versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.27 no.6 São Paulo nov./dez. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20152015043
A aprendizagem da leitura e da escrita envolve muitos fatores, entre eles os biológicos e cognitivos, emocionais, familiares, ambientais, sócio-econômicos e pedagógicos. Por isso, é um tema de interesse multidisciplinar, tanto nos meios educacionais, quanto acadêmicos e clínicos.
A maioria das crianças aprende a ler e escrever sem problemas, porém algumas apresentam dificuldades na aquisição e desenvolvimento dessas habilidades. Na população brasileira1, 30 a 40% das crianças nas primeiras séries escolares possuem alguma dificuldade. Além disso, as queixas de dificuldades escolares representam 35% dos motivos de consultas pediátricas e são responsáveis por 45% dos atendimentos em saúde mental no mundo.
A recente Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios2 identificou que 8% das crianças e adolescentes entre 4 e 17 anos estão fora da escola e 51% das crianças do 3º ano do Ensino Fundamental têm defasagem em leitura; destas, provavelmente algumas possuem transtornos específicos de aprendizagem, como a dislexia.
A dislexia é uma dificuldade severa e específica na aquisição da leitura, que é inesperada em relação às outras habilidades cognitivas e acadêmicas. Essa dificuldade não pode ser atribuída a alterações sensoriais ou neurológicas e estima-se que afeta cerca de 3 a 7% da população3 4 5.
No nível cognitivo, existe um consenso de que a maioria dos indivíduos com dislexia possui o que é comumente chamado de "déficit fonológico", isto é, uma alteração em alguns aspectos da representação ou do processamento de sons da fala. Evidências desse déficit fonológico vêm de três sintomas comportamentais principais: dificuldade nas habilidades de consciência fonológica, memória operacional fonológica e lentidão no acesso lexical fonológico.
Recentemente, várias pesquisas têm investigado se as mesmas habilidades cognitivas estão envolvidas na aquisição da leitura e na dislexia, em outras línguas e ortografias, já que a maioria dos achados decorre de investigação com falantes e leitores do inglês. Alguns dos idiomas estudados foram o finlandês, o húngaro, o alemão, o francês, o holandês e o português europeu. Os achados demonstraram que, em todas essas línguas, as tarefas de consciência fonológica e nomeação automática rápida relacionavam-se tanto com o desenvolvimento da leitura quanto com a dislexia3 4 6 7.
Assim, o objetivo do presente estudo foi contribuir para o entendimento da dislexia em crianças brasileiras, caracterizando o perfil de linguagem e de habilidades cognitivas, contribuindo assim para o diagnóstico desse quadro em leitores de uma ortografia regular como o português brasileiro.
Para a realização deste estudo, foram avaliadas 110 crianças provenientes do Ambulatório de Distúrbios de Aprendizagem do NANI (Núcleo de Atendimento Neuropsicológico Infantil Interdisciplinar). Todas foram submetidas a avaliação interdisciplinar englobando aspectos neuropsicológicos, fonoaudiológicos e psicopedagógicos. Quando houve indicação clínica, com base nas avaliações anteriores, a criança também era submetida à avaliação familiar, psicológica, psiquiátrica, pediátrica ou neuropediátrica.
A partir da amostra descrita acima, foram selecionadas 47 crianças com dislexia (Grupo Dislexia - GD), de ambos os sexos, e idades entre 8 a 14 anos. Os critérios para o diagnóstico de dislexia foram: dificuldades de leitura e de escrita persistentes desde o início da alfabetização, alterações peculiares na acurácia da leitura e escrita, lentidão na velocidade de leitura. Os critérios de exclusão foram: presença de comorbidades (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade, Discalculia, Transtorno Específico de Linguagem, Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação), presença de distúrbios motores ou de linguagem; alterações neurológicas e/ou psiquiátricas; intercorrências pré, peri ou pós natais que possam ocasionar alterações neurológicas; nascimento anterior à 36ª semana de gestação ou peso menor de 2000 g.
Também participaram 78 crianças com bom desempenho acadêmico, divididas em dois grupos controle: Grupo Controle por Idade (GCI), composto por 41 crianças pareadas por idade, sexo e tipo de escola; e Grupo Controle por Leitura (GCL), composto por 37 crianças pareadas por nível de leitura a partir do sub-teste de leitura do Teste de Desempenho Escolar - TDE8, sexo e tipo de escola. Essas crianças foram avaliadas na própria escola com a bateria usada neste estudo. Os critérios de exclusão foram: presença de distúrbios de linguagem, motor ou emocional; alterações neurológicas e/ou psiquiátricas; intercorrências pré, peri ou pós natais que possam ocasionar alterações neurológicas; nascimento anterior à 36ª semana de gestação ou peso menor de 2000 g.
Todas as crianças do estudo apresentavam QI Total acima de 90 e os responsáveis por elas assinaram o Termo de Consentimento. Todos os procedimentos do presente estudo foram previamente aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa, CEP 0251/06.
Cada uma das crianças foi avaliada com uma bateria de avaliação composta por testes e tarefas envolvendo linguagem oral, leitura, escrita e memória operacional e episódica, realizada em 2 sessões de, aproximadamente, 1 hora cada. A bateria de avaliação está descrita abaixo.
Desempenho Escolar:
• Teste de Desempenho Escolar - TDE8: composto de 3 subtestes: Escrita, Leitura e Aritmética.
Linguagem Oral
Componente Semântico
• Teste de Vocabulário do ABFW - Teste de Linguagem Infantil9: nomeação de 118 figuras.
Componente Sintático
• Complementação de Sentenças10: completar frases apresentadas oralmente pelo avaliador.
Componente Fonológico:
• Prova de Discriminação de Fonemas10: pares de palavras que a criança deve dizer se são diferentes ou não.
• CONFIAS - Consciência Fonológica: Instrumento de Avaliação Sequencial11: composto pelos níveis da sílaba (síntese, segmentação, identificação de sílaba inicial, identificação de rima, produção de palavra com a sílaba dada, identificação de sílaba medial, produção de rima, exclusão e transposição) e do fonema (produção de palavra que inicia com o som dado, identificação de fonema inicial, identificação de fonema final, exclusão, síntese, segmentação, transposição).
Compreensão oral
• Compreensão de sentenças12: apontar para a figura que representa a frase que foi dita oralmente.
Leitura
• Nomeação de letras.
• Leitura de palavras e pseudopalavras13: selecionadas 15 palavras de alta frequência, 15 de baixa frequência e 15 pseudopalavras, todas distribuídas de forma equivalente em relação à regularidade e comprimento (Anexo).
• Velocidade de leitura silenciosa e em voz alta: leitura de um texto silenciosamente e outro em voz alta. Foram apresentados textos variando em relação ao nível de complexidade para cada série ("As duas rãs", "O Diamante", "História de Assombração", "Os três irmãos").
• Compreensão de leitura: depois da leitura dos textos da prova anterior, foram feitas e respondidas oralmente perguntas referentes a cada um.
Ao final, os erros cometidos nas tarefas de leitura são somados, transformados em porcentagem e classificados de acordo com os seguintes critérios: trocas auditivas (trocas envolvendo grafemas que representam fonemas e se distinguem pelo traço de sonoridade, ex.: p/b, t/d, c/g/, f/v, s/z, ch/j), trocas visuais (trocas entre grafemas que são parecidos viso-espacialmente, ex.: p/q, m/n), omissões, inversões e acréscimos. Demais trocas são classificadas como "outras" (ex.: trocas pedagógicas, além daquelas sem classificação).
Escrita
• Ditado de letras.
• Ditado de palavras e pseudopalavras13: selecionadas 15 palavras de alta frequência, 15 de baixa frequência e 15 pseudopalavras, todas distribuídas de forma equivalente em relação à regularidade e comprimento (Anexo).
• Redação temática: escrita de uma história a partir de uma figura temática.
Ao final, os erros cometidos nas tarefas de escrita também foram somados, convertidos em porcentagem e classificados de acordo com os seguintes critérios: trocas auditivas, trocas visuais, trocas ortográficas, omissões, inversões, acréscimos e outras (conforme descrito anteriormente).
Memória Operacional Fonológica
• Dígitos (WISC-III)14 - ordem direta (avalia o componente de armazenamento da memória operacional fonológica) e ordem inversa (avalia o componente de manipulação da memória operacional fonológica).
• Teste de Repetição de Pseudopalavras para Crianças Brasileiras - BCPR15: composto por 40 pseudopalavras.
Memória Operacional Viso-Espacial
• Blocos de Corsi - ordem direta (avalia o componente de armazenamento da memória operacional viso-espacial) e ordem inversa (avalia o componente de manipulação da memória operacional viso-espacial): composto por um tabuleiro branco com 9 cubos azuis. O examinador aponta alguns cubos e o examinando repete o movimento feito pelo examinador na mesma ordem. Depois, é feita a mesma coisa, mas o examinando deve repetir o movimento em ordem indireta.
Memória Semântica
• Fluência Semântica: produção espontânea de palavras que pertençam a determinadas categorias semânticas (animais e frutas), durante 1 minuto.
• Fluência Fonológica (F. A. S.): produção espontânea de palavras que comecem com uma determinada letra (F, A e S), durante 1 minuto.
Memória Episódica
• Memória Lógica: trata-se da recordação imediata e tardia (após 30 minutos) de uma história contada oralmente.
A análise estatística foi realizada utilizando-se o pacote estatístico SPSS Versão 18. O nível de significância adotado foi de 5%.
Para a análise das variáveis nominais, foi realizado o teste Chi-Quadrado. Para as variáveis numéricas, inicialmente foi realizado o Teste de Levene para verificação da distribuição. Quando as variáveis possuíam distribuição normal, foi realizado o Teste de Análise de Variâncias (ANOVA), com teste a posteriori de Tukey. Já para as variáveis que não possuíam distribuição normal, foi realizado o teste não paramétrico Kruskal-Wallis seguido de Mann-Whitney para as análises posteriores, utilizando-se a correção de Bonferroni. Assim, o nível de significância foi de 2%.
Por fim, foi realizada a Análise Discriminante a fim de verificar quais variáveis melhor discriminam os grupos.
A média do desempenho de leitura do grupo GD foi compatível ao 2º ano do Ensino Fundamental. A caracterização da amostra está descrita no Quadro 1. Não houve diferenças entre sexo e tipo de escola (p=0,7). O GD e GCI têm uma média de idade maior em relação ao GCL, o que já era esperado pelo pareamento realizado (p≤0,001).
Nas tarefas de linguagem oral, verificamos que o GCL apresentou desempenho significativamente abaixo dos grupos GD e GCI (p=0,02 / p<0,001) na tarefa de vocabulário (aspecto semântico). Porém, esses dados são esperados dentro do desenvolvimento da linguagem, já que os componentes do GCL são mais novos que os componentes dos demais grupos. Em relação à tarefa de complementação de sentenças (aspecto sintático), o GD apresentou desempenho significantemente abaixo dos grupos GCI e GCL (p<0,001 / p < 0,001). Na tarefa de compreensão oral de sentenças, tanto o GD como o GCL (p=0,001 / p=0,001) apresentaram desempenho significativamente abaixo do grupo GCI. Esse resultado também é esperado dentro do desenvolvimento da linguagem para o GCL, mas não para o GD, que apresenta a mesma média de idade do GCI.
Não foram observadas diferenças entre os grupos na discriminação de fonemas. Já quanto à consciência fonológica, envolvendo o escore das tarefas silábicas, fonêmicas e o total geral, verificamos que o GD apresentou desempenho significativamente abaixo dos grupos GCI (p<0,001 / p<0,001 / p<0,001) e GCL (p<0,001 / p=0,003 / p<0,001) e o GCL apresentou desempenho significativamente abaixo do grupo GCI (p=0,003 / p=0,002 / p=0,001). Assim, o desempenho do GD é pior que o GCL que, por sua vez, é pior que o GCI. Esse resultado também é esperado dentro do desenvolvimento da linguagem para o GCL, mas não para o GD que apresenta a mesma média de idade do GCI.
As Figuras 1 e 2 apresentam a análise de cada tarefa de consciência fonológica, no nível da sílaba e do fonema respectivamente.
# GD<GCI; *GD<GCI e GCL; &GCL<GCI
Figura 1: Porcentagem média de acertos nas tarefas silábicas de consciência fonológica.
*GD<GCI e GCL; &GCL<GCI; #GD<GCI
Figura 2: Porcentagem de acertos nas tarefas fonêmicas de consciência fonológica.
Na Tabela 1 é analisada cada tarefa de leitura e escrita (leitura de letras, palavras, pseudopalavras e textos) e na Tabela 2 os tipos de erros cometidos em todas essas tarefas.
Tabela 1: Média de Acertos e Desvio Padrão nas Tarefas de Leitura e Escrita
a diferença estatisticamente significante em relação ao GCI; b diferença estatisticamente significante em relação aos outros 2 grupos.
Tabela 2: Média da Porcentagem de Erros e Desvio Padrão nas Atividades de Leitura e Escrita
a diferença estatisticamente significante em relação ao GCI; b diferença estatisticamente significante em relação aos outros 2 grupos
A Tabela 3 descreve os resultados das tarefas de memória operacional fonológica e visoespacial.
Tabela 3: Média de Acertos e Desvio Padrão nas Tarefas de Memória Operacional
a diferença estatisticamente significante em relação ao GCI; b diferença estatisticamente significante em relação aos outros 2 grupos
Quanto às tarefas de memória semântica, o GD teve um pior desempenho do que o GCI em todas as tarefas, tanto semânticas (Animais: p<0,001 / Frutas: p<0,001) quanto fonológicas (F: p<0,001 / A: p<0,001 / S: p=0,001). O GCL também apresentou pior desempenho do que o GCI em todas as tarefas (Animais: p=0,003 / Frutas: p=0,001 / F: p<0,001 / A: p<0,001), com exceção da letra "S" da tarefa semântica, sendo que esses resultados são esperados pela diferença de idade.
Em relação à tarefa de memória episódica, observamos que o GCL apresentou um pior desempenho em relação aos outros 2 grupos, tanto na recordação imediata (GD: p<0,001 / GCI: p<0,001) quanto na tardia (GD: p<0,001 / GCI: p=0,001), o que também é esperado pela diferença de idade entre eles. É importante ressaltar que o GD apresentou o mesmo desempenho que o GCI neste tipo de memória.
Por fim, apresentamos os resultados da Análise Discriminante (Tabela 4), com o intuito de verificar quais das variáveis melhor discriminam os grupos. Foram encontradas 8 variáveis discriminantes. As 5 primeiras variáveis foram as que o GD apresentou pior desempenho em relação aos outros grupos. Já nas 3 últimas, o GD apresentou desempenho adequado, ou seja, igual ao GCI, mas o GCL apresentou desempenho abaixo, pois a média de idade é menor do que os outros grupos.
O objetivo deste estudo foi contribuir para o entendimento e o diagnóstico da dislexia em crianças brasileiras.
Verificamos que as habilidades de processamento fonológico estão prejudicadas no GD, principalmente em tarefas de maior demanda. Isso também se deve ao fato da média de idade ser maior e as crianças mais velhas já terem superado as dificuldades com tarefas de menor demanda, como no caso da discriminação de fonemas, na qual não observamos diferenças entre os grupos. Além disso, essa tarefa pode não ser sensível, pois permite que a criança use como suporte as representações semânticas e ortográficas que possui16. Assim, a tarefa que se mostrou mais sensível para avaliar essa habilidade é a de consciência fonológica, abrangendo todos os graus de complexidade (sílabas e fonemas).
Isso também foi visto em estudos envolvendo várias línguas, evidenciando a importância da realização de tarefas de consciência fonológica para a avaliação da dislexia nas ortografias alfabéticas independente da consistência ortográfica de seu sistema de escrita4 6 7 17.
Outras tarefas que envolvem as habilidades de processamento fonológico e que estão alteradas no GD são as que envolvem a MOF. Nesta, novamente observamos que as crianças com dislexia apresentam maior prejuízo nas tarefas com maior demanda, pois no teste de Dígitos Ordem Direta e Inversa apresentaram desempenho pior do que o GCI e no teste BCPR o desempenho foi pior do que os dois grupos controle, principalmente na repetição de palavras maiores (4 e 5 sílabas), que sobrecarrega o sistema de memória. Assim, esses resultados confirmam que a repetição de pseudopalavras requer uma estocagem breve de formas fonológicas não-familiares e, por isso, o sujeito tem que confiar na capacidade de seu sistema de memória fonológica para decodificar e manter a nova sequência fonológica para a repetição, sendo mais sensível para a avaliação dos transtornos de aprendizagem15.
Além disso, o GD apresentou desempenho igual ao GCI na tarefa envolvendo a habilidade de memória operacional viso-espacial (Blocos de Corsi) e o GCL apresentou desempenho pior do que os grupos GD e GCI, seguindo o padrão de desenvolvimento. Portanto, a modalidade de memória operacional afetada é de domínio específico, ou seja, envolvendo o armazenamento e manipulação de material verbal, mas não viso-espacial18 19.
Na avaliação da linguagem oral, pudemos verificar que o GD não apresentou diferenças entre os grupos controle em relação ao vocabulário (aspecto semântico), sendo que ainda verificar-se que os disléxicos se baseiam mais na sua representação semântica e no contexto semântico para a compreensão20.
Em relação aos aspectos sintáticos (complementação de sentenças) e de compreensão oral (compreensão oral de sentenças), o GD apresentou dificuldades. Porém, pode ser que não haja um déficit específico nessas habilidades, mas sim reflexo do baixo desempenho no processamento fonológico, pois isso dificultaria a manutenção da frase e, consequentemente, sua análise para a realização da atividade20.
Quando observamos o perfil de leitura do GD, verificamos dificuldades desde as unidades mais básicas até as mais complexas, ou seja, desde letras até textos. O mais importante aqui é o fato de que o GD não só apresenta um desempenho pior do que o GCI, mas também do que o GCL. Portanto, as crianças disléxicas apresentam um desempenho condizente com um distúrbio, já que possuem um perfil diferente das crianças da sua idade e do mesmo nível de leitura21 22.
Nossos resultados também vão de encontro a outros estudos, que verificaram a importância da avaliação desde o reconhecimento das letras3 23. O conhecimento do nome da letra correlaciona-se fortemente com o progresso inicial na aprendizagem de leitura e escrita. Uma razão para isso é que o nome da letra contém o som que ela representa nas palavras, o que pode auxiliar a criança a aprender a correspondência entre as letras e o som e ler através da decodificação fonológica. Consequentemente, a aprendizagem das correspondências letra-som se torna mais fácil. Além disso, o conhecimento da letra pode sofrer variações de acordo com as capacidades de MOF, principalmente na sua aquisição, e da memória de longo prazo (acesso lexical) da criança. Portanto, se a aprendizagem do nome das letras ainda não está consolidada, é mais um fator que revela a dificuldade do GD com o aspecto fonológico envolvido na leitura e escrita24.
Em relação à leitura de palavras, vários estudos já referiram maior prejuízo das crianças disléxicas com o reconhecimento de palavras de baixa frequência e de pseudopalavras, o que observamos nesse estudo. Porém, também verificamos dificuldades com palavras de alta frequência. Isso sugere que a via ortográfica-lexical também está prejudicada. Uma explicação para isso é que os déficits de processamento fonológico apresentados pelas crianças com dislexia resultam em falhas na ativação da rota fonológica, que sempre contribui para o reconhecimento visual mesmo em palavras de alta frequência. Na aprendizagem normal, a prática da leitura proporciona à criança a oportunidade de familiarizar-se visualmente e memorizar as palavras da língua. A criança desenvolve uma capacidade de auto ensinamento e, quanto mais ela lê, maior é a possibilidade de aprender novos padrões de representação do léxico ortográfico24. Com o aumento da competência da leitura e do léxico ortográfico e semântico, a leitura passa a ser rápida e automática. Assim, se a associação grafema-fonema for deficiente, todo o processo de desenvolvimento da leitura será comprometido22.
Porém, esse perfil de leitura possa ser melhor explicado pelo modelo interacionista de leitura25. Isso porque, quando a palavra está sendo processada no processador ortográfico, uma estimulação é enviada às suas unidades correspondentes no processador fonológico. Se a sequência é pronunciável, então o processador fonológico manda de volta uma informação que contribuirá para a decodificação da palavra escrita. Portanto, o processador fonológico provê um sistema alfabético de suporte, indispensável para a manutenção da velocidade e para a precisão do reconhecimento da palavra necessária para a leitura, além de promover um meio de expandir a memória durante a leitura, para as palavras individualmente, essencial para a compreensão do texto. Assim, segundo o modelo interativo, todas as palavras são lidas com a ajuda do processador fonológico. A única diferença é que nos itens de baixa frequência não haveria ajuda do processador semântico ou ortográfico como nos de alta frequência, o que dificulta ainda mais a leitura desse tipo de palavras.
Com relação à velocidade de leitura do GD, esta é inferior aos dos dois grupos controle, tanto em voz alta como silenciosa. Isso pode ser explicado pelo déficit nas habilidades fonológicas, que dificultam e lentificam a decodificação das palavras. Além disso, como foi dito anteriormente, a rota lexical também está prejudicada, o que torna a leitura ainda mais lenta.
O desempenho em compreensão de leitura do GD também foi pior do que o desempenho nos dois grupos controle, nos dois tipos de leitura, o que pode ser consequência tanto da dificuldade de decodificação das palavras, como da alteração de MOF. O GCL apresentou desempenho abaixo do GCI apenas na compreensão da leitura silenciosa. Uma hipótese para isso é que, na leitura em voz alta, nós podemos também ouvir o que estamos lendo e usar mais uma via sensorial, favorecendo a compreensão. Na leitura silenciosa, não há esse apoio e a compreensão ficaria mais difícil.
Ao analisarmos os erros na leitura, o GD apresentou maior número em relação aos dois grupos controle em todos os tipos de erros, com exceção das trocas visuais, que teve um maior número do que o GCI. Isso mostra que, além da dificuldade e lentidão na decodificação das palavras, as crianças disléxicas apresentam muitos erros, mais do que as crianças do GCL.
Quando observamos o desempenho de escrita do GD, verificamos que essas crianças também apresentam dificuldades desde letras até elaboração de textos. Porém, em relação às letras, o GD não apresentou diferenças em relação ao GCL, e ambos os grupos apresentaram desempenho abaixo do que o do GCI. Isso pode sugerir que, para as crianças do GD, é mais difícil evocar o nome das letras na leitura do que se lembrar de sua forma escrita depois de ouvir o nome da letra. Quanto ao ditado de palavras, o GD também apresentou desempenho inferior aos dois grupos controles, tanto para palavras de alta frequência como para as de baixa frequência e pseudopalavras. As alterações na escrita, ou disortografias, são parte do quadro da dislexia, pois a deficiência do sistema fonológico ocasiona alterações na conversão grafema-fonema22. Dessa forma, as disortografias são decorrentes de dificuldades em estabelecer um léxico visual ortográfico, apresentando como sintomas típicos substituição, omissão e inversão de grafemas, alteração na segmentação de palavras, persistência do apoio na oralidade e dificuldade na produção de textos26. Portanto, podemos sugerir que as dificuldades de escrita decorrem tanto de falhas no processamento fonológico como ortográfico.
Em relação aos tipos de erros na escrita, o GD apresentou maior número de erros do que os dois grupos controle quanto às trocas auditivas e visuais, omissões, inversões, separação e aglutinação de palavras e outros. Nos erros do tipo trocas ortográficas e acréscimos, o número foi maior do que o GCI. A maioria dos erros observados nesse estudo é referida por vários autores22 27. Todos esses erros seriam justificados pela descrição de disortografia citada acima. Pode-se, ainda, agrupar os erros encontrados na dislexia em três grupos: erros decorrentes de alteração no processamento fonológico, processamento ortográfico e processamento visual. Neste estudo, encontramos mais erros por falha no processamento fonológico e, em seguida, por dificuldades no processamento ortográfico, assim como outros dados da literatura27.
Portanto, assim como na leitura, GD apresenta um perfil diferente do que seria esperado em crianças mais novas e no início do processo de alfabetização, pois apresenta desempenho pior do que o GCL, reforçando que o perfil de distúrbio envolve também a escrita.
Observamos dificuldades na tarefa de fluência verbal, tanto semântica quanto fonológica, no GD em relação ao GCI, assim como outros estudos28 29. Esta tarefa envolve o acesso rápido ao léxico e pode estar influenciando no pior desempenho dos disléxicos, como já referido em outras pesquisas em diversas línguas4 6 7.
A partir da análise discriminante, pudemos confirmar a importância da avaliação completa das habilidades de leitura, principalmente da velocidade de leitura e da análise dos tipos de erros. Além disso, a escrita de palavras também se mostrou relevante para discriminar os grupos.
Outro resultado a destacar com essa análise foi que algumas variáveis em que o grupo das crianças disléxicas apresentou desempenho adequado para a idade também foram importantes para diferenciar os grupos (vocabulário, corsi ordem indireta e recordação imediata de história).
Concluímos que existe um predomínio de alterações das habilidades de processamento fonológico no GD, e que não são compatíveis com um desenvolvimento atrasado, mas sim com um desenvolvimento atípico, já que as crianças com dislexia apresentaram um desempenho abaixo do que o GCL nessas habilidades. Isso pode ser observado em tarefas de consciência fonológica, memória operacional fonológica e de acesso rápido ao léxico (tarefa de fluência verbal). Como consequência, o desenvolvimento de leitura e de escrita é afetado, sendo que esse padrão se mantém em crianças mais velhas.
Outro achado importante é que tarefas de vocabulário e de habilidades fonológicas de baixa demanda (discriminação de fonemas) não foram relevantes para determinar o diagnóstico da dislexia. Por outro lado, tarefas de maior complexidade e que envolvem desde as unidades mais básicas até as mais complexas da leitura e da escrita (letras, palavras e pseudopalavras, textos) são indispensáveis para o diagnóstico da dislexia.
Por fim, observamos prejuízo de outras habilidades de linguagem (sintáticas e de compreensão oral de sentenças), que podem ser resultado de alterações nas habilidades linguísticas básicas que alteram as habilidades de maior complexidade. Outros estudos mais específicos devem ser realizados para entendermos melhor este aspecto.