versão On-line ISSN 2526-8910
Cad. Bras. Ter. Ocup. vol.28 no.1 São Carlos jan./mar. 2020 Epub 17-Fev-2020
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoar1747
As alterações nas habilidades motoras de crianças sem lesões neurológicas específicas, “aparentemente normais”, foram chamadas, a partir da década de 1980, de Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação (TDC) pela Associação Psiquiátrica Americana (DSM-III) e de Transtorno Específico do Desenvolvimento Motor pela Organização Mundial da Saúde (OMS) na Classificação Internacional de Doenças (CID-10). Tal fato representou o reconhecimento de que essas crianças tinham problemas no desenvolvimento motor que afetavam o seu desenvolvimento global (Dantas & Manoel, 2009).
De acordo com as recomendações recentes da European Academy for Childhood Disability (Blank et al., 2019), estreitamente relacionados àqueles estabelecidos pelo DSM-V (American Psychiatric Association, 2013), para o diagnóstico do TDC devem ser observados os seguintes critérios:
I. a aquisição e desempenho de habilidades motoras coordenadas estão substancialmente abaixo do esperado para a idade cronológica e oportunidades suficientes de aquisição de habilidades próprias para a idade; em conjunto pode haver desajeitamento, quedas, esbarrar nas coisas, déficit de equilíbrio, dificuldades para escrever, pular, cortar, colorir, pegar bola e/ou chutar;
II. o prejuízo nas habilidades motoras descritos no critério I interfere de maneira significativa e persistente nas atividades do cotidiano da criança, como de autocuidado e mobilidade, e na produtividade acadêmica/escolar, atividades pré-vocacionais e vocacionais, de lazer, jogos e brincadeiras;
III. tais prejuízos nas habilidades motoras não são melhor explicados por outras condições médicas, neurodesenvolvimental, psicológica, social ou cultural;
IV. o início dos sintomas ocorre na infância, ainda que não seja identificado antes da fase adolescente ou adulta.
Além disso, no comportamento motor da criança com TDC pode ocorrer precário controle postural e dificuldades na aprendizagem motora (novas habilidades, planejamento do movimento, automatização), no planejamento estratégico, timing e sequenciamento de movimento, e no processamento de informações visuo-espaciais (Vaivre-Douret, 2014).
Vaivre-Douret et al. (2016) apresentam três subtipos para o TDC, sendo o Ideomotor o mais raro e caracterizado por especial dificuldade na percepção digital, imitação de gestos e praxia digital; o Visuo-espacial/Construcional que apresenta disfunções na integração visuomotora e com tarefas que envolvam a integração visuoespacial; e o tipo Misto, que apresenta dificuldades específicas na coordenação motora e pobre destreza manual.
O TDC tem sido identificado por meio de diferentes culturas, raças e condições socioeconômicas e, até o momento, é considerado de natureza idiopática. Está muito frequentemente em comorbidade com outras desordens do neurodesenvolvimento que incluem Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), disfunções na linguagem, transtornos de aprendizagem, do espectro autista, dislexia ou outros transtornos da escrita. Possui uma prevalência comumente relatada de 5 a 6% em escolares, porém, com identificação entre 2 e 20% em pesquisas mais recentes, sendo mais comum em meninos (Blank et al., 2019).
As dificuldades motoras tendem a interferir negativamente em aspectos socioemocionais das crianças com TDC, com prejuízos secundários sobre a autoestima, autoconceito, sentimento de competência, níveis de ansiedade, participação em atividades físicas e esportivas, no condicionamento físico (Ferreira et al., 2015), senso de autoeficácia nas tarefas e no enfrentamento de barreiras para realização de atividade física (Batey et al., 2014), eficácia percebida diminuída para atividades escolares/produtividade, lazer e autocuidado (Engel-Yeger & Hanna Kasis, 2010). Tal-Saban et al. (2014) identificaram que esses prejuízos primários e secundários do TDC continuam afetando a participação nas atividades diárias, a qualidade de vida e a satisfação na fase adulta.
A teoria ecológica do desenvolvimento humano foi concebida por Urie Bronfrenbrenner nos anos 1970 para explicar a relevância dos contextos ecológicos no processo de desenvolvimento humano (Bronfenbrenner, 1996). Após reformulação pelo próprio autor, a Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano (TBDH) passa a incluir fatores biológicos, do processo e do tempo como igualmente determinantes no desenvolvimento humano e interdependentes não só ao contexto, mas também entre si. Com base nessa reformulação, o autor sistematiza a teoria em quatro núcleos, sendo eles processo, pessoa, contexto e tempo (PPCT), compreendendo que o desenvolvimento humano seria um processo de interação recíproca entre a pessoa e o seu contexto por meio do tempo (Bronfenbrenner, 2011).
Essa teoria tem sido utilizada em diversos estudos nacionais (Dessen & Polonia, 2007; Alves & Emmel, 2008; Rolfsen & Martinez, 2008; Portes et al., 2013) sobre problemas na infância tanto no campo da saúde quanto na educação. O estudo de Custódio et al. (2014) apresentou uma revisão crítica da literatura a respeito das redes sociais de apoio no contexto do desenvolvimento de crianças nascidas pré-termo e apontou que a abordagem de rede no contexto da prematuridade, sob a concepção da TBDH, permitiu vislumbrar a complexidade dos vários sistemas envolvidos nesse cenário, além da inter-relação entre eles.
No que concerne às crianças em idade escolar, os estudos de Nobre et al. (2014, 2016) e Costa et al. (2014) revelam as contribuições da TBDH tanto para análise crítica quanto na sistematização de ações públicas relacionadas a fatores que afetam o desenvolvimento motor de crianças brasileiras desfavorecidas socioeconomicamente. Não há, porém, entre os estudos nacionais, a análise da problemática do TDC sob a luz da TBDH.
No contexto internacional, ainda que haja evidências acerca dos fatores biológicos (pré, peri e pós-natais) associados ao desenvolvimento de TDC (Hua et al., 2014), são escassos os estudos que explorem a relação recíproca com aspectos socioculturais ou utilizem a abordagem de Bronfenbrenner para essa investigação.
O fato de não haver construção de conhecimento acerca da natureza da interação de crianças com TDC em seu contexto ambiental constitui uma grande lacuna, dada à natureza recíproca interacional do desenvolvimento (McQuillan, 2015).
Sugden (2014) destaca que a TBDH fornece uma estrutura teórica sólida para a compreensão do processo de desenvolvimento das crianças com TDC, considerando que esse desenvolvimento ocorre em função dos recursos da criança e as várias influências ambientais que ocorrem sobre ela no decorrer do tempo. Essas influências vão desde condições sociais amplas até aquelas presentes quando engajada diretamente em uma atividade física. Nesta direção, o presente estudo objetivou identificar e discutir sobre os elementos dos núcleos PPCT na produção científica nacional referente às crianças com TDC. Espera-se, com base no dimensionamento desses elementos em cada estudo, discutir as condições de desenvolvimento da criança brasileira com TDC frente à importância dessa reciprocidade nas interações e as influências ambientais.
A presente pesquisa consistiu em uma revisão integrativa da literatura científica nacional de estudos sobre TDC, cujos dados foram analisados com base na perspectiva dos elementos da TBDH. A revisão integrativa consiste em um método que revisa e sistematiza dados da literatura de modo a reunir e relacionar achados empíricos e teóricos que forneçam uma compreensão abrangente sobre determinada(s) temática(s) e propõe novas perguntas de pesquisa (Cecílio & Oliveira, 2017).
Seguindo as etapas de uma revisão integrativa propostas por Mendes et al. (2008), a pergunta norteadora dessa revisão integrativa da literatura se compõe da seguinte forma: o que revelam as pesquisas nacionais sobre crianças com TDC quando analisadas à luz dos elementos da TBDH?
Como critérios de inclusão dos estudos nessa revisão, foram selecionados artigos disponíveis na íntegra, devendo estes: 1) constituir-se em pesquisa sobre o tema do TDC; 2) não se constituir em uma pesquisa teórica ou documental; e 3) constituir-se em estudos nacionais.
A coleta dos dados ocorreu em revistas indexadas nas bases de dados da Biblioteca Virtual em Saúde (Bireme) e na base de dados da Scielo. Os seguintes descritores de busca foram selecionados na língua inglesa e portuguesa por meio dos Descritores em Saúde (DECS) e Medical Subjects Headings (Mesh): motor skills, motor skills disorders, child, Brazil, transtorno das habilidades motoras, transtorno do desenvolvimento da coordenação, criança e Brasil, de forma combinada. Não foi estabelecido o limite de tempo para o período da busca, que ocorreu até março de 2018.
Os artigos foram analisados adotando-se a abordagem quanti-qualitativa (Turato, 2005). A caracterização dos estudos quanto aos dados quantitativos ocorreu por tabulação das seguintes informações: autor, ano, objetivo, caracterização dos participantes, local da pesquisa, instrumentos de avaliação e desfechos. Já as informações de cada artigo à luz dos quatro núcleos do modelo PPCT da TBDH passaram por um processo de categorização, utilizando-se da caracterização dos núcleos e indicadores descritos na Tabela 1, que classificam a presença de cada componente de acordo com Bronfenbrenner (2011), Prati et al. (2008) e Narvaz & Koller (2004). A leitura de cada estudo e categorização em cada núcleo foi realizada por três das autoras de forma independente, com verificação da concordância entre os itens.
Tabela 1 Caracterização dos núcleos quanto ao conceito e indicadores utilizados na categorização dos estudos.
Núcleo | Descrição |
---|---|
Pessoa |
Repertório individual de características biológicas, cognitivas, emocionais e comportamentais. Três características: Disposições, que podem colocar os processos proximais em movimento e continuam sustentando a sua operação. Recursos bioecológicos de habilidade, experiência e conhecimento para que os processos proximais sejam efetivos em determinada fase de desenvolvimento. Demanda, que convidam ou desencorajam reações do contexto social que podem nutrir ou romper a operação de processos proximais. Exemplos de Indicadores: gênero ou cor da pele; fatores genéticos; valores e expectativas que se têm na relação social; desempenho e habilidades. |
Processo |
Fusão e a dinâmica de relação entre o indivíduo e o contexto. Processo proximal do indivíduo com participação ativa em interação, progressivamente mais complexa e recíproca com pessoas, objetos e símbolos no ambiente imediato, em uma base bastante regular em períodos estendidos de tempo. Exemplos de Indicadores: relação pais-criança; relação professor-criança; atividades entre crianças; jogos em grupo ou solitário; aprendizado de novas habilidades; atividades esportivas; atividades do cotidiano familiar e escolar. |
Contexto |
Níveis ou sistemas de desenvolvimento que influenciam e são influenciados pelos processos desenvolvimentais do indivíduo, e onde ele pode estar ou não inserido. Microssistema: caracterizado como o contexto no qual há um padrão de atividades, papéis sociais e relações interpessoais experienciados face a face pelo indivíduo, em um contexto imediato. O microssistema possui características físicas, sociais e simbólicas que convidam, permitem ou inibem o engajamento do indivíduo. Mesossistema: consiste na interação entre os microssistemas do indivíduo. Exossistema: envolve os ambientes que influenciam no desenvolvimento do indivíduo, mas não necessariamente ele está presente. Macrossistema: composto por conjunto de ideologias, valores e crenças, religiões, cultura, subculturas, formas de governo, que podem influenciar no desenvolvimento do indivíduo. Exemplos de Indicadores: microssistemas: família, escola, terapias; exossistema: trabalho dos pais, apoios institucionais e outros tipos de suporte social; macrossistema: região do Brasil, condição socioeconômica, políticas públicas. |
Tempo |
Desenvolvimento no sentido histórico, com as mudanças nos eventos no decorrer do tempo e devido às pressões sofridas pela pessoa em desenvolvimento. Microtempo: relacionado às continuidades e descontinuidades nos processos proximais; Mesotempo: compreende amplos intervalos de tempo como dias, semanas, meses nos quais os episódios acontecem; Macrotempo: expectativas e eventos em mudança no âmbito da ampla sociedade, dentro ou através das gerações, com destaque nesse para transições ecológicas normativas ou não normativas. Exemplos de Indicadores: entrada da criança na escola; o nascimento de um irmão; a mudança de trabalho dos pais; casar-se; ter filhos; doenças; perdas afetivas; desastres naturais ou sociais. |
Fonte:Bronfenbrenner (2011), Prati et al. (2008) e Narvaz & Koller (2004).
