versão impressa ISSN 1413-8123
Ciênc. saúde coletiva vol.19 no.7 Rio de Janeiro jul. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014197.09422013
This article discusses the character and use of qualitative research methods in the field of bioethics. A systematic review of articles published in Latin American countries and selected from the SciELO database was conducted, with special emphasis on articles that employed qualitative research methodology. The set of articles reveals a field of bioethics composed of three distinct vectors. The first refers to the dual characterization of bioethics that can be defined as a social movement or as a discipline; the second differentiates bioethics from other fields of ethics, especially from predominantly deontology-based professional ethics; and the third is related to ethical approaches adopted in the analyses conducted in the research. A relatively insignificant part of these texts result from qualitative research and they can be divided into four categories according to their themes and guidelines: bioethics as a field and/or discourse; training in health; ethics, care, and clinical practice; formulation of health policy. The production shows, on the one hand, a relatively timid approach of social science researchers to the field of bioethics and, on the other hand, little use of qualitative methodologies in research in the field and, in some cases, a certain lack of precision regarding use of the methods.
Key words: Bioethics; Qualitative research; Health
Nascida na década de 70 nos Estados Unidos, a bioética expande-se pela Europa na década de 80 e pela América Latina na de 901. Ao contrário da bioética norte-americana que se concentrou na análise dos conflitos éticos no âmbito da clínica, na Europa a ênfase foi colocada nos Direitos Humanos e, na América Latina, buscou-se vinculá-la ao contexto da região, caracterizado pelas grandes desigualdades sociais e o fracasso das políticas neoliberais. Desta forma, o desenvolvimento da bioética na América Latina caracterizou-se, inicialmente, na década de 80, pela assimilação predominante da bioética biomédica com enfoque principialista, e, para numa etapa seguinte, na década de 90, voltar-se não apenas para as preocupações éticas relacionadas aos problemas emergentes vinculados ao desenvolvimento da tecnologia biomédica, mas também aos problemas persistentes, relativos à pobreza e exclusão social, nos quais o princípio da justiça adquire relevância1. Merece destaque a realização, no Brasil, do VI Congresso Mundial de Bioética, em 2002, cujo tema central foi Bioética: poder e injustiça.
A multiplicidade de abordagens teóricas e práticas da bioética pode ser observada na América Latina, como no Brasil. No Brasil, podemos enumerar a Bioética da Reflexão Autônima, a Bioética de Intervenção, a Bioética de Proteção (Brasil e Chile), a Bioética da Teologia da Libertação, a Bioética Feminista e Antirracista e a Bioética Crítica de Inspiração Feminista2. Na avaliação de alguns autores2, destacam-se, nestas correntes da bioética brasileira, a preocupação ética com "a proteção dos mais frágeis e o papel do Estado nesta tarefa, a despeito da relevância conferida à sociedade civil; a pluralidade moral aliada a uma bioética laica, sem pressupostos religiosos; e, por fim, o respeito à dignidade da pessoa humana embasada nos direitos humanos como limites inegociáveis para práticas sociais".
Pesquisadores vinculados ao campo da Saúde Coletiva e da Bioética têm realizado, de forma cada vez mais ampla, pesquisas qualitativas, a partir do emprego de diversos métodos e técnicas, utilizadas isoladamente ou de forma complementar, como observação participante, observação direta, utilização de caderno ou anotações de campo, variadas formas de entrevistas, grupos focais, registro de fotografias ou vídeos, levantamento e análise de textos ou documentos, distintos modos de análise de discurso etc.3-5. Este artigo visa contribuir para o debate sobre a interface entre os estudos do campo da bioética e as pesquisas qualitativas. Nesse sentido, pretende discutir o caráter e a utilização dos métodos de pesquisa qualitativa em estudos situados no campo da bioética. Para tanto, examinamos a literatura produzida nos últimos anos na América Latina.
O método utilizado consistiu em revisão sistemática de todos os artigos publicados em países da América Latina, disponíveis na base Scielo até 31 de outubro de 2010, selecionados a partir do descritor "bioética". Foram encontrados 462 artigos. A pesquisa foi dividida em duas etapas. Na primeira delas, utilizamos um instrumento para a coleta de dados e sistematização dos artigos, composto pelos seguintes itens: a área do periódico, os principais temas abordados e os objetivos pretendidos. Deste total de 462 artigos, oito foram excluídos porque não abordavam o referido tema (i.e, o termo bioética foi utilizado nesses artigos excluídos apenas em função do fato de que os projetos de pesquisa foram enviados a comitês de ética ou bioética), resultando em 454 textos. Essa primeira etapa visava permitir uma visão geral das publicações no campo da bioética.
Na segunda etapa, foram selecionados, deste total de 454 artigos, os que empregaram metodologia/métodos qualitativos de pesquisa, o que resultou num conjunto de 33 artigos (Quadro 1).
Esta etapa da pesquisa consistiu de análise aprofundada dos artigos que, de alguma forma, se encaixavam sob o signo de pesquisa qualitativa. Para analisar esse conjunto, construímos um segundo instrumento, contendo os seguintes itens: a origem e o perfil dos autores, o tipo de artigo, os objetivos, a concepção de bioética e os referenciais utilizados, a população estudada, as ferramentas metodológicas utilizadas e informações sobre a submissão a comitês de ética em pesquisa.
Os 454 trabalhos, obtidos na primeira etapa, foram classificados de acordo com o tipo de artigo (Tabela 1), observando-se que predominaram aqueles voltados para a reflexão sobre temas práticos, presentes no cotidiano do trabalho em saúde, e para discussão de casos clínicos interessantes ou impactantes sob o ponto de vista da bioética. A seguir, encontram-se os trabalhos dedicados à reflexão teórico-conceitual do campo e os editoriais, artigos de opinião, agrupados sob a rubrica "outros". Com frequência semelhante, foram encontrados artigos voltados para a formação profissional, os que relatavam estudos empíricos utilizando métodos quantitativos e os que utilizaram métodos qualitativos.
Tabela 1 Classificação do total de artigos obtidos por tipo de artigo.
Tipos de Artigos | Frequência | Frequência |
---|---|---|
Absoluta | Percentual | |
Discussão sobre um Tema Prático ou Relato de Experiência | 175 | 38,5% |
Reflexão Teórico-Conceitual | 82 | 18,1% |
Reflexão ou Contribuição ao Ensino, Formação Profissional ou Currículos | 33 | 7,3% |
Pesquisa Empírica com Método Qualitativo | 33 | 7,3% |
Pesquisa Empírica com Método Quantitativo | 30 | 6,6% |
Revisão da Literatura | 21 | 4,6% |
Reflexão sobre Ética na Prática Profissional | 12 | 2,6% |
Outros (editorial, opinião) | 68 | 15,0% |
Total | 454 | 100% |
Essa visão panorâmica destaca a busca predominante da bioética para a reflexão e discussão de situações e temas práticos, que se configuram em impasses para a prática profissional. Isso mostra a relevância que o estudo da bioética tem para a formação dos profissionais de saúde, preparando-os para o enfrentamento dessas situações, que se diversificam e adquirem maior complexidade com o uso de novas tecnologias na área da saúde.
O campo da bioética, tal como apresentado nesse conjunto maior de artigos, pode ser traçado a partir de três vetores de distinção. O primeiro refere-se à caracterização da bioética predominantemente como uma disciplina acadêmica. Desta forma, a bioética é entendida como uma "ética aplicada às ciências da vida", de natureza interdisciplinar ou multidisciplinar, conforme expressa um dos artigos analisados39,40.
Para alguns artigos pesquisados, a bioética tem uma dupla tarefa: a descritiva e a normativa. A primeira tem como objetivo "identificar e caracterizar os problemas éticos que emergem na atenção à saúde", constituindo-se em uma tarefa científica e não filosófica, conforme salienta um dos artigos analisados38. A segunda relaciona-se à sua capacidade de dar respostas aos conflitos ou dilemas éticos decorrentes dos avanços técnico-científicos ou "produzir modelos teóricos metodológicos para auxiliar a tomada de decisão ética no campo da saúde", na expressão de outro artigo incluído na pesquisa41.
Uma maneira de conceber esta dupla tarefa da bioética pode ser encontrada no procedimento de justificação moral - denominado equilíbrio reflexivo - empregado por John Rawls no seu livro A Theory of Justice, publicado pela primeira vez em 197142. O equilíbrio reflexivo pode ser caracterizado como um processo de ajustamento ou apoio mútuo entre um conjunto de crenças morais e não morais, o mais amplo possível, que se pode dizer relevante para desenvolver uma teoria moral - ou de justiça, como fez Rawls - para selecionar princípios éticos ou para decidir sobre problemas práticos43. A qualidade deste processo pode ser avaliada tanto em relação ao próprio processo reflexivo - no sentido de saber se ele merece este termo - quanto em relação ao produto resultante, que tem como um dos seus principais componentes a coerência. Trata-se de um processo que não objetiva produzir certezas, mas testar algumas crenças em contraste com outras, como estratégia para justificar ou oferecer razões para um comportamento considerado ético, que configura um equilíbrio sempre instável ou provisório, permanentemente aberto a revisões.
Embora o método do equilíbrio reflexivo pretenda ser o mais inclusivo possível em relação às crenças que serão levadas em consideração na análise, para que possa ser trabalhável e atender a propósitos investigativos específicos, pode ser necessário selecionar os tipos de crenças, argumentos e requerimentos metodológicos que serão incluídos, a depender das questões em jogo43. Desta forma, Daniels44 distingue um equilíbrio reflexivo amplo de um limitado, sendo que, neste último caso, o processo se dá entre os julgamentos morais sobre situações particulares e os princípios éticos gerais que se somam a estes julgamentos de modo relevante, num processo de ida e volta entre princípios e julgamentos.
Esta última perspectiva pode ser promissora para as análises de conflitos éticos, utilizando-se a abordagem qualitativa de investigação no campo da bioética. Como observa Kleinman45, "para o etnógrafo, a experiência ordinária é a base social da condição humana", entendendo experiência como o "fluir das interações diárias no mundo local". Para este autor45, "no nível da experiência social, a moral é definida pelo processo local concernente aos valores vividos". Desta forma, "enquanto a experiência moral é sempre sobre engajamento prático em um mundo local particular, um espaço cultural que agrega especificidades políticas, econômicas e psicológicas", o discurso ético é elaborado do ponto de vista de uma articulação abstrata sobre valores translocais ou passíveis de serem - mantidas todas as condições - universalizáveis45.
Para Kleinman45, a distinção entre processo moral e discurso ético é fundamental, não apenas para "ver a utilidade da perspectiva translocal quando nos confrontamos" com práticas locais condenáveis - a linguagem dos direitos humanos, por exemplo, ocupa esta função -, mas também porque o próprio mundo local pode oferecer posições morais relevantes e alternativas ao discurso ético. Nesta perspectiva, o método do equilíbrio reflexivo é um processo que pode ser utilizado para análises no campo da pesquisa qualitativa em bioética, produzindo um ajustamento mútuo entre o discurso moral dos sujeitos sociais relativo aos processos locais e às teorias éticas utilizadas nestas análises, de forma que, tanto um como outro, possam ser passíveis de crítica e enriquecimento.
O segundo vetor de distinção opera diferenciando a bioética de outros campos da ética, em particular com a ética profissional de base predominantemente deontológica, que antecedeu o surgimento da bioética. Enquanto a ética profissional restringia-se aos problemas morais no campo das profissões da saúde, a bioética abarcaria um universo maior representado pelas reflexões éticas, profissionais ou não, relativas à saúde e à vida.
A origem da bioética é imputada, pela maioria dos artigos analisados, a Van Renssenlaer Potter, ao publicar, em 1971, sua obra Bioethics: bridge to the future, embora também sejam mencionados Andre Hellegers, que no mesmo ano fundou o The Kennedy Institute of Ethic, e Fritz Jahn, que teria utilizado o termo bioethics pela primeira vez, em 1927, conforme um dos artigos46.
Contudo, as duas primeiras fontes teóricas foram as principais responsáveis pelo surgimento e desenvolvimento da bioética, representando uma importante guinada ética no campo da saúde, em relação a da médica hipocrática, hegemônica até esse momento47. Esta guinada representa a falha de um princípio fundamental da moral tradicional - o Princípio da Sacralidade da Vida (PSV) -, que durante séculos tem guiado a prática médica, e a emergência do Princípio da Qualidade de Vida (PQV). De modo geral, enquanto que para o PSV deve-se respeitar a vida humana como valor absoluto, não podendo ser tirada sob nenhuma circunstância e não se devendo intervir nos processos teleológicos da ordem natural, o PQV sustenta que a vida só tem valor se provida de determinadas qualidades, avaliadas ou a partir de um ponto de vista interno ou subjetivo, considerando a própria pessoa que a vive como sujeito autônomo, ou de um ponto de vista externo, a partir de uma perspectiva objetiva ou imparcial48,49.
Finalmente, o terceiro vetor de distinções está relacionado às abordagens éticas adotadas nas análises empreendidas nas pesquisas. Em vários artigos, é ressaltada a natureza pluralista do campo, expressa pelas diferentes concepções, teorias e métodos da bioética. Observa-se o predomínio do principialismo norte-americano de Tom L. Beauchamp e James F. Childress, formulado em seu livro Principles of Biomedical Ethics, publicado inicialmente em 1979, no qual são analisados os princípios da beneficência, não maleficência, autonomia e justiça. Além desta referência da bioética norte-americana, também é citada a Encyclopedia de Bioethics, editada pela primeira vez em 1978, por Warren T. Reich, e o bioeticista libertário H. Tristram Engelhard Jr., autor da obra Fundamentos da Bioética, publicada pela primeira vez em 1986. Da bioética europeia são utilizados predominatemente os trabalhos de Elio Sgreccia, Giovanni Berlinguer, Adélia Cortina, Diego Gracia, Guy Durant, Maurizio Mori e Peter Singer. Das abordagens latino-americanas, observadas nas pesquisas, destacam-se a Bioética de Intervenção de Volnei Garrafa e Dora Porto, a Bioética de Proteção de Fermin Roland Schramm e Michel Kottow, a Bioética Feminista e Antirracista de Fátima Oliveira, a Bioética Crítica de Inspiração Feminista de Débora Diniz e Dirce Guilhem, além dos trabalhos de Fernando Lolas, Ricardo Maliandi e Leo Pessini.
Saindo da especificidade da bioética, são mencionados com frequência livros e conceitos de filósofos políticos como John Rawls e Richard Rorty. E, em menor grau, Hannah Arendt, Charles Taylor, Julia Kristeva e Giorgio Agamben. Autores das Ciências Sociais não são muito utilizados. Encontramos alguns poucos artigos com reflexões a partir de autores tidos como referências clássicas nas Ciências Sociais, como Pierre Bourdieu, Luc Boltanski, Boaventura de Souza Santos, Ervin Goffman e, Philippe Ariés. Somente três artigos trazem reflexões a partir de Immanuel Kant, Michel Foucault, Jean Paul Sartre, Jean Piaget e John Stuart Mills.
Como pôde ser visto, menos de dez por cento dos estudos do campo da bioética na América Latina recorrem à pesquisa qualitativa como caminho para a produção de conhecimento. Há, no geral, pouca explicitação dos referenciais e recursos teórico-metodológicos empregados nos artigos como caminho para chegar às considerações apresentadas. Os artigos brasileiros são aqueles que mais expressam seus referenciais teórico-metodológicos. É recorrente a menção a livros utilizados tradicionalmente na Saúde Coletiva, como O desafio do conhecimento, de Minayo, O discurso do Sujeito Coletivo, organizado por Lefevre, Fundamentos da Metodologia Científica, de Lakatos, Análise de Conteúdo, de Bardin, e Introdução à Pesquisa em Ciências Sociais, de Triviños.
De forma geral, no conjunto dos artigos, a metodologia utilizada na maioria dos artigos aponta para o uso de técnicas diversificadas, sendo os questionários com perguntas fechadas e abertas o instrumento mais frequentemente utilizado. Predominam as entrevistas, em geral sob a forma semiestruturada, e a análise documental; poucos estudos basearam-se em etnografias ou realização de grupos focais (Tabela 2). As questões contidas nos instrumentos de pesquisa costumam ser apenas parcialmente apresentadas na parte de descrição dos métodos. Em caso de estudos que combinam métodos quantitativos e qualitativos, a análise dos dados tende a valorizar os dados numéricos e não problematizar questões por eles apontadas.
Tabela 2 Distribuição dos artigos com metodologia qualitativa, segundo as ferramentas metodológicas utilizadas.
Ferramentas | Frequência |
---|---|
metodológicas | Absoluta |
Entrevistas semiestruturadas | 20 |
Análise documental | 7 |
Entrevistas + análise documental | 3 |
Estudo etnográfico (observação | 2 |
participante + entrevistas) | |
Grupos focais + entrevistas | 1 |
Total | 33 |
Os temas e objetivos propostos pelos artigos analisados podem ser contemplados a partir de quatro grandes temas, que dizem respeito ao modo como o campo tem sido construído nos últimos anos: 1) Caracterização e discussão da bioética enquanto campo e/ou discurso; 2) Pesquisas qualitativas que utilizam a bioética para discutir a formação em saúde; 3) Pesquisas qualitativas que discutem ética, assistência e prática clínica; 4) Pesquisas que utilizam a bioética para discutir a formulação de política de saúde (Quadro 2).
Um primeiro conjunto de trabalhos reúne textos preocupados com a construção do campo e de como o mesmo é visto/percebido na esfera da saúde. Constituem-se em poucos trabalhos, pois a maioria deles (como pudemos perceber anteriormente na análise mais ampla do material) não recorre a métodos de pesquisa qualitativa, com exceção dos aqui listados, que acabam propondo a discussão teórica do campo a partir de dados coletados em investigação. Os estudos que caminham nessa direção discutem valores a serem incorporados numa agenda de bioética, apontam valores de bioeticistas sobre princípios que regem sistemas de saúde, ou discutem respeito à garantia dos direitos de sujeitos de pesquisa, por exemplo.
Um segundo conjunto de trabalhos volta-se para uma área que parece concentrar grandes esforços acadêmicos: bioética e formação em saúde. Dentre os autores responsáveis por estes artigos, muitos são professores e pesquisadores em escolas das áreas da saúde. É sugestivo destacar o texto de Santiago e Palácios41 que estudaram temas éticos para a Enfermagem e observaram ampliação de artigos que se ocupam desses questionamentos a partir do ano de 1998. Dentre os objetos das pesquisas elencadas por nós nesse eixo estão, portanto, situações eticamente conflituosas vivenciadas por profissionais de saúde, bem como avaliações de conteúdos curriculares e aspectos variados na área de formação em saúde, dentre eles, o ensino da bioética.
Um terceiro conjunto de textos diz respeito à discussão de ética, assistência e prática clínica e reúne dados originados de pesquisa ou do cotidiano dos serviços de saúde, que se constituem, seja para os pesquisados, seja para os pesquisadores, em conflitos éticos. São exemplos estudos que contemplam as relações desenvolvidas entre profissionais de saúde e pacientes, ou as representações várias associadas a temas controversos, como eutanásia, aborto, reprodução assistida e outros. Estão também dentre os objetos de estudo questões psicossociais ligadas a doenças que envolvem estigma, como o HIV/AIDS e o câncer, e a relação dos profissionais de saúde com os pacientes. Também são encontrados aqui estudos centrados nos usuários de saúde e suas percepções sobre a assistência recebida. A maioria desses artigos demonstra que a dimensão ética no exercício profissional lida com situações corriqueiras da prática cotidiana. Para alguns autores desses estudos, os resultados dessas investigações podem estimular reflexões sobre os valores fundamentais das profissões e possibilitar repensar as práticas dos profissionais de saúde a partir da bioética. A observação participante e a etnografia foram eleitas como métodos centrais para alguns desses estudos.
Por fim, um quarto conjunto de artigos é representado por pesquisas que utilizam a bioética para discutir a formulação de política de saúde. São pesquisas trazem para o debate autores de outras áreas de saber e mostram como o campo das políticas de saúde pode se configurar num local de disputa de sentidos e saberes. Aqui se destacam artigos provenientes do campo das Ciências Sociais, e que se inscrevem em "temas bioéticos". São exemplos artigos que discutem, por exemplo, as novas tecnologias reprodutivas conceptivas ou a clonagem, temas que lidam, como os próprios artigos sugerem, com controvérsias. Nesses artigos são analisadas as concepções morais associadas aos debates em voga, incluindo pressupostos morais envolvidos na pesquisa científica.
Em relação ao tipo de população estudada pelos artigos (Tabela 3), predominaram os profissionais de saúde, isoladamente ou em conjunto com usuários de serviços de saúde; a seguir, encontram-se os usuários de serviços, os estudos documentais, os professores universitários e os estudantes de cursos de graduação e pós-graduação. Essa distribuição sugere a relevância, nos estudos qualitativos, de temas voltados para o trabalho em saúde, a percepção de usuários sobre esse trabalho e sobre temas impactantes sob o ponto de vista bioético e a questão da formação em saúde.
Tabela 3 Distribuição dos artigos com metodologia qualitativa, segundo a população estudada.
População | Frequência |
---|---|
estudada | Absoluta |
Profissionais de Saúde | 8 |
Usuários de Serviços de Saúde | 5 |
Professores Universitários | 4 |
Usuários + Profissionais de Saúde | 3 |
Voluntários atuantes em Instituições de | 2 |
Saúde | |
Estudantes de Cursos de Graduação | 1 |
Estudantes de Cursos de Pós-Graduação | 1 |
Estudantes de Graduação + Estudantes | 1 |
de Pós | |
Professores Universitários + Estudantes | 1 |
Graduação | |
Não se aplica (análise documental) | 7 |
Total | 33 |
Outro aspecto a ser salientado é a menção à aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa que, embora imperativa desde o ponto de vista da Saúde Coletiva, não se apresenta claramente em todos os textos mapeados. Parece-nos, no entanto, fundamental observar as limitações por vezes colocadas pela resolução 196/9650 às pesquisas qualitativas que se debruçam sobre os objetos da saúde. Esta resolução, instituída pela Comissão de Ética em Pesquisa (CONEP), visa regulamentar as pesquisas na área de saúde no Brasil, dirigindo-se indiscriminadamente, tanto ao que Oliveira51 chamou de "pesquisas em seres humanos, como no caso da área biomédica", como às "pesquisas com seres humanos, que caracterizaria a situação da antropologia". Segundo Guerriero3, a resolução em questão "adota uma definição de pesquisa diferente da adotada pelos pesquisadores qualitativos". Esta questão tem sido assinalada pelos pesquisadores em programas de pós-graduação da área de Ciências Sociais e Humanas. Essa situação tem sido ainda mais difícil de gerir nos programas de pós-graduação em Saúde Coletiva, em que a penetração e legitimidade do modelo médico se fazem muito mais proeminentes, e a legitimidade das Ciências Humanas em Saúde ainda é assaz reduzida frente aos estudos biomédicos e epidemiológicos.
A maioria dos estudos é produzida dentro/a partir das universidades e, particularmente, no âmbito da pós-graduação.
Nos artigos produzidos no Brasil, 25 fazem parte do quadro de universidades públicas; 3 de universidades particulares; 4 de centros de pesquisa e 3 autores são ligados a instâncias/agências governamentais. Nos estudos produzidos fora do Brasil, dez dos autores são ligados a universidades; e somente um se identifica como membro de um Hospital Privado. Cabe ressaltar que aqueles que parecem estar fora da universidade, como primeiro local de trabalho, em geral possuem parceiros, colaboradores ou orientadores que são apresentados como coautores. O predomínio da academia na produção desses estudos é claro e responde às características históricas da produção dos campos da Bioética e dos Estudos Qualitativos em Saúde na América Latina. Nos outros países da América Latina e do Caribe, onde não existe a Saúde Coletiva enquanto disciplina formalmente instituída, os estudos se relacionam primariamente ao mundo dos serviços de saúde e do cotidiano de decisão sobre casos "difíceis" ou desafiadores. Mas a influência ideológica da Saúde Coletiva é de grande importância já que, como mostramos abaixo, vai definir temáticas, leituras, argumentos e autores utilizados.
Em relação à formação profissional, são poucos os autores - talvez por política editorial das revistas - que expressam sua graduação. Listamos três odontólogos, três médicos, dois sociólogos, um filósofo e cinco enfermeiras. A grande maioria de autores tem títulos de mestre ou doutor. É interessante salientar que nos artigos em espanhol figuram três estudos com pesquisadoras ligadas à Igreja Católica, sendo uma socióloga e uma missionária.
A revisão e posterior análise dos textos permitiu-nos compreender a produção do campo da bioética como plural e diversificada, abarcando diversos temas e demarcando uma área interdisciplinar. Essa interdisciplinaridade é marca constitutiva do campo da bioética, portanto, característica apriorística e desejada pelos seus atores.
O conjunto dos textos analisados nos permite afirmar ainda que a maior parte da produção deste campo advém de artigos teóricos, reflexões geradas a partir de investigações quantitativas e questões clínicas, evidenciando, do ponto de vista dos marcos disciplinares, forte influência da Filosofia, e ainda forte adesão da Medicina, seguida por outras áreas da saúde, com destaque também para a Epidemiologia.
Os artigos baseados em pesquisas qualitativas constituem a menor parte da produção do campo da bioética, ainda que este cenário esteja sendo gradualmente modificado. Estes textos que utilizam métodos de pesquisa qualitativa podem ser agrupados, a partir de suas aproximações temáticas, em quatro grandes temas [1) Caracterização e discussão da bioética enquanto campo e/ou discurso, 2) Pesquisas qualitativas que utilizam a bioética para discutir a formação em saúde, 3) Pesquisas qualitativas que discutem ética, assistência e prática clínica; 4) Pesquisas que utilizam a bioética para discutir a formulação de política de saúde].
O conjunto de artigos qualitativos encontrados nestes grandes temas mostra o emprego de variadas (e, por vezes, imprecisas) estratégias metodológicas. Os dados mostram, por um lado, pouca utilização de metodologias qualitativas nas pesquisas realizadas no campo da bioética, uma relativa e ainda tímida aproximação de pesquisadores das Ciências Sociais ao campo da bioética e, por outro lado, certa imprecisão quanto ao uso de métodos pelo conjunto dessas pesquisas.
Os estudos qualitativos têm uma longa trajetória nas Ciências Sociais, mais expressivamente para a antropologia, dada a centralidade que tem o trabalho de campo para esta disciplina52-55. No entanto, a contribuição da antropologia para as investigações qualitativas na área da saúde só tem sido valorizada em décadas mais recentes, fato que pode explicar o pouco debate dos artigos aqui encontrados, com algumas exceções, com esta literatura55. Como mostra Minayo4, a antropologia pode trazer importantes subsídios à produção de conhecimento sobre saúde, à medida que contribui para relativizar conceitos biomédicos, compreender a estrutura dos mecanismos terapêuticos, evidenciar relações entre saúde/doença e realidade social e contextualizar os sujeitos na abordagem dos processos saúde/doença. Nesse sentido, sugerimos que as Ciências Sociais, através do seu variado instrumental teórico-metodológico, podem assumir um papel relevante no aprofundamento dos debates trazidos pelas investigações no campo da bioética.