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Perfis de consumo alcoolico entre pacientes da atencao primaria a saude e seu reconhecimento pelos profissionais de saude

Perfis de consumo alcoolico entre pacientes da atencao primaria a saude e seu reconhecimento pelos profissionais de saude

Autores:

Maíra Lemos de Castro Taufick,
Lays Aparecida Evangelista,
Michelle da Silva,
Luiz Carlos Marques de Oliveira

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão impressa ISSN 0102-311X

Cad. Saúde Pública vol.30 no.2 Rio de Janeiro fev. 2014

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00030813

ABSTRACT

This cross-sectional study investigated patterns of alcohol consumption among patients enrolled in the Family Health Program (FHP) in a city in Southeast Brazil, as well as the detection of such consumption by FHP professionals. A total of 932 adult patients were evaluated from November 2010 to November 2011. Of this total, 17.5% were considered at risk for hazardous drinking (AUDIT ≥ 8); increased risk was associated with male gender, younger age, and chronic illness. The CAGE questionnaire was positive in 98 patients (10.5%), with a higher proportion in men. Health professionals were more likely to ask about alcohol consumption in men, individuals aged ≥ 55 years, those with chronic illnesses, and heavier drinkers (438/932; 47.8%). Positive diagnosis of alcoholism was more frequent in men, individuals aged 35-54 years, and those with serious alcohol abuse (22/175; 12.6%). The study concluded that alcohol consumption is common among patients treated by FHP teams (although insufficiently recognized by professionals) and that a minority of alcoholics is instructed on the risks of drinking.

Key words: Alcohol Drinking; Family Health Program; Primary Health Care; Questionnaires; Diagnosis

RESUMEN

En este estudio transversal se han verificado los patrones de consumo de alcohol entre pacientes de los Equipos de Salud de la Familia (ESF) en una ciudad del sureste brasileño, y el reconocimiento de este consumo por los profesionales de las ESF. Se evaluaron 932 pacientes adultos entre noviembre/2010 y noviembre/2011. Entre todos, un 17,5% hacían consumo de riesgo (AUDIT ≥ 8) que fue más frecuente en hombres, entre los más jóvenes o sin enfermedades crónicas. El cuestionario CAGE fue positivo en 98 (10,5%) pacientes, siendo más frecuente en hombres. Hombres, personas con edades ≥ 55 años, con enfermedades crónicas o consumo alcohólico más grave fueron más cuestionadas sobre el uso del alcohol (438/932; 47,8%). Hombres, personas con edades 35-54 años o con consumo alcohólico más grave fueron más reconocidos como alcohólicos (22/175; 12,6%). Se concluye que el consumo del alcohol es frecuente entre pacientes atendidos por las ESF, es poco reconocido por los profesionales y la minoría de los alcohólicos es orientada sobre sus riesgos.

Palabras-clave: Consumo de Bebidas Alcohólicas; Programa de Salud Familiar; Atención Primária de Salud; Cuestionarios; Diagnóstico

Introdução

Estima-se que no Brasil 9% da população sejam dependentes do álcool, que 24% bebam frequentemente e pesado 1 e que o consumo alcoólico seja responsável por mais de 10% da morbidade e mortalidade que ocorrem no país 2. Esses dados mostram que o abuso do álcool não pode ser negligenciado pelos profissionais de saúde. A atenção primária à saúde (APS) é a porta de entrada ao Sistema Único de Saúde (SUS) e o eixo coordenador dos pontos de atenção à saúde, articulados em rede, em que se supõe a integração à rede de serviços mais complexos 3. A Estratégia Saúde da Família é a forma prioritária para a organização da APS no país, e proporcionou um caráter mais abrangente como novo modelo para atenção básica do SUS 3. A Equipe de Saúde da Família (ESF) é multiprofissional, trabalha em território definido e com população adscrita. Por oferecer cuidado integral e contínuo com ênfase na proteção e promoção à saúde, a ESF pode desempenhar um papel importante na prevenção, diagnóstico e tratamento do consumo alcoólico abusivo.