Com base nos critérios de busca, foram encontrados 268 artigos. Realizou-se a leitura dos títulos e resumos, sendo excluídos os artigos duplicados e aqueles que não mencionavam o TDC. Dessa forma, a amostra constou de 30 artigos que foram lidos na íntegra. Após a leitura completa, a seleção foi refinada de acordo com os objetivos da presente pesquisa e foram excluídos ainda outros estudos os quais não mencionavam ou não estavam diretamente relacionados às crianças com TDC ou que discutiam conceitualmente o TDC. A amostra final para análise descritiva ficou composta por 19 artigos.
A Figura 1 apresenta o diagrama com os procedimentos de busca e seleção dos artigos para análise.
Figura 1 Diagrama do Fluxo de busca e seleção dos artigos (Moher et al., 2009).
A Tabela 2 apresenta as características dos 19 estudos de acordo com autores, ano, objetivo, participantes, região de pesquisa e instrumentos ou medidas utilizadas. Os artigos desta revisão foram publicados no período compreendido entre 2009 e 2017.
Tabela 2 Caracterização dos estudos.
Autor/ano | Objetivo | Tamanho e idade amostral (anos) | Região | Instrumentos/Medidas |
---|---|---|---|---|
Beltrame et al. (2017) | Identificar a prevalência do TDC | 787 (7 a 10) | Florianópolis – Santa Catarina | MABC-2 |
Della Barba et al. (2017) | Identificar a prevalência do TDC | 130 (5 a 14) | São Carlos – São Paulo | DCDQ – Brasil Critério de Classificação Econômica Brasil Questionário de caracterização da amostra |
Rocha et al. (2016) | Analisar o desempenho motor e a maturidade cognitiva de pré-escolares | 89 (4 e 5) | Maringá – Paraná | MABC-2 EMMC |
Capistrano et al. (2016) | Analisar a relação entre desempenho motor e a aptidão física de escolares | 98 (7 a 10) | Florianópolis – Santa Catarina | MABC-2 PROESP-BR |
Santos et al. (2015) | Analisar o estado nutricional e o nível socioeconômico de escolares com provável TDC, risco de TDC e desenvolvimento típico | 581 (7 a 10) | Um município do noroeste do Paraná | MABC 1 Índice de Massa Corporal. Critério de Classificação Econômica Brasil. |
Valentini et al. (2015) | Identificar a prevalência de TDC | 1056 (4 a 10) | 12 cidades Brasileiras | MABC 1 |
Galvão et al. (2014) | Investigar a percepção de mães brasileiras sobre o desempenho cotidiano de crianças com TDC | 5 responsáveis (entre 32 e 60 anos) por crianças com indicativo de TDC (8 e 9 anos) | Belo Horizonte – Minas Gerais | Entrevista semi-estruturada |
Contreira et al. (2014) | Investigar o estilo de vida de escolares com e sem TDC | 108 (11 a 13) | Florianópolis – Santa Catarina | MABC-2 EVIA |
Moreira et al. (2014) | Analisar os fatores que influenciam o desenvolvimento motor de escolares brasileiros prematuros | 100 (8-10) | Belo Horizonte – Minas Gerais | MABC-2. Token Test Teste de Desempenho Escolar Questionário de Capacidades e Dificuldades RAF Questionário de caracterização da amostra |
Cardoso et al. (2014) | Estimar a frequência de TDC e as relações com TDAH, idade, sexo, tipo de escola e as diferentes dimensões do AMCD. | 181 (7 e 8) | Belo Horizonte – Minas Gerais | AMCD MABC-2 RPCM DCDQ-Brasil SNAP-IV Critério de Classificação Econômica Brasil. |
Nascimento et al. (2013) | Analisar a aptidão física de crianças com TDC | 180 (6 a 10) | Manaus | DSM IV TR Fitnessgram |
Valentini et al. (2012) | Investigar a prevalência de DCD | 1587 (4 a 12) | 14 cidades do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina | MABC 1 |
Silva et al. (2012) | Verificar as dificuldades motoras e da aprendizagem em escolares com baixo desempenho escolar | 19 (9 a 11) | São José – Santa Catarina | Teste de Desempenho Escolar MABC 1 |
King et al. (2012) | Comparar a trajetória de desenvolvimento da produção do torque máximo e controle de torque do dedo em crianças com e sem TDC. | 72 (6 a 12) | Porto Alegre – Rio Grande do Sul | MABC 1 sensor de identificação da força e osciloscópio associado a software |
Miranda et al. (2011) | Investigar o desempenho motor e o estado nutricional de escolares com e sem TDC | 380 (7 a 10) | Florianópolis – Santa Catarina | MABC-2 Índice de Massa Corporal |
Araújo et al. (2011) | Explorar o uso da CO-OP em crianças brasileiras com TDC | 3 (9 a 10) | Belo Horizonte – Minas Gerais | DCDQ-Brasil MABC 1 PEGS COPM PQRS |
Mazer & Barba (2010) | Detectar sinais de TDC em crianças com risco para o desenvolvimento | 10 (3 a 6) | Interior do estado de São Paulo. | Protocolo de avaliação de sinais do TDC |
Magalhães et al. (2009a) | Comparar o desenvolvimento motor de escolares a termo e pré-termo | 70 (7) | Belo Horizonte – Minas Gerais | MABC 1 |
Magalhães et al. (2009b) | Identificação de problemas na coordenação através de professores | 288 professores de crianças de 4 a 8 anos | Região metropolitana de Belo Horizonte – Minas Gerais | Entrevista semi-estruturada |
Legenda: MABC-1 ou 2: Movement Assessment Batery Children 1 e 2 edições; DCDQ – Brasil: Developmental Coordination Disorder Questionaire versão brasileira; EMMC: Escala de Maturidade Mental Colúmbia; PROESP-BR: Testes de aptidão física do Manual de Aplicação de Medidas, Testes, Normas e Critérios de Avaliação do Projeto Esporte Brasil; EVIA: Inventário de Estilo de Vida na Infância e Adolescência; RAF: Inventário de Recursos do Ambiente Familiar; AMCD: Avaliação da Coordenação e Destreza Motora; RPCM: Raven’s Progressive Coloured Matrices –versão brasileira. SNAP-IV: Swanson, Nolan and Pelham IV Scale; DSM IV TR: Diagnostic and statistical manual of mental disorders – 4th ed., text revision (American Psychiatric Association, 2000); PEGS: Perceived Efficacy and Goal Setting System; COPM: Medida Canadense de Desempenho Ocupacional; PQRS: Análise Dinâmica do Desempenho; CO-OP: Cognitive orientation to daily occupational performance.
Em relação aos objetivos dos estudos, onze correlacionaram o desempenho motor com outros aspectos motores, de saúde física, cognitiva, desempenho escolar e com a presença de fatores de risco, como a prematuridade e relacionados ao contexto social. Cinco pesquisas buscaram estabelecer a prevalência do TDC em crianças brasileiras e três tinham como objetivo, respectivamente, analisar a percepção das mães quanto às dificuldades de seus filhos, a identificação do TDC pelos professores e testar a eficiência do CO-OP na melhora do desempenho motor e eficácia percebida das crianças com TDC.
O tamanho amostral de crianças esteve entre 3 e 1587, com idade entre 4 e 14 anos. A região de pesquisa mais frequente foi a metropolitana de Belo Horizonte, na sequência da região sul, norte e outras cidades do sudeste do Brasil. Destaca-se o trabalho de Valentini et al. (2015), que incluiu crianças de 12 cidades brasileiras.
A maioria dos estudos (n=16) possui design metodológico quantitativo descritivo transversal, um deles é quase-experimental (Araújo et al., 2011) e dois são qualitativos (Galvão et al., 2014; Magalhães et al., 2009b). O instrumento Movement Assessment Battery for Children (MABC), em sua primeira e segunda edições (Henderson et al., 2007), foi o mais utilizado como medida direta do desempenho motor e a pontuação obtida pela criança foi a referência para análise da relação com outras variáveis, em vários dos estudos analisados.
A categorização dos estudos de acordo com a presença dos elementos dos núcleos do Modelo PPCT é apresentada na Tabela 3.
Tabela 3 Categorização dos estudos de acordo com os núcleos PPCT.
AUTOR/ANO | PESSOA | CONTEXTO | PROCESSO | TEMPO |
---|---|---|---|---|
Beltrame et al. (2017) | Desempenho motor Gênero Faixa etária | Microssistema Escolar. Escolas públicas. | As meninas apresentaram mais dificuldade nas habilidades de lançar e receber, e os meninos nas habilidades de destreza manual. As faixas etárias de 7 e 8 anos apresentaram prevalências maiores de TDC, comparado as outras faixas etárias. | Sugerem-se estudos com delineamento longitudinal e de intervenção com controle de fatores de risco perinatais e condição socioeconômica. |
Della Barba et al. (2017) | Gênero Faixa etária Sinais TDC | Microssistema Escolar. Macrossistema: condição socioeconômica. | Desordem heterogênea dificulta a identificação do TDC e tratamento. Reflexos negativos na consolidação da autoestima e o senso de competência da criança. | O diagnóstico precoce do TDC é essencial para capacitar os profissionais da educação e promover orientação de todos os atores presentes no cotidiano das crianças, evitando impactos negativos no dia a dia. |
Rocha et al. (2016) | Desempenho Motor Maturidade Cognitiva Faixa etária Classificação Motora (risco de TDC, provável TDC e desenvolvimento típico) |
Microssistema: Pré-escola. | Crianças com cinco anos obtiveram médias superiores na maturidade cognitiva em relação àquelas com quatro anos. Correlação positiva fraca entre desempenho motor e maturidade cognitiva dos pré-escolares. | O desenvolvimento cognitivo e o desempenho motor estão em constante interação. A maturação do controle neural ocorre em crianças de idade mais avançada. A identificação precoce de dificuldades motoras e o encaminhamento para programas de intervenção são de extrema importância na diminuição dos prejuízos causados pelo atraso motor. O mesmo ocorre para a maturidade cognitiva das crianças. |
Capistrano et al. (2016) | Desempenho motor Gênero Faixa Etária Aptidão física | Microssistema Escolar. | Os meninos apresentaram resultados superiores de inadequação nos testes de aptidão física, comparados às meninas. Força e resistência abdominal, e a agilidade contribuíram para o desempenho motor. | Atividades relacionadas ao gênero direcionam a relação das diferentes dimensões de aptidão física e desempenho motor ao longo do tempo. |
Valentini et al. (2015) | Faixas Etárias Gênero Raça Desempenho motor e escolar | Macrossistema: condição socioeconômica das famílias. | A prevalência no gênero e faixas etárias pode ser influenciada por fatores socioculturais. | Necessidade de maior sensibilidade para o diagnóstico do TDC em casos de crianças que tiveram poucas oportunidades de desenvolver suas habilidades motoras ao longo do tempo, dentro do seu contexto sociocultural. |
Santos et al. (2015) | Estado nutricional Medidas antropométricas: peso e altura Desempenho motor | Microssistemas Familiar e Escolar Macrossistema: condição socioeconômica das famílias. | Associação entre o nível socioeconômico e desempenho motor. | Necessidade de identificar crianças com TDC antes dos anos escolares. |
Cardoso et al. (2014) | Idade Gênero Sintomas de déficit de atenção e hiperatividade | Microssistema Escolar: escolas públicas e particulares. | Relação importante entre TDC e sinais de déficit de atenção hiperatividade/ impulsividade ou TDAH combinado. | A combinação de TDC e TDAH merece maior atenção, pois parece ter importantes implicações a longo prazo. |
Moreira et al. (2014) | Desempenho motor, neuropsicológico e acadêmico História clínica e comportamento da criança; Recursos presentes no ambiente familiar | Microssistema Familiar – fatores relacionados ao ambiente familiar das crianças na perspectiva dos pais. Exossistema: relação entre desempenho motor e mãe em desemprego. Macrossistema: associação entre idade materna no parto e maior déficit no desempenho motor. | Relação dos fatores do ambiente familiar e variáveis sociais com desempenho motor. | Os resultados demonstram a importância do tempo de envolvimento em diferentes atividades do ambiente familiar. |
Contreira et al. (2014) | Estilo de vida de escolares | Microssistema Familiar – hábitos nas atividades dentro e fora de casa – e nas aulas de educação física. | Associação significativa entre provável TDC com jogar vídeo-games, em detrimento a atividades físicas mais ativas. | Dados fornecem subsídios para a elaboração de futuros programas de incentivo a hábitos saudáveis. |
Galvão et al. (2014) | Desempenho motor nas AVDs, atividades escolares e no brincar | Microssistema Familiar – percepção de mães brasileiras sobre o desempenho nas atividades cotidianas de crianças com TDC. | Desconhecimento sobre os problemas de coordenação motora por parte da família e professores. | Dificuldades nas atividades cotidianas e na relação com os pares, acentuados pela entrada na escola. |
Nascimento et al. (2013) | Desempenho motor Aptidão física | Microssistema Escolar: Escolas públicas de Manaus. | Crianças com TDC com dois diferentes graus de gravidade não diferem em termos de aptidão física relacionada à saúde. | Sugerem-se mais pesquisas que observam as interações entre desempenho motor e aptidão física ao longo do tempo. |
Valentini et al. (2012) | Desempenho motor Gênero Idade | Microssistema Escolar. Macrossistema: políticas públicas de atendimento preventivo e compensatório. | Maior prevalência de TDC em meninas e de problemas relacionados à destreza manual. Reflexão sobre a alta prevalência de TDC e preocupação diante dos poucos recursos disponíveis no Brasil para o atendimento destas crianças. | Os resultados referentes às dificuldades na destreza manual enfatizam a necessidade de identificar esta desordem antes do ingresso dessas crianças na escola. |
Silva et al. (2012) | Desempenho Escolar Gênero | Microssistema Escolar. | Professores no processo de indicação apontaram alunos com baixo rendimento escolar que realmente apresentaram indicativos de dificuldades de aprendizagem, em especial na leitura e escrita. Não houve relação com o desempenho motor. | São indicadas pesquisas para diagnóstico e implementação de programas de intervenção nas fases escolares iniciais para favorecer o bem-estar, a qualidade de vida e a saúde de crianças com dificuldades de aprendizagem e motoras. |
King et al. (2012) | Trajetória de desenvolvimento da produção e controle de torque do dedo | - | Dificuldade de controle do torque digital, que repercute na aquisição da habilidade de escrita. | A trajetória do desenvolvimento é semelhante, porém, atrasada no TDC. |
Miranda et al. (2011) | Desempenho motor Estado nutricional | Microssistema Escolar. Escolas públicas. | Escolares com TDC apresentaram desempenho inferior em todas as habilidades motoras em relação aos escolares sem o transtorno. Estado Nutricional semelhante entre os grupos. | Recomendam-se estudos longitudinais e de intervenção a fim de minimizar as dificuldades motoras. |
Araújo et al. (2011) | Desempenho ocupacional Desempenho funcional em tarefas | Microssistemas Familiar, Escolar e Terapêutico. | Processo de intervenção (CO-OP) contribui no desempenho funcional em tarefas escolhidas. O aprendizado nas tarefas escolhidas se generalizou para outros ambientes, segundo relatos da mãe. Estrutura de processo proximal entre terapeuta e criança proposta pelo CO-OP foi eficiente. | Os dados demonstram a importância da relação qualificada entre terapeuta e criança para obtenção do resultado ao longo do tempo. |
Mazer & Barba (2010) | Principais aspectos do TDC Sinais de risco | Microssistema Escolar: creches e pré-escolas municipais. | Importância da Terapia Ocupacional na atuação junto às crianças e seus familiares. | Importância de detectar os sinais do TDC em fase pré-escolar, a fim de minimizar as consequências futuras do transtorno no desempenho escolar. |
Magalhães et al. (2009a) | Desempenho motor de escolares e prematuridade | Microssistema Escolar e familiar. Macrossistema: condição socioeconômica. | Processos de escrita e desempenho nas AVDs ficam comprometidos pelas dificuldades na destreza manual de acordo com a queixa das mães. | Crianças com histórico de prematuridade quando atingem a idade escolar têm pior desempenho motor, comparado àquelas nascidas a termo. |
Magalhães et al. (2009b) | Coordenação motora em crianças | Microssistema Escolar: professores da rede Municipal e de escolas particulares. Macrossistema: políticas públicas brasileiras de atendimento. | Os professores observam problemas de coordenação. Maior prevalência nas escolas municipais. A atitude dos professores são reportar ao setor de orientação pedagógica, dar mais atenção ao aluno, conversar com pais e, em minoria, encaminhar para tratamento. | Importância da observação atenta do professor no tempo de processo proximal escolar. Importante investir em futuros estudos epidemiológicos e na identificação correta do TDC em crianças brasileiras. |
Legenda: TDC: Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação; TDAH: Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade; AVDs: atividades de vida diárias; CO-OP: Cognitive Orientation To Daily Occupational Performance.
Os estudos apresentaram um conjunto considerável de elementos do Núcleo Pessoa, sendo o desempenho motor a condição central dos estudos sobre TDC utilizada para identificar o transtorno e correlacionar com outras variáveis da história clínica (idade gestacional e peso ao nascimento) e de aspectos biológicos da criança (gênero, idade, estado nutricional, aptidão física, controle de torque digital, desempenho cognitivo).
A análise à luz da TBDH identificou o quanto essas características da criança com TDC influenciam nas suas disposições para a sustentação dos processos proximais, especialmente nos microssistemas familiar e escolar, por meio das diferenças entre faixas etárias, gênero, repercussão no desempenho acadêmico ou escolar, estilo de vida e relacionamentos com pares, familiares e professores. Além disso, alguns estudos mostram características das demandas que essas dificuldades motoras trazem para o microssistema familiar e escolar, com base na percepção e relato de pais e professores analisados por meio de entrevistas e questionários. A influência do exossistema e macrossistema sobre o desenvolvimento da criança também foi identificada, considerando dados relevantes de associação entre dificuldades motoras e condição socioeconômica desfavorável (nível econômico, idade da mãe no parto, desemprego materno).
O Núcleo Tempo foi identificado, especialmente, em relação à importância do diagnóstico e intervenção precoce, a localizar eventos normativos de vida relacionados ao TDC e à proposição de estudos sobre TDC na perspectiva longitudinal.
Em virtude da maior ocorrência de estudos de abordagem quantitativa e que incluíam instrumentos ou medidas, considerou-se relevante a verificação de quais elementos dos núcleos PPCT tais instrumentos possibilitam coletar (Tabela 4).
