versão impressa ISSN 1806-3713
J. bras. pneumol. vol.40 no.3 São Paulo maio/jun. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37132014000300015
Doença pulmonar e cardíaca induzida por drogas pode resultar da toxicidade dos fármacos para o indivíduo ou da interação entre fármacos, com comprometimento da cinética e do metabolismo.( 1 , 2 ) O nexo de causalidade entre a administração de drogas e uma reação idiossincrática é geralmente difícil de reconhecer, especialmente em casos de pacientes tratados com múltiplos medicamentos.( 1 , 3 ) Portanto, são frequentemente necessários alta suspeição clínica e estudo amplo. A base molecular da lesão pulmonar tóxica ainda é pouco definida para a maioria dos medicamentos ofensivos conhecidos atualmente.( 2 )
Relatamos o terceiro caso de paciente com pneumonite intersticial e miocardiopatia dilatada induzidas pela venlafaxina, com uma nova percepção sobre o potencial mecanismo de lesão.
Paciente do sexo feminino, 35 anos de idade, apresentava dispneia progressiva nos últimos três meses, classe funcional III da New York Heart Association (NYHA), mialgia e tosse seca. Foi internada e submetida a angiografia por TC de tórax, que excluiu doença tromboembólica pulmonar mas revelou micronódulos parenquimatosos indistintos, espessamento dos septos interlobulares e áreas de atenuação em vidro fosco bilaterais e sutis, principalmente nos lobos superiores, sem adenopatias ou derrame pleuropericárdico (Figura 1). A radiografia de tórax revelou padrão misto (reticular e micronodular) e cardiomegalia (Figura 2). Simultaneamente, foi diagnosticada com insuficiência cardíaca subaguda grave causada por miocardiopatia dilatada.
Figura 1 TC de tórax na admissão hospitalar revelando micronódulos parenquimatosos indistintos (setas curtas) com espessamento dos septos interlobulares e áreas de atenuação em vidro fosco difusas e sutis (setas longas).
Figura 2 Em A, radiografia de tórax na admissão hospitalar mostrando padrão intersticial misto (reticular e micronodular) e cardiomegalia. Em B, radiografia de tórax na alta hospitalar mostrando a normalização dos campos pulmonares e da área cardíaca.
Apresentava história de depressão e havia iniciado tratamento com uma formulação de liberação lenta de venlafaxina há três meses. Desde o ano anterior, estava tomando suplementos fitoterápicos de Centella asiatica e Fucus vesiculosus para perda de peso. Não apresentava história de tabagismo, de uso de álcool ou de uso de drogas ilícitas. Exames médicos anteriores haviