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Perfil da profilaxia antirrábica humana pré-exposição no estado do Rio Grande do Sul, 2007-2014

Perfil da profilaxia antirrábica humana pré-exposição no estado do Rio Grande do Sul, 2007-2014

Autores:

Roberta Silva Silveira da Mota,
Luiz Filipe Damé Schuch,
Dóris Gómez Marcos Schuch,
Christieli Prestes Osmari,
Tássia Gomes Guimarães

ARTIGO ORIGINAL

Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde vol.25 no.3 Brasília jul./set. 2016

http://dx.doi.org/10.5123/s1679-49742016000300007

Abstract

OBJECTIVE:

to describe the profile of healthcare provision regarding rabies pre-exposure prophylaxis (RPrEP) in the state of Rio Grande do Sul, Brazil, as compared with the Technical Standards for Rabies Prophylaxis in Humans.

METHODS:

this was a descriptive study using Notifiable Disease Information System data on anti-rabies healthcare provided between 2007 and 2014.

RESULTS:

only 2.4% of anti-rabies healthcare related to RPrEP (5,721/239,245), 42.5% of these were veterinary, biology and zootechnics students and 10.3% were professionals from the same areas; individuals aged 20 to 64 accounted for 71.8% of the total number of people vaccinated and the frequency of this form of prophylaxis was 53.5/100,000 inhabitants for the state as a whole, varying between 13.1 to 185.1/100,000 inhabitants in the state's different health districts.

CONCLUSION:

RPrEP frequency was found to be low, suggesting that this rabies prevention tool has been neglected, leaving a large number of people at occupational risk.

Key words: Rabies; Rabies Vaccines; Occupational Health; Epidemiology, Descriptive.

Resumen

OBJETIVO:

describir el perfil de atendimientos para profilaxis antirrábica pré-exposición humana (ParPE) realizados en el estado de Rio Grande del Sur, Brasil, conforme a las normas técnicas de Profilaxis de Rabia Humana.

MÉTODOS:

estudio descriptivo transversal utilizando datos del Sistema de Información de Enfermedades de Declaración Obligatoria (Sinan) entre 2007 y 2014, referentes a atendimientos antirrábicos notificados.

RESULTADOS:

solamente 2,4% de los atendimientos antirrábicos realizados correspondieron a ParPE (5.721/239.245), siendo que 42,5% eran estudiantes, 10,3% profesionales del área de Veterinária, Biologia y Zootecnia y 4,3% tuvieran ocupación ignorada; 71,8% de los individuos inmunizados tenía entre 20 y 64 años, y la incidencia de profilaxis fue de 53,5/100 mil habitantes, con una variaciones regionales entre 13,1 y 185,1/100.000 hab.

CONCLUSIÓN:

observamos una baja frecuencia de ParPE, lo que sugiere que esta herramienta de prevención contra la rabia está descuidada, colocando en riesgo un gran número de personas.

Palabras-clave: Rabia; Vacunas Antirrábicas; Salud Laboral; Epidemiología Descriptiva.

Introdução

A raiva é uma zoonose viral que causa encefalite aguda e afeta todos os mamíferos, apresentando letalidade de praticamente 100%. A raiva continua sendo um grave problema de Saúde Pública, responsável, a cada ano, por milhares de mortes no mundo, tanto de animais como de seres humanos, principalmente nos países em desenvolvimento. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que, anualmente, mais de 15 milhões de pessoas recebam profilaxia pós-exposição para prevenir a doença.1

Havendo suspeita de exposição humana ao vírus rábico, é possível prevenir a infecção com a utilização de um esquema de profilaxia, aplicado de maneira oportuna e correta, baseado no uso de imunobiológicos (vacina, soro heterólogo, imunoglobulina antirrábica).1-4

Entre os anos de 1990 e 2009, foram registrados no Brasil 574 casos de raiva humana, para os quais, até 2003, o principal transmissor foi o cão. A partir de 2004, o morcego passou a disputar essa posição,2,5 tendo sido responsável por 22 casos em 2004 e 42 em 2005.

No estado do Rio Grande do Sul, o último caso registrado em humanos data de 1981.6 Em caninos, o último caso diagnosticado, associado com variantes do vírus endêmicas nessa espécie, ocorreu em 1988.7 Em 1990, houve um único caso isolado de raiva em um gato, cuja fonte de infecção não foi identificada. Posteriormente, ocorreram dois casos de infecção com variantes do vírus prevalentes em morcegos, de um felino em 20017,8 e de um canino em 2007.7,9 Mais recentemente, no ano de 2013, foi diagnosticado no estado um felino infectado com variante de Desmodus rotundus no município de Passa Sete; e em janeiro de 2014, no município do Capão do Leão, outro caso de raiva em felino, este causada por variante de morcego insetívoro Tadarida brasiliensis. Em 2015, foi registrada a única ocorrência no município de Rio Grande, onde um gato foi diagnosticado com raiva causada por variante de Tadarida brasiliensis.10,11,12 Apesar dessas ocorrências, o Rio Grande do Sul permanece com status de 'zona livre de raiva urbana'9 por não apresentar circulação de variantes caninas e endemicidade para as variantes 3 (D. rotundus) e 4 (T. brasiliensis).

Os esquemas de profilaxia da raiva humana no Brasil seguem as normas técnicas preconizadas pelo Ministério da Saúde,2 pautadas nas recomendações da OMS, e incluem o tratamento logo após a exposição ao vírus - profilaxia antirrábica pós-exposição -, assim como a vacinação - profilaxia antirrábica pré-exposição (PArPE) - de pessoas que, devido à natureza de suas atividades, estão expostas ao risco.2-4,13 O país utiliza desde 2003, em todo Sistema Único de Saúde (SUS), vacina de cultivo celular2,14 que confere resposta imunológica mais precoce e mais duradoura, e menos eventos adversos que a vacina Fuenzalida & Palácios utilizada até então.2

A PArPE é recomendada para veterinários, tratadores de animais, biólogos de campo, espeleólogos, pesquisadores e técnicos de laboratório que tenham contato com sangue animal ou humano porventura contaminado com o vírus da raiva. Da mesma forma, pessoas que devam viajar para estados ou países com alta prevalência de raiva e que, por algum motivo ou pela natureza das atividades que desempenharão, estarão expostas ao risco ocupacional de contrair a doença, devem ser imunizadas.2-4,13 Essa forma de abordagem profilática, se não elimina a necessidade de profilaxia após exposição ao vírus, simplifica-a.2,3 A PArPE consiste na aplicação de três doses de vacina por via intradérmica (ID) ou intramuscular (IM), nos dias zero, sete e 28.2-4,15 A OMS recomenda que todos os indivíduos pertencentes aos grupos de risco, que mantiverem contato permanente com o vírus da raiva, devam ser avaliados por meio da titulação de anticorpos antirrábicos a cada seis meses, e uma dose de reforço vacinal deverá ser administrada sempre que o título estiver abaixo de 0,5UI/ml.2,4

O presente trabalho teve por objetivo descrever o perfil dos atendimentos para profilaxia antirrábica pré-exposição - PArPE - realizados no estado do Rio Grande do Sul, Brasil, no período de 2007 a 2014.

Métodos

Foi realizado um estudo descritivo transversal com dados secundários do Sistema Nacional de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde.

Foram incluídas as notificações de atendimento antirrábico humano dos municípios do estado referentes ao período 2007-2014, obtidas no Sinan-net. Os dados encontrados nesse sistema são oriundos das fichas de notificação e investigação do agravo 'atendimento antirrábico humano'. Os dados foram extraídos utilizando-se a plataforma TabWin 32 e tabulados em planilha eletrônica do software Microsoft Office(r) Excell 2010.

Foram consideradas as seguintes variáveis: sexo (masculino; feminino), idade (faixa etária gerada no TabWin 32 e designada pelo Sinan, em anos: <1; 1-4; 5-9; 10-14; 15-19; 20-34; 35-49; 50-64; 65-79; e ≥80), ocupação, regional de saúde (o estado possui 19 regionais de saúde) e antecedentes de profilaxia antirrábica pré-exposição (sim; não).

Em relação à classificação das ocupações dos indivíduos atendidos, o Sinan se baseia no Cadastro Brasileiro de Ocupações (CBO). Devido à diversidade de ocupações encontradas, optou-se por classificá-las em seis grupos, de acordo com o tipo de exposição a animais: Grupo 1 - Estudantes (todos os níveis), incluídos os estudantes de medicina veterinária, biologia e zootecnia não identificados pela ficha de atendimento; Grupo 2 - Ocupações de qualquer nível de escolaridade sem exposição ocupacional a animais, tais como advogado, sapateiro, secretária, corretor de imóveis, borracheiro, administrador etc.; Grupo 3 - Ocupações de nível superior, incluindo professor, com exposição ocupacional direta a animais, tais como médico veterinário, biólogo, zootecnista etc.; Grupo 4 - Ocupações de nível médio, fundamental ou sem escolaridade com exposição ocupacional direta a animais e/ou a produtos de origem animal, tais como abatedor, adestrador de animais, açougueiro, inseminador, esteticista de animais domésticos etc.; Grupo 5 - Ocupações passíveis de exposição ocupacional a animais, tais como agente comunitário de saúde, carteiro, coletor de lixo, praça do exército, guarda civil municipal etc.; e Grupo 6 - Ocupação ignorada.

Para a estimativa de profissionais em risco laboral, com indicação para PArPE, utilizou-se o quantitativo desses profissionais em atividade nas ocupações de interesse. Esses dados foram obtidos junto aos respectivos conselhos profissionais (de Veterinária e Biologia), mediante consulta formal realizada no ano de 2012 (dados de julho de 2012). Os dados referentes a estudantes foram obtidos dos editais de abertura para seleção das respectivas faculdades públicas, na área de abrangência do estudo (ano de obtenção: 2012).

Para o cálculo da frequência de PArPe, utilizou-se como numerador o número de casos, e como denominador, a população total ou a população das áreas adstritas às 19 regionais de saúde do Rio Grande do Sul. Os dados de população são os mesmos do censo demográfico de 2010, disponibilizados pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e obtidos na página eletrônica do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus), do Ministério da Saúde.16

Com relação às categorias profissionais em risco (médicos veterinários, biólogos e zootecnistas), efetuou-se o cálculo da frequência esperada para esses profissionais, tendo como numerador o número de profissionais obtidos dos conselhos regionais no ano de 2012 multiplicado por 0,8 (que corresponde ao período dos oito anos analisados), dividido pelo tempo médio de revacinação dos profissionais, estimado em dez anos.17 Para os estudantes, calculou-se a frequência esperada multiplicando-se o número anual de ingressantes nas faculdades públicas pelo período focado no estudo (oito anos). Em ambos, foi utilizado o mesmo denominador: a população total do estado do Rio Grande do Sul de acordo com o censo demográfico de 2010.

O presente estudo foi realizado exclusivamente com dados secundários, sem identificação dos sujeitos, de modo que foi dispensado de apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa. O uso do banco de dados da base Sinan foi devidamente autorizado pela Secretaria Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul, referente às 'notificações de atendimento antirrábico humano dos municípios do estado do Rio Grande do Sul'.

Resultados

Foram realizados 239.245 atendimentos antirrábicos humanos pelos serviços do SUS no estado do Rio Grande do Sul, entre 2007 e 2014. Desses atendimentos, 5.721 (2,4%) corresponderam à PArPE, cuja frequência foi de 53,5/100 mil habitantes no período.

Do total de usuários que receberam atendimento antirrábico, 3.667 (1,5%) apresentaram antecedentes de profilaxia antirrábica pré-exposição; 81% (194.452), não possuíam antecedentes, enquanto 17% (41.126) foram classificados como dados perdidos, seja pelo não preenchimento do campo relacionado na ficha de investigação, seja porque foram declarados como antecedente 'ignorado'.

A distribuição dos atendimentos para PArPE conforme grupos de ocupação é apresentada na Tabela 1. Verificou-se atendimento para profilaxia antirrábica humana pré-exposição em indivíduos com 212 diferentes ocupações autodeclaradas. Quase metade das PArPE (42,5%) foram realizadas no Grupo 1, formado por estudantes: n=1.344, valor inferior aos 1.380 ingressantes nos cursos de medicina veterinária, biologia e zootecnia nas escolas públicas em um único ano, 2012, expondo a subutilização da ferramenta de prevenção. Da mesma forma, para o Grupo 3, 'Ocupações de nível superior, incluindo professor, com exposição ocupacional direta a animais', em que estão incluídos os profissionais da área de medicina veterinária, biologia e zootecnia, foram realizados somente 327 esquemas profiláticos. A estimativa do número de profissionais - dessas profissões - em atuação no estado foi de 15.396. Ainda que se atendesse à expectativa de duração da imunidade vacinal de dez anos, seriam necessárias, aproximadamente, 1.500 doses de reforço por ano. No Grupo 2, 'Ocupações de qualquer nível de escolaridade sem exposição ocupacional a animais', foram realizadas 702 (22,2%) PArPE, sugerindo indicação inadequada - resguardados os casos em que atividades especificas dos indivíduos, não referidas na ficha de atendimento, justificassem a aplicação desnecessária de PArPE para esses grupos ocupacionais.

Tabela 1 - Distribuição da profilaxia antirrábica humana pré-exposição (N=5.721) segundo grupos de ocupações e sexo no estado do Rio Grande do Sul, 2007-2014 

a) Excluídos 2.558 atendimentos (44,7% do total de 5.721 atendimentos para profilaxia antirrábica pré-exposição) em razão de campos não preenchidos na ficha de notificação (dados perdidos).

Quanto ao sexo, 53% dos imunizados foram homens e 47%, mulheres (Tabela 1).

A frequência da PArPE nas 19 regionais de saúde do Rio Grande do Sul, para o período considerado pelo estudo, pode ser visualizada na Tabela 2, revelando ampla variação: de 13,1 a 185,1/100 mil habitantes.

Tabela 2 - Frequência de atendimento antirrábico humano pré-exposição (PArPE) por regional de saúde do estado do Rio Grande do Sul, 2007-2014 

a) Dados do Censo 2010/Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

A distribuição das PArPEs quanto à faixa etária está demonstrada na Figura 1. A idade de 20-34 anos correspondeu a 41% do total de indivíduos imunizados, acompanhada pela idade de 35-49 anos, de 20%. Em seguida, apresentaram-se as faixas etárias de 50-64 e 15-19 anos, com percentuais de 11% e 10%, respectivamente.

Figura 1 - Distribuição da frequência do atendimento antirrábico humano pré-exposição por faixa etária (N=5.721) no estado do Rio Grande do Sul, 2007-2014 

A população total de risco laboral considerada no estudo foi constituída por 8.664 médicos veterinários, 6.256 biólogos e 475 zootecnistas, e 1.380 estudantes ingressantes nos cursos de medicina veterinária, zootecnia e biologia de faculdades públicas do Rio Grande do Sul, no ano de 2012. Assim, estimou-se em 125,5/100 mil o número de profissionais e em 103,2/100 mil o número de estudantes que deveriam receber a PArPE anualmente, no estado do Rio Grande do Sul. Somando-se ambas as frequências, estimou-se o valor de 228,7/100 mil como frequência mínima esperada dentro das categorias de risco para o período de oito anos.

Discussão

O presente estudo encontrou uma baixa utilização da ferramenta de prevenção antirrábica, com frequência de PArPE de 53,5/100 mil habitantes no Rio Grande do Sul, no período 2007-2014. Foi possível observar a utilização desigual da PArPE nas diferentes regionais de saúde do estado, com variação de 13,1 a 185,1/100 mil habitantes. Além disso, deve-se ressaltar o alto percentual de campos não preenchidos ou preenchidos incorretamente, nas fichas de atendimento, bem como a indicação inadequada de PArPE, demonstrada por seu uso expressivo em grupos ocupacionais ou faixas etárias não considerados sob risco, sugerindo utilização da ferramenta sem considerar o protocolo do programa.

A frequência de PArPE neste estudo sofre influência do uso inadequado da ferramenta, tanto por sua subutilização naqueles considerados sob risco, o que reduz a frequência da profilaxia, como por sua utilização em usuários sem indicação, o que implica aumento dessa frequência.

A PArPE é uma medida eficaz na proteção de pessoas com alto risco ou risco ocupacional de contrair raiva. Ela é recomendada e sua importância salientada pela OMS, Centers for Disease Control and Prevention dos Estados Unidos da América (CDC/USA) e pesquisadores dedicados ao controle da raiva humana em todas as partes do mundo.3,4,13,18 Casos de exposição ocupacional a saliva de herbívoros são relatados na bibliografia brasileira.14,19 O risco ocupacional é evidente. No Brasil, a vacina é disponibilizada gratuitamente pelo SUS, não havendo justificativa para que a profilaxia não seja realizada. Mesmo em países livres de raiva, caso da Inglaterra, a vacinação de profissionais expostos ao risco ocupacional é defendida por especialistas na área, uma vez que existe o risco de contato com morcegos ou outros animais silvestres portadores do vírus, assim como de animais de companhia vindos de outros locais, devido ao intenso trânsito desses animais observado atualmente.20

Neste trabalho, uma vez constatada a subutilização da PArPE no Rio Grande do Sul e tendo em vista a alteração do perfil epidemiológico da raiva com a expansão do ciclo silvestre, também observada no estado,14,21,22 é notório o persistente risco de transmissão, ademais flagrante entre os grupos ocupacionais com exposição a animais. Tal fato é corroborado por dados da coordenação gaúcha do Programa Nacional de Controle da Raiva dos Herbívoros, no âmbito da Secretaria Estadual da Agricultura, Pecuária e Irrigação. De 2007 a 2014, foram registrados 16.850 casos de raiva em herbívoros; e em 2015, somente até o mês de julho, 980 animais morreram de raiva no estado (diagnósticos estabelecidos por critérios laboratoriais e/ou clínico-epidemiológicos).23 Já o Instituto de Pesquisas Veterinárias Desidério Finamor, órgão da Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária e laboratório de referência para o diagnóstico de raiva animal no Rio Grande do Sul, diagnosticou, de 2007 a 2014, 866 animais positivos para raiva, em sua maioria bovinos (698) ou morcegos (106). São dados que reforçam a importância da PArPE no estado onde, não obstante o controle do ciclo urbano, o ciclo silvestre da infecção permanece ativo, inclusive com o diagnóstico de morcegos não hematófagos positivos para raiva em zonas urbanas.9,14,21,22 Sendo a reemergência do ciclo urbano um risco possível, deve-se manter a vigilância em alerta constante.

Considerando-se a população de profissionais e estudantes de nível superior sob maior risco para raiva, pode-se constatar a subutilização da ferramenta, já que o número de indivíduos estimado para essas categorias foi superior ao número de PArPE realizados durante o período do estudo. Deve-se considerar que o número de indivíduos estimado no presente estudo é o mínimo esperado: não foram incluídos estudantes de escolas particulares, assim como outros profissionais, os quais, pela natureza de sua atividade, poder-se-iam encontrar sob risco elevado.

A falta de preenchimento do campo 'ocupação' das fichas de atendimento antirrábico sugere o desconhecimento da importância da correta coleta de dados para avaliação do sistema de saúde e formulação de políticas adequadas a cada situação epidemiológica. Esse elevado número de registros como 'ignorado' e, principalmente, de campos para preenchimento deixados em branco (44,7%) pode determinar um viés de informação, interferindo na mensuração do uso da PArPE. Não obstante a possibilidade desse viés, os dados demonstram a subutilização da PArPE quando comparada com aquela esperada para os profissionais sob risco, assim como sua utilização em situações indevidas: por exemplo, em crianças menores dez anos, para as quais não há indicação nas normas técnicas de acordo com a situação epidemiológica do Rio Grande do Sul.2

A maior ocorrência de pré-exposição nos indivíduos em atividade profissional na faixa etária entre 20 e 49 anos, portanto economicamente ativos, vai ao encontro do esperado e preconizado pela norma técnica. A idade de 20 a 34 anos, observada como a de maior frequência de uso, provavelmente também inclui estudantes a se formar nas profissões de maior risco, justamente o grupo ocupacional mais vacinado. Observou-se a ocorrência de PArPE nas faixas etárias de <1 a 10-14 anos, demonstrando que, provavelmente, houve indicação inadequada da vacina. Neste estudo, constatou-se falta de informações, dados imprecisos ou erros de preenchimento nas Fichas de Investigação do Agravo, bem como na digitação dos dados no Sinan, evidenciados pela alta proporção de dados ignorados ou não preenchimento do campo 'ocupação'. Outros estudos realizados no país também verificaram a ocorrência excessiva de campos em branco ou com resposta 'ignorado' nas fichas de atendimento antirrábico.24,25,26,27 Quando se considera a raiva humana, o desconhecimento da ocupação do indivíduo investigado/notificado representa um fato grave, uma vez que a profilaxia pré-exposição é direcionada a grupo de indivíduos suscetíveis pelo risco ocupacional. O achado pode ser um importante sinalizador de que os servidores da Saúde responsáveis por esse atendimento necessitam de capacitação.

A frequência de PArPE variou substancialmente, entre as coordenadorias de saúde. A frequência mais elevada foi observada na região de saúde sediada no município de Santa Maria, e as mais baixas, nas regionais de saúde de Lajeado e Santa Cruz do Sul, geograficamente próximas entre si. É possível supor que fatores como as condições socioculturais da região, a presença de universidades de tradição e a sensibilidade das equipes de saúde à norma técnica sejam fatores capazes de influenciar na aplicação da PArPE.

Uma limitação deste estudo consistiu na qualidade dos dados secundários, relacionada à qualidade da informação obtida, à variação na qualidade da coleta de dados, segundo diferentes locais, e a falhas em sua digitação. Entretanto, o baixo custo e a facilidade para o acompanhamento longitudinal das informações estimulam a realização deste tipo de trabalho.28,29

É fundamental a conscientização dos grupos de risco quanto à importância da imunização antirrábica pré-exposição e controle sorológico de anticorpos, para identificar as situações necessitadas de reforço da vacina. Devem-se intensificar as ações de capacitação, e sensibilizar as equipes de saúde responsáveis pelos atendimentos antirrábicos para o adequado acolhimento desses indivíduos. Da mesma forma, a realização e divulgação dos resultados dos testes sorológicos para avaliação do título de anticorpos protetores contra a raiva, encarregada à rede laboratorial de raiva, deve ser ágil e oportuna.

O estudo concluiu que houve subutilização dessa importante ferramenta de prevenção da raiva. Os dados encontrados remetem à necessidade da qualificação das equipes de saúde responsáveis pelo atendimento antirrábico humano, no que tange à abordagem dos indivíduos e definição dos grupos de risco para os quais a PArPE é indicada. No esteio dessa qualificação, é igualmente recomendável o aprimoramento de todo o processo de notificação e investigação do agravo, desde a coleta até a digitação dos dados no sistema de informação (Sinan). Deve-se aprimorar o sistema mediante a (i) aplicação adequada da PArPE nas categorias profissionais de maior risco e (ii) redução de seu uso naquelas ocupações em que a exposição é improvável.

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