Tabela 4 Categorização dos instrumentos e medidas nos núcleos PPCT.
Elementos dos núcleos PPCT | Variável de estudo | Instrumentos |
---|---|---|
PESSOA Recursos biológicos do indivíduo | Desempenho motor | MABC 1 ou 2 |
DCDQ – Brasil | ||
Questionário de Capacidades e Dificuldades | ||
AMCD | ||
COPM | ||
PQRS | ||
Protocolo de avaliação de sinais do TDC | ||
Desempenho neuropsicológico | Escala de Maturidade Mental Colúmbia – EMMC | |
Token Test | ||
RPCM | ||
SNAP-IV | ||
PEGS | ||
Estado Nutricional | Índice de Massa Corporal | |
Aptidão Física | PROESP-BR | |
DSM IV TR | ||
Fitnessgram | ||
Disposições | Estilo de vida | EVIA |
Desempenho acadêmico | Teste de Desempenho Escolar | |
Demanda | Percepção de pais e professores | Entrevistas semiestruturadas |
Cotidiano familiar | EVIA | |
RAF | ||
CONTEXTO | Recursos do ambiente familiar | RAF |
Envolvimento em atividades dentro e fora de casa | EVIA | |
RAF | ||
Relação professor-criança; família-escola-criança | Entrevistas semi-estruturadas | |
RAF | ||
Condições de risco social | Questionário de Capacidades e Dificuldades | |
Condição socioeconômica | Critério de Classificação Econômica Brasil | |
Ações no ambiente escolar para crianças com dificuldades motoras na idade escolar | Entrevistas semiestruturadas | |
PROCESSOS PROXIMAIS | Relação familiar | RAF |
Relações da criança fora do ambiente escolar | EVIA | |
RAF | ||
Relação escolar com professores e pares | Entrevistas semiestruturadas | |
TEMPO | Tempo de engajamento em atividades dentro e fora de casa | EVIA |
RAF | ||
Relação faixa etária e desempenho motor | MABC 1 ou 2 |
Legenda: MABC-1 ou 2: Movement Assessment Batery Children 1 e 2 edições; DCDQ – Brasil: Developmental Coordination Disorder Questionaire versão brasileira; AMCD: Avaliação da Coordenação e Destreza Motora; COPM: Medida Canadense de Desempenho Ocupacional; PQRS: Análise Dinâmica do Desempenho; TDC: Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação; RPCM: Raven’s Progressive Coloured Matrices –versão brasileira; SNAP-IV: Swanson, Nolan and Pelham IV Scale; PEGS: Perceived Efficacy and Goal Setting System; PROESP-BR: Testes de aptidão física do Manual de Aplicação de Medidas, Testes, Normas e Critérios de Avaliação do Projeto Esporte Brasil; DSM IV TR: Diagnostic and statistical manual of mental disorders – 4th ed., text revision (American Psychiatric Association, 2000); EVIA: Inventário de Estilo de Vida na Infância e Adolescência; RAF: Inventário de Recursos do Ambiente Familiar.
O presente estudo teve por objetivo realizar uma revisão integrativa da literatura nacional sobre TDC e relacionar os conteúdos dos estudos com os elementos dos núcleos PPCT da TBDH. Os estudos revelaram a presença dos quatro elementos com base em seus objetivos, método e desfechos. Há o predomínio do núcleo Pessoa nas pesquisas, na medida em que avaliam o repertório individual de características biológicas, cognitivas, emocionais e comportamentais da criança com TDC, que influenciam no seu desenvolvimento. Elementos dos outros núcleos (processo, contexto e tempo) foram passíveis de identificação, denotando uma indissociabilidade entre todos.
Considerando a prevalência do TDC, que esteve entre 4,3% (Cardoso et al., 2014) a 19,9% (Valentini et al., 2012) para crianças com provável TDC e 5,9% (Capistrano et al., 2016) a 22,2% (Contreira et al., 2014) para risco de TDC, há a necessidade de se conhecer os fatores de risco que influenciam no desenvolvimento e na manifestação do TDC e as características da Pessoa no que tange às dificuldades sensório-motoras presentes no desenvolvimento das habilidades. De igual importância é o reconhecimento da influência do TDC em diferentes contextos ecológicos presentes no cotidiano da criança e as melhores práticas terapêuticas, familiares, educacionais e culturais acerca do problema.
A prevalência mais elevada do TDC foi encontrada em prematuros, com índices de 39% (Moreira et al., 2014) e 57% (Magalhães et al., 2009a). Quanto menor o peso ao nascer e a idade materna no parto, maior a chance de prejuízos no resultado do teste de desempenho motor do MABC-2 (Moreira et al., 2014).
No estudo de Rocha et al. (2016) foi encontrado prejuízo do desenvolvimento cognitivo de crianças com TDC quando comparado a crianças com desenvolvimento típico (Rocha et al., 2016). Apesar de Silva et al. (2012) não terem encontrado correlação significativa entre dificuldades de aprendizagem e problemas motores (com número amostral de somente 19 crianças), houve comorbidade importante com TDAH (41,2% das crianças com TDC) no estudo de Cardoso et al. (2014).
Três estudos sobre a prevalência do TDC em crianças brasileiras encontraram a destreza manual como a dimensão motora mais prejudicada (Beltrame et al., 2017; Valentini et al., 2012, 2015). Segundo King et al. (2012), crianças com TDC possuem menor controle de torque digital, e desenvolvimento da produção e controle do torque mais atrasado. Há dificuldade de produção de força, alta variabilidade e regularidade na resposta motora, com dificuldade de adaptação à demanda de modificações de tarefa na motricidade fina (Oliveira et al., 2005). O estudo de Valentini et al. (2015) também encontrou prejuízos importantes no equilíbrio, e Valentini et al. (2012) observaram pior habilidade de lançar/receber nas meninas.
Dessa maneira, identifica-se a presença marcante do núcleo Pessoa ao abordar os comprometimentos no desempenho da criança com TDC. Esse prejuízo no repertório individual de habilidades caracteriza os recursos biopsicológicos da criança para seu desenvolvimento. Conforme Bronfenbrenner (1999), as consequências desse repertório limitado também são construídas na relação com o ambiente, e pode, de forma recíproca, ser gerador ou desorganizador para os processos de desenvolvimento. Alguns exemplos dessa relação são mostrados nas linhas a seguir, como o engajamento da criança TDC em atividades físicas, o ganho de peso, sua autonomia no cotidiano familiar ou escolar, a interação com objetos e símbolos, e na comparação social com pares.