No Brasil, em alguns estudos investigou-se sobre o consumo alcoólico entre pacientes atendidos na APS 4 , 5 , 6, mas não foi possível localizar, durante pesquisa bibliográfica, um trabalho brasileiro que avaliou o reconhecimento deste consumo pelos profissionais de saúde. O presente estudo objetivou verificar os perfis de consumo alcoólico entre pacientes das ESF em Uberlândia, Minas Gerais, as frequências de questionamentos sobre este consumo durante a consulta médica e o seu reconhecimento pelos profissionais de saúde.

Metodologia

Local do estudo

Este estudo transversal foi realizado no período de novembro de 2010 a novembro de 2011, nas 41 ESF lotadas nas 39 Unidades Básicas de Saúde da Família (UBSF) implantadas no Município de Uberlândia.

Casuística e coleta de dados

Em cada ESF avaliaram-se no mínimo 20 pacientes, de ambos os sexos, que já tivessem realizado pelo menos uma consulta médica no último ano. Os pacientes foram abordados consecutivamente, conforme chegavam à UBSF. Todos os pacientes adultos eram elegíveis para este trabalho e, entre os que foram convidados, sete recusaram-se a participar e 40 foram excluídos, pois seus prontuários não foram encontrados ou estavam desprovidos de registro da consulta médica.

Inicialmente, foram coletados os dados sociodemográficos dos pacientes e informações sobre a abordagem, durante a consulta médica, em relação ao consumo alcoólico. Posteriormente, rastreou-se o consumo alcoólico usando-se os questionários Alcohol Use Disorders Identification Test (AUDIT) 7 e Cut-down, Annoyed, Guilty e Eye-opener (CAGE) 8. Recomenda-se que todo indivíduo com escore de AUDIT ≥ 8 seja considerado como consumidor alcoólico de risco 7.

Considerou-se que o consumo alcoólico foi reconhecido pelos profissionais de saúde quando havia anotações no prontuário do paciente, tais como “alcoólatra”, “etilista”, ou a descrição da frequência ou quantidade de bebidas consumidas. Investigaram-se também os motivos da consulta e a coexistência de doença crônica quando o consumo alcoólico foi reconhecido.

Análise estatística

A amostra mínima calculada para este estudo foi de 280 pacientes, considerando-se os 141.450 habitantes assistidos pelas ESF de Uberlândia 9, uma prevalência de consumo alcoólico abusivo na população de 24% 1, erro de 5% e intervalo de 95% de confiança (IC95%). Para a análise dos resultados utilizou-se o software SPSS versão 17.0 (SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos). Para verificar a intensidade de associação de cada uma das variáveis avaliadas calcularam-se as razões de chances brutas (crude odds ratio – cOR) e seus respectivos IC95%. Valor de p ≤ 0,05 foi considerado significante.

Considerações éticas

Cada paciente forneceu seu consentimento por escrito para a sua participação, incluindo a consulta ao seu prontuário. O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Uberlândia, parecer final n o 776/10, e o estudo conduzido dentro dos padrões da Declaração de Helsinki e atualizações.

Resultados

Participaram deste trabalho 932 indivíduos [576 (61,8%) homens] com idade média e desvio-padrão de 46,3 ± 15,2 anos (18 a 89 anos). As avaliações pelo questionário AUDIT mostraram que entre homens e mulheres, respectivamente, 73 (20,5%) e 43 (7,5%) faziam consumo alcoólico de risco, 21 (5,9%) e 6 (1%) uso nocivo e 14 (3,9%) e 7 (1,2%) eram prováveis dependentes do álcool. AUDIT ≥ 8 foi mais frequente entre homens, com menos de 55 anos de idade e sem doença crônica; CAGE positivo foi mais frequente entre os homens (Tabela 1). Os homens, pacientes com idades ≥ 55 anos, os portadores de doenças crônicas ou com consumo alcoólico mais grave foram mais frequentemente questionados pelos médicos sobre o consumo alcoólico (Tabela 2).

Tabela 1 Frequência (%) de pacientes com AUDIT ≥ 8 ou CAGE positivo de acordo com os dados sociodemográficos. Uberlândia, Minas Gerais, Brasil, 2010-2011. 

