totais como das escalas individuais (Tabela 3).
Tabela 3. Comparação dos escores do instrumento do Child Behavior Checklist quanto ao perfil comportamental entre o grupo experimental e o grupo controle
CBCL: perfil comportamental | GE (n=32) | GC (n=32) | Valor de p | ||
---|---|---|---|---|---|
Média (DP) | Mín–Máx | Média (DP) | Mín–Máx | ||
Escore total | 63,13 (6,49) | 53,00–76,00 | 49,06 (8,04) | 37,00–76,00 | <0,001* |
Escore dos problemas internalizantes | 64,06 (7,23) | 52,00–80,00 | 51,81 (9,71) | 34,00–76,00 | <0,001* |
Ansiedade/depressão | 66,13 (7,25) | 50,00–78,00 | 56,19 (7,68) | 50,00–82,00 | <0,001* |
Isolamento/depressão | 61,41 (9,34) | 50,00–83,00 | 54,75 (6,42) | 50,00–76,00 | 0,003* |
Queixas somáticas | 56,44 (5,95) | 50,00–74,00 | 52,88 (4,74) | 50,00–64,00 | 0,003* |
Escorre dos problemas externalizantes | 59,13 (8,17) | 44,00–74,00 | 48,72 (7,62) | 34,00–72,00 | <0,001* |
Quebrar regas | 56,28 (7,31) | 50,00–72,00 | 51,44 (3,19) | 50,00–67,00 | 0,002* |
Agressividade | 61,13 (7,29) | 50,00–79,00 | 53,44 (5,16) | 50,00–73,00 | <0,001* |
Problemas sociais | 64,97 (6,62) | 56,00–86,00 | 53,13 (5,00) | 50,00–73,00 | <0,001* |
Problemas de pensamento | 58,16 (6,96) | 50,00–73,00 | 53,44 (5,79) | 50,00–74,00 | 0,001* |
Problemas de atenção | 59,91 (6,64) | 51,00–79,00 | 54,22 (6,25) | 50,00–75,00 | <0,001* |
Valores significativos (p
Com relação à competência social, os menores valores corresponderam à classificação clínica (<37). Pode-se sugerir que o GE apresentou uma tendência de os pais informarem a respeito de mais problemas na competência social dos filhos, quando comparado ao GC, tendo em vista que a maioria dos valores máximos foi menor no GE; e quanto aos valores mínimos, metade foi menor. Os valores de DP sugeriram que o GE foi mais homogêneo quando comparado ao GC (Tabela 4). Houve diferença estatística tanto para o escore total como para as escalas individuais.
Tabela 4. Comparação dos escores do instrumento do Child Behavior Checklist quanto ao perfil social entre o grupo experimental e o grupo controle
CBCL | GE (n=32) | GC (n=32) | Valor de p | ||
---|---|---|---|---|---|
Média (DP) | Mín–Máx | Média (DP) | Mín–Máx | ||
Escore total | 31,34 (6,42) | 18,00–43,00 | 40,09 (8,45) | 25,00–62,00 | <0,001* |
Atividades | 33,41 (6,35) | 22,00–43,00 | 39,81 (9,92) | 26,00–64,00 | 0,009* |
Sociabilidade | 37,56 (7,68) | 24,00–52,00 | 43,69 (9,12) | 24,00–59,00 | 0,006* |
Escolaridade | 42,28 (7,10) | 25,00–55,00 | 46,31 (7,27) | 24,00–55,00 | <0,001* |
*Valores significativos (p
Os resultados relativos à comparação do comportamento e da competência social, segundo informação dos pais do GE, quanto à severidade da gagueira, mostraram que não houve diferença estatística nas escalas (individuais e grupais) entre a gagueira leve, moderada e severa. Nota-se, entretanto, uma tendência de os indivíduos que gaguejam com grau de comprometimento severo apresentarem maior ocorrência de escores classificados como clínicos, quando comparada com os casos com gagueira moderada e leve (Tabela 5).
Tabela 5. Comparação do perfil comportamental e social do instrumento do Child Behavior Checklist no grupo experimental segundo a severidade da gagueira (n=32)
CBCL | Leve | Moderada | Severa | Valor de p | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Clínica | Limítrofe | Não clínica | Clínica | Limítrofe | Não clínica | Clínica | Limítrofe | Não clínica | ||
n (%) | n (%) | n (%) | n (%) | n (%) | n (%) | n (%) | n (%) | n (%) | ||
Perfil comportamental | ||||||||||
Escore Total | 7 (36,8) | 4 (21,1) | 8 (42,1) | 5 (55,6) | 4 (44,4) | 0 (0) | 2 (50) | 2 (50) | 0 (0) | 0,108 |
Escore dos problemas internalizantes | 10 (52,6) | 3 (15,8) | 6 (31,6) | 6 (66,7) | 0 (0) | 3 (33,3) | 4 (100) | 0 (0) | 0 (0) | 0,335 |
Ansiedade/depressão | 6 (31,6) | 3 (15,8) | 10 (52,6) | 2 (22,2) | 2 (22,2) | 5 (55,6) | 1 (25) | 2 (50) | 1 (25) | 0,635 |
Isolamento/depressão | 1 (5,3) | 3 (15,8) | 15 (78,9) | 1 (11,1) | 3 (33,3) | 5 (55,6) | 2 (50) | 0 (0) | 2 (50) | 0,096 |
Queixas somáticas | 0 (0) | 1 (5,3) | 18 (94,7) | 0 (0) | 1 (11,1) | 8 (88,9) | 1 (25) | 0 (0) | 3 (75) | 0,101 |
Escore dos problemas externalizantes | 3 (15,8) | 4 (21,1) | 12 (63,2) | 3 (33,3) | 2 (22,2) | 4 (44,4) | 2 (50) | 0 (0) | 2 (50) | 0,530 |
Quebrar regas | 0 (0) | 1 (5,3) | 18 (94,7) | 1 (11,1) | 1 (11,1) | 7 (77,8) | 0 (0) | 2 (50) | 2 (50) | 0,069 |
Agressividade | 1 (5,3) | 2 (10,5) | 16 (84,2) | 1 (11,1) | 0 (0) | 8 (88,9) | 2 (50) | 0 (0) | 2 (50) | 0,124 |
Problemas sociais | 0 (0) | 6 (31,6) | 13 (68,4) | 2 (22,2) | 3 (33,3) | 4 (44,4) | 1 (25) | 2 (50) | 1 (25) | 0,188 |
Problemas de pensamento | 1 (5,3) | 5 (26,3) | 13 (68,4) | 0 (0) | 0 (0) | 9 (100) | 1 (25) | 0 (0) | 3 (75) | 0,133 |
Problemas de atenção | 0 (0) | 2 (10,5) | 17 (89,5) | 1 (11,1) | 0 (0) | 8 (88,9) | 0 (0) | 1 (25) | 3 (75) | 0,337 |
Perfil social | ||||||||||
Escore total | 14 (73,7) | 1 (5,3) | 4 (21,1) | 8 (88,9) | 0 (0) | 1 (11,1) | 0 (0) | 0 (0) | 4 (100) | 0,707 |
Atividades | 6 (31,6) | 5 (26,3) | 8 (42,1) | 1 (11,1) | 5 (55,6) | 3 (33,3) | 3 (75) | 1 (25) | 0 (0) | 0,138 |
Sociabilidade | 4 (21,1) | 2 (10,5) | 13 (68,4) | 0 (0) | 1 (11,1) | 8 (88,9) | 2 (50) | 1 (25) | 1 (25) | 0,196 |
Valores significativos (p
A literatura ressalta a importância de estudar os aspectos comportamentais e sociais de indivíduos que gaguejam( 1 , 4 ); no entanto, poucos estudos apresentaram resultados comparativos com indivíduos que não gaguejam.
A análise dos dados obtidos nesta pesquisa permitiu verificar que indivíduos com gagueira, segundo seus pais, apresentam características peculiares no perfil comportamental e social, quando comparados com indivíduos fluentes. Esses resultados corroboraram estudos prévios, que relataram, em gagos, alterações comportamentais( 5 ) e sociais( 1 , 3 , 4 , 7 , 8 , 21 , 22 ).
Quanto ao comportamento, a análise intragrupo do GE sugeriu que as características mais relevantes estão relacionadas com a ansiedade/depressão, isolamento/depressão e queixas somáticas. A análise intergrupos (GE versus GC) mostrou que indivíduos que gaguejam, segundo a opinião dos pais, apresentaram maior frequência de alterações comportamentais, como medo, nervosismo/tensão, culpa, ansiedade, perfeccionismo e preocupação (escala ansiedade/depressão), quando comparados aos fluentes. Esses resultados se assemelharam aos relatos da literatura, que verificaram, em indivíduos com gagueira, a presença de nervosismo/tensão( 7 , 8 ), depressão( 8 ), medo( 2 , 8 ), culpa e ansiedade( 2 ).
Os resultados deste estudo, referentes à escala isolamento/depressão, mostraram que os comportamentos dos filhos que gaguejam, conforme relatado pelos pais, foram caracterizados como reservados, tímidos, fechados, introvertidos, quietos e depressivos, concordando com descrições prévias( 2 , 7 , 8 , 23 ).
Acredita-se que indivíduos que gaguejam podem ter medo da avaliação negativa dos ouvintes e, possivelmente, evitam situações de fala na tentativa de serem percebidos de uma forma mais positiva, conforme descrito por alguns pesquisadores( 7 , 24 ).
Na escala de queixas somáticas, que diz respeito à presença de problemas físicos por "nervoso" e por fadiga, os resultados mostraram que não houve diferença estatística entre indivíduos com e sem gagueira. Tal achado foi discordante de estudo prévio, que relatou que o constante monitoramento da fala e do esforço no controle da gagueira pode ocasionar fadiga física e emocional( 3 ). No entanto, cabe mencionar que a média de idade da população investigada foi de 8,9 anos. Desta forma, os resultados sugeriram que grande parte da população infantil pode, ainda, não realizar o monitoramento da fala, na tentativa de controlar a gagueira, e, consequentemente, os pais não perceberiam essa fadiga.
Com relação aos problemas externalizantes no GE, segundo a opinião dos pais, a agressividade foi mais frequente do que o comportamento de quebrar regras. Com relação aos outros problemas, nota-se que os sociais foram mais frequentes do que os de pensamento e de atenção. Portanto, os dados sugeriram que a agressividade e os problemas sociais podem fazer parte do espectro de alterações de indivíduos com gagueira.
Quanto à competência social, segundo relato dos pais, o escore total do perfil social dos indivíduos com gagueira da amostra foi classificado como clínico, evidenciando que a gagueira pode ocasionar prejuízo nas interações sociais, corroborando estudos prévios( 12 , 21 , 22 ).
Com relação à comparação entre os grupos (GE versus GC), todos os escores totais (do perfil comportamental, dos problemas internalizantes, dos problemas externalizantes e do perfil social) apresentaram diferenças estatisticamente. Os resultados mostraram que, como grupo, 90,6% dos participantes do GE apresentaram comportamento, segundo a opinião dos pais, classificado como clínico (alterado) em alguma escala (individual ou somada), comparado a 53,1% do GC. Esses dados somados aos valores máximos e mínimos, apresentados pelo GE em comparação ao GC, demonstraram que os indivíduos com gagueira apresentaram maior tendência a problemas comportamentais e na competência social em relação aos indivíduos sem gagueira, de acordo com relato dos pais.
A relação entre gagueira e ansiedade foi destacada por alguns estudos( 25 - 27 ). Especificamente, por meio do CBCL, uma investigação encontrou redução da ansiedade e depressão após a terapia relatada por pais de crianças com gagueira( 25 ). Sendo assim, os autores sugeriram que esses sintomas fisiológicos podem ser efeitos desse distúrbio. Vale ressaltar que altos níveis de ansiedade em crianças e adolescentes podem impactar negativamente o desenvolvimento social e emocional, bem como o desempenho acadêmico( 28 ). Além disso, timidez e inibição (considerada no CBCL como parte da escala de isolamento/depressão) são características precursoras da ansiedade( 27 ). Nesta amostra, pais dos indivíduos que gaguejam relataram presença de ansiedade por parte dos filhos. Conforme descrito previamente( 10 ), acredita-se que a ansiedade pode ocasionar medo das interações sociais, o que, por sua vez, leva ao isolamento em relação às atividades sociais. Nessa lógica, é possível compreender os motivos das diferenças dos problemas internalizantes entre indivíduos com e sem gagueira, mencionados pelos pais.
Vale salientar que a análise qualitativa da opinião dos pais, comparativa entre os grupos (GE versus GC) quanto ao comportamento dos filhos, mostrou que o GE foi mais heterogêneo. No entanto, quanto às competências sociais, o GE foi mais homogêneo que GC. Uma das possíveis explicações para esse achado é a quantidade de questões sobre o comportamento, quando comparado com as questões da competência social.
A análise da competência social, que inclui as escalas de atividades, sociabilidade e escolaridade (desempenho escolar), mostrou diferença entre GE e GC apenas para as atividades. O total dos escores dessas escalas, segundo a opinião dos pais, correspondeu a uma classificação clínica do GE. Características referentes à competência social em indivíduos com gagueira foram descritas previamente como: comportamentos de fuga ou medo e evitação das interações sociais( 8 , 10 , 29 ); reações adversas emocionais e cognitivas nas situações comunicacionais rotineiras( 3 ); prejuízos no domínio social ou dificuldades nas interações sociais( 3 , 4 , 21 ); dificuldade de desenvolver relacionamentos com parceiros( 12 ); e incapacidade de comunicar-se efetivamente na vida diária( 7 ). Destaca-se que, embora a estratégia de fuga, aparentemente, se mostre efetiva para diminuir tanto a gagueira como a reação emocional negativa, ela não propicia a comunicação ou o desenvolvimento social( 29 ).
Quanto à severidade da gagueira, os resultados corroboraram pesquisas prévias que afirmaram que a gagueira pode influenciar nas interações sociais( 4 , 11 ). Ressalta-se que, segundo relato dos pais, o grupo de indivíduos com gagueira severa mostrou uma tendência de apresentar escores classificados como clínicos, quando comparada com os casos de gagueira moderada e leve. Algumas características comportamentais foram diferentes nos indivíduos com gagueira em comparação aos fluentes, e algumas dessas diferenças podem estar associadas com mudanças na frequência da gagueira( 30 ).
Em síntese, esses achados contribuíram para classificar o comportamento e a competência social de indivíduos com gagueira, segundo a opinião dos pais, com a utilização do inventário CBCL, e também para reforçar a importância da avaliação do comportamento em indivíduos com esse distúrbio. A compreensão da gagueira como multidimensional permite ao profissional uma visão mais ampla e mais contextualizada de como esse distúrbio de comunicação pode impactar o comportamento e aspectos sociais dos indivíduos que gaguejam.
É fato que uma das limitações do estudo seria a utilização de inventário que considera a opinião dos pais, e não a comparação dessa percepção com a avaliação dos aspectos comportamentais e sociais desses indivíduos com gagueira. Investigações complementares poderão confirmar esses achados e sinalizar para um melhor entendimento do impacto da gagueira no comportamento e na vida dos indivíduos.
Na opinião dos pais, os filhos com gagueira apresentam comportamento e competência social peculiar, com maior tendência a manifestar alterações nessas áreas, em comparação com os filhos fluentes. Medo, nervosismo/tensão, culpa, ansiedade, perfeccionismo e preocupação foram as alterações mais frequentes relacionadas ao comportamento, enquanto prejuízos no domínio social e nas situações comunicacionais rotineiras caracterizaram a competência social dos indivíduos com gagueira.
A caracterização do comportamento e da competência social dos indivíduos que gaguejam pode auxiliar na compreensão da multidimensionalidade da gagueira, bem como nortear a prática diagnóstica e terapêutica desse distúrbio.