Ainda que exista a discussão acerca do maior ganho de peso na presença do TDC (Goulardins et al., 2016), os estudos com crianças brasileiras têm encontrado maior índice de eutrofia (Santos et al., 2015; Miranda et al., 2011), com níveis de aptidão física (Nascimento et al., 2013) semelhantes a crianças sem TDC. Apesar disso, Contreira et al. (2014), ao utilizarem o EVIA com crianças de 11 a 13 anos, observaram uma associação significativa entre provável TDC e maior frequência do jogar vídeo-games, em detrimento de atividades físicas mais ativas.
Quando questionados pais e professores acerca das principais dificuldades das crianças com TDC, estas são percebidas em diferentes contextos ecológicos, sejam nas atividades de vida diária, no brincar e nas atividades escolares (Galvão et al., 2014), mais especificamente na dificuldade de manejo da tesoura e no relato mais frequente de uma criança “desajeitada” (Magalhães et al., 2009b).
Em 14 dos 19 estudos, a MABC foi utilizada para a avaliação do desempenho motor da criança e triagem para TDC. Este é, atualmente, o instrumento de referência para identificação do TDC, tanto pela sua presença extensa em pesquisas sobre o assunto quanto pela recomendação da comissão europeia acerca de sua utilização (Blank et al., 2013). Já validado para a população brasileira, o MABC é composto pela bateria de testes motores (Valentini et al., 2014) e pelo teste de checagem das dificuldades motoras (Ramalho et al., 2013) a ser respondido pelos adultos que lidam com a criança em seu cotidiano. Observa-se, porém, que a bateria de testes motores do MABC é comumente utilizada para triagem do TDC de forma isolada. Em acordo com as diretrizes diagnósticas do TDC, é importante que as dificuldades motoras tenham repercussão sobre a autonomia nas atividades diárias e habilidades na escola, o que justificaria o uso também de instrumentos que identificam esse impacto, como o teste de checagem do MABC e o Developmental Coordination Disorder Questionaire (DCDQ) na versão brasileira DCDQ-Brasil (Prado et al., 2009; Magalhães & Wilson, 2017), por exemplo.
Vaivre-Douret (2014) alerta para a necessidade de associar aos testes de desempenho motor a avaliação de aspectos relacionados ao desenvolvimento neurológico da criança (como tônus, percepção visuomotora, praxia, lateralidade, percepção digital, integração entre ritmo e noção do corpo no espaço), assim como dos testes neuropsicológicos, especialmente das funções executivas. Isso tanto para um processo de diagnóstico diferencial quanto para elucidar melhores estratégias de intervenção.
Considerando todos esses aspectos, o Cognitive Orientation to Daily Occupational Performance (CO-OP) parece ser uma referência para intervenção no TDC, por associar estratégias de desenvolvimento cognitivo ou de funções executivas ao treinamento de habilidades motoras orientado à tarefa (Zwicker et al., 2015). Conforme mostram Sangster Jokić & Whitebread (2016), as habilidades autorregulatórias em crianças com TDC estão prejudicadas de tal forma a serem ineficientes ou necessitarem de muita mediação do instrutor ou terapeuta para o processo de aprendizagem de uma habilidade motora. Na estratégia do CO-OP, o terapeuta media o processo, porém, com participação muito ativa da criança na escolha da meta, estabelecimento de estratégias para alcançá-la e autoavaliação (Zwicker et al., 2015). O CO-OP mostrou eficácia para alcance de metas motoras, transferência do aprendizado para metas extras e aumento da satisfação em um grupo de crianças brasileiras (Araújo et al., 2011, 2019). O engajamento dos pais no processo terapêutico contribuiu para o sucesso da intervenção. Isso ocorreu por meio da participação destes nas sessões de intervenção, produção de material impresso com informações sobre a estratégia global do CO-OP a serem utilizados em tarefas de casa, e uma sessão extra somente com pais para orientação (Araújo et al., 2019).
As relações com o núcleo Contexto se mostram naqueles estudos que associam as condições biológicas da criança com aquelas encontradas no micro, meso e exossistema. Moreira et al. (2014) identificaram que, em relação à idade materna no momento do parto, para cada ano adicional na idade da mãe, há uma redução de 12% na chance de a criança apresentar uma pontuação anormal no MABC-2. Crianças cuja mãe estava empregada no momento da entrevista tinham quatro vezes menor chance de ter uma pontuação deficiente no MABC-2.
Estudos identificam a relação entre TDC e condição socioeconômica (Della Barba et al., 2017; Santos et al., 2015). Crianças de escolas particulares tiveram melhor desempenho no teste motor (Cardoso et al., 2014), assim como menos relatos de problemas de coordenação motora por parte dos professores, comparativamente às de escolas públicas (Magalhães et al., 2009b). Valentini et al. (2015) apontaram um dos índices mais elevados (18% de crianças com provável TDC e mais de 15% para risco de TDC) ao investigar a prevalência de TDC em crianças socialmente desfavorecidas no Brasil, sendo o status socioeconômico determinante em 21% na variação do percentil no MABC.
Considerando os prejuízos biológicos, cognitivos e emocionais da criança com TDC, torna-se importante o olhar sobre as oportunidades de desenvolvimento dadas a elas em uma estrutura social e nos processos que se estabelecem nos diferentes contextos. Nobre et al. (2014), em estudo sobre a ecologia do desenvolvimento motor de escolares extremamente pobres no nordeste do Brasil, identificaram atrasos nas habilidades motoras fundamentais em 95% das crianças avaliadas. Quanto à estrutura em que viviam essas crianças, apontou a inexistência de espaço físico para prática de atividades motoras orientadas, pois a grande maioria das escolas são desprovidas de espaços para aulas de educação física e de profissionais da educação física. As professoras relataram a falta de recursos materiais e de proposta didático-pedagógica para promover a proficiência motora das crianças, revelando descompromisso do Poder Público local. Na comunidade, havia a heterogeneidade de oportunidades, havendo mais de uma unidade social de apoio em alguns bairros, com música, dança e reforço escolar, em detrimento de nenhuma unidade na maioria deles. No caso da criança com TDC, observa-se no relato de professores a falta de política estruturada para o atendimento e acompanhamento dessa criança, deixando que somente a escola e a família ofereçam as condições que julguem ser importantes para seu desenvolvimento (Magalhães et al., 2009b).