Variáveis n * AUDIT ≥ 8 (n = 164) CAGE positivo (n = 98)
% cOR IC95% % cOR IC95%
Sexo
 Feminino 576 9,7 1,0 5,9 1,0
 Masculino 356 30,3 4 ** 2,8-5,8 18,0 3,5 ** 2,2-5,4
Faixa etária (anos) -
 18-34 241 22,8 2,3 ** 1,4-3,7 10,0 1,3 0,7-2,3
 35-54 402 18,9 1,8 ** 1,2-2,8 12,7 1,7 1,0-2,8
 ≥ 55 289 11,4 1,0 8,0 1,0
Portador de doença crônica
 Sim 530 14,5 1,0 10,0 1,0
 Não 402 21,6 1,6 ** 1,2-2,3 11,2 1,1 0,7-1,7

AUDIT: Alcohol Use Disorders Identification Test; CAGE: Cut-down, Annoyed, Guilty e Eye-opener; cOR: crude odds ratio;

IC95%: intervalo de 95% de confiança.

* Valor não atingiu o total devido a dados perdidos;

** p ≤ 0,01.

Tabela 2 Frequência (%) de pacientes que afirmaram terem sido questionados sobre o consumo alcoólico durante a consulta, de acordo com as variáveis avaliadas. Uberlândia, Minas Gerais, Brasil, 2010-2011. 

Variáveis n * Questionado sobre o uso do álcool durante consulta **
% cOR IC95%
Sexo
 Feminino 567 41,8 1,0
 Masculino 350 57,4 1,9 *** 1,4-2,4
Faixa etária (anos)
 18-34 239 40,6 1,0
 35-54 396 48,5 1,4 1,0-1,9
 ≥ 55 282 52,8 1,6 *** 1,2-2,3
Portador de doença crônica
 Não 397 39,0 1,0
 Sim 520 54,4 1,9 *** 1,4-2,4
Perfil de consumo alcoólico
 AUDIT
  Baixo risco 754 45,9 1,0
  Uso de risco 116 53,4 1,4 0,9-2,0
  Uso nocivo/PD 47 63,8 2,1 # 1,1-3,8
  CAGE
  Negativo 820 46,7 1,0
  Positivo 97 56,7 1,5 1,0-2,3

Entre os 438 (47,8%) pacientes que relataram terem sido questionados pelo médico a respeito do álcool, 425 (97%) foram indagados “você bebe?”, e 13 (3%) foram questionados sobre o tipo/quantidade de bebida que consumiam.

Entre os pacientes com AUDIT ≥ 8 e/ou CAGE positivo, 22/175 (12,6%) foram reconhecidos como etilistas, e o reconhecimento foi maior entre homens, na faixa etária de 35 a 54 anos e com consumo alcoólico mais grave (Tabela 3). Dentre os pacientes reconhecidos como etilistas, 10/22 (45,4%) procuraram atendimento devido a doenças crônicas fortemente relacionadas ao alcoolismo e 7 (31,8%) devido ao próprio alcoolismo. Nos prontuários de 16/22 (72,7%) pacientes reconhecidos como alcoolistas constavam apenas termos descritivos (etilista, alcoólatra ou uso de bebida alcoólica nos finais de semana); em seis (27,3%) constava a quantidade de bebidas ingeridas.

Tabela 3 Frequência (%) de reconhecimento do consumo alcoólico pelos profissionais de saúde das Equipes de Saúde da Família entre pacientes com AUDIT ≥ 8 e/ou CAGE positivo (N = 175). Uberlândia, Minas Gerais, Brasil, 2010-2011. 

Variáveis n * Reconhecimento do consumo alcoólico **
% cOR IC95%
Sexo
 Feminino 63 1,6 1,0
 Masculino 112 18,8 14,3 *** 1,9-109,1
Faixa etária (anos)
 18-34 55 3,6 1,0
 35-54 83 16,9 5,4 # 1,2-24,7
 ≥ 55 37 16,2 5,1 1,0-27,0
Portador de doença crônica
 Não 92 9,8 1,0
 Sim 83 15,7 1,7 0,7-4,2
Perfil de consumo alcoólico
 AUDIT
  Uso de risco 116 8,6 1,0
  Uso nocivo/PD 48 25,0 3,5 *** 1,4-8,9
  CAGE
  Positivo 98 13,3 - -

AUDIT: Alcohol Use Disorders Identification Test; CAGE: Cut- down, Annoyed, Guilty e Eye-opener; cOR: crude odds ratio;

IC95%: intervalo de 95% de confiança; PD = provável dependência.

* Valor não atingiu o total devido a dados perdidos;

** De acordo com as anotações nos prontuários;

*** p ≤ 0,01;

# p ≤ 0,05.

Dentre os pacientes com AUDIT ≥ 8 e/ou CAGE positivo, 61/175 (34,8%) disseram terem sido orientados a não beber, e os motivos foram: o álcool faz mal à saúde [21 (34,4%)], devido a um problema de saúde preexistente [18 (29,5%)] ou a interação com medicamentos utilizados [9 (14,8%)]; 13 (21,3%) não relataram o motivo.

Discussão

No presente trabalho, a frequência de pacientes com AUDIT ≥ 8 (17,5%) foi semelhante àquelas observadas entre pacientes da APS das cidades de Juiz de Fora e Rio Pomba (Minas Gerais) nos anos de 2003/2005 (22,2%) 5, e na Nova Zelândia em 2006/2007 (17,7%) 10. Porém, a frequência de pacientes com CAGE positivo (10,5%) foi o dobro daquela observada na APS de São Paulo em 1987 (5%) 4, o que pode refletir diferenças socioculturais regionais em relação ao consumo alcoólico e/ou um aumento deste consumo pela população brasileira ao longo dos anos.

Verificou-se que abordagens médicas sobre o uso do álcool eram incomuns e, quando realizadas, eram superficiais, não utilizando instrumentos de rastreamento. Como resultado houve baixa frequência de reconhecimento de alcoolismo, o que também foi observado nos serviços primários à saúde nos Estados Unidos (17,7%) 11 e na Alemanha (11,1%) 12.

Homens foram mais frequentemente questionados e reconhecidos como alcoolistas, e somente uma de 63 mulheres teve o abuso do álcool reconhecido. O consumo alcoólico tem aumentado entre mulheres 13 e não pode ser negligenciado, pois elas são mais sensíveis aos seus efeitos deletérios e podem estar bebendo durante a gravidez, necessitando serem orientadas para estes riscos.

Houve baixa frequência de reconhecimento do consumo alcoólico entre os pacientes mais jovens e entre aqueles com consumo menos grave. A maioria dos pacientes reconhecidos procurou atendimento devido ao próprio alcoolismo ou por doenças fortemente relacionadas ao álcool. Não se analisaram outras variáveis sociodemográficas para que não se criem estereótipos, reforçando a necessidade de questionar todos os pacientes a respeito do abuso do álcool e de usar questionários de rastreamento para diagnosticar os casos menos evidentes deste abuso. Quando não se identifica o alcoolismo, perde-se a oportunidade de intervenção para prevenir suas consequências.

Entre as limitações deste trabalho incluem-se o modo de composição da amostra, que foi realizada segundo critérios de conveniência; possível viés de memória, pois era necessário que o paciente recordasse a respeito da abordagem médica em relação ao consumo alcoólico; e a impossibilidade de generalizarem-se os resultados, pois foram obtidos em amostra específica.

Conclui-se que o consumo alcoólico foi frequente entre pacientes atendidos pelas ESF, a maioria não foi questionada a este respeito, e o abuso do álcool foi subdiagnosticado. Portanto, é necessário prover treinamentos específicos para os profissionais das ESF a fim de rastrearem o consumo alcoólico de forma universal, utilizando instrumentos específicos como norma na abordagem dos pacientes. No âmbito das UBSF, os pacientes também poderiam ter acesso a palestras, cartazes e vídeos educativos que os alertassem para os riscos do consumo alcoólico abusivo.

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