Já no relato das mães, identifica-se um comportamento de super-proteção e o “fazer pela criança” muito presentes no sistema domiciliar, ao se depararem com as dificuldades do filho em suas atividades escolares e de vida diária (Galvão et al., 2014). A maior preocupação das mães está na socialização de seus filhos, considerando suas dificuldades de participação nas brincadeiras motoras na escola, comportamento desajeitado, lento e estigmatização por parte dos colegas. Conforme Nobre et al. (2014, p. 271)
[…] fica explícito que a PM [proficiência motora] da criança orienta suas metas e disposições e provoca a demanda dos seus pares, afetando a maneira como estes lidam com a criança em desenvolvimento e com as metas, valores e expectativas que têm em relação a ela.
A abordagem metodológica qualitativa, conforme utilizada por Galvão et al. (2014) e Magalhães et al. (2009b), é capaz de abstrair dos participantes informações muito relevantes para análise sob o modelo PPCT. O estudo de Nobre et al. (2014) especificamente delineado sob o modelo bioecológico, também traz a riqueza de dados adquiridos com o método etnográfico, de inserção do pesquisador no ambiente natural dos fenômenos. Entretanto, Prati et al. (2008) destacam que não há uma proposta rígida de método de pesquisa na abordagem de Bronfenbrenner, sendo fundamental que o modelo de pesquisa nesta teoria sistematize seu delineamento e analise os núcleos com base nos elementos do modelo.
Considerando que 16 estudos da amostra dessa revisão utilizaram a abordagem metodológica quantitativa, dois instrumentos se destacam na possibilidade de ampliar o olhar sobre o desenvolvimento da criança pelo modelo PPCT: o RAF e o EVIA. O Inventário de Recursos do Ambiente Familiar (RAF), utilizado por Moreira et al. (2014), foi criado no contexto brasileiro pela pesquisadora Edna Marturano (2006), com ênfase nos recursos que promovem processos proximais, ou seja, práticas parentais que promovem a ligação família-escola e as atividades que sinalizam estabilidade na vida familiar. O EVIA também se demonstrou capaz de coletar alguns dados relacionados ao processo proximal entre criança e família no ambiente domiciliar identificando aspectos dessa relação, como frequência em passear e ajudar nas tarefas domésticas, por exemplo (Contreira et al., 2014). A utilização deste instrumento identificou que crianças com TDC jogam mais video-games do que aquelas sem TDC, mas não foram encontradas outras diferenças significativas entre o estilo de vida dos pais e de crianças com provável TDC e desenvolvimento típico (Contreira et al., 2014). Já a correlação entre o escore do RAF e uma pontuação anormal no MABC-2 foi a mais forte no estudo de Moreira et al. (2014). Para cada aumento de 10 pontos no escore RAF (ambiente com processos mais favoráveis ao desenvolvimento) havia uma redução observada de 36,5% na chance de a criança prematura ter um escore anormal na MABC-2, compatível com TDC, mostrando a importância do ambiente estimulador.
Tanto o RAF quanto o EVIA também possibilitam ao pesquisador uma análise direta sobre o núcleo Tempo, na medida em que caracterizam a rotina da criança em relação ao tempo que passa brincando, em outras atividades de lazer, dentro e fora de casa, ou em processo direto de contato com os pais, todos aspectos muito importantes para o desenvolvimento da criança (Marturano, 2006; Moreira et al., 2014). Compreende-se que elementos do núcleo Tempo estiveram intrínsecos em todas essas pesquisas, já que avaliam o desempenho das crianças no período pré-escolar ou escolar, um importante momento de transição ecológica para a criança (Bronfenbrenner, 2011). A análise da amostra de estudos dessa revisão mostra o quanto a detecção e intervenção precoce do TDC, tanto na criança quanto nos contextos em que está inserida, pode fazer diferença em sua experiência de aprendizado escolar, em seu desempenho e nas demandas que suas dificuldades inserem no contexto familiar e escolar. Tal-Saban et al. (2014) identificaram que, já na fase adulta, pessoas com TDC continuam com níveis de participação mais baixos nas atividades diárias, assim como de qualidade e satisfação com a vida. Portanto, a dimensão Tempo surge nos estudos em geral apontando para ações de prevenção, dentre outras, que podem promover a médio e longo prazo a melhoria na qualidade de vida dessas pessoas.
Nesta revisão, houve o predomínio de estudos transversais com metodologia quantitativa. Os elementos do núcleo Pessoa estiveram presentes em todos os artigos analisados, sendo o desempenho motor a condição central na identificação do TDC e correlação com outras variáveis clínicas, de saúde e sociais. No núcleo Tempo destacou-se a importância do diagnóstico, da intervenção precoce e especificidades dos eventos de vida normativos da criança. Observou-se intenso uso do MABC como instrumento de identificação, assim como a importância de estabelecimento de medidas mais amplas para a análise do desenvolvimento da criança com TDC.
Com base nesses resultados, identifica-se a necessidade de continuidade de investigações sobre prevalência do TDC no Brasil. Em adição, ficou evidente que instrumentos para a detecção precoce do TDC e caracterização das dificuldades requerem aprimoramento. Há também demanda para o desenvolvimento de intervenções que contemplem os contextos da família, da escola e fomente estratégias para o empoderamento destes familiares e profissionais acerca do TDC. Por fim, destaca-se a necessidade de estudos que contemplem a dimensão do macrossistema, que dialoguem com o desenvolvimento de políticas de saúde e educação no Brasil, a fim de considerar os impactos do TDC no curso desenvolvimental dessas crianças e nas demandas aos diferentes contextos.
A presente revisão apresenta a limitação da busca somente por determinadas bases de dados por revistas indexadas, relacionada apenas às pesquisas em contexto brasileiro e sem inclusão de teses e dissertações. Apresenta, porém, um olhar original sobre as pesquisas que estão sendo realizadas com TDC, à medida que se propôs realizar o diálogo com os núcleos PPCT da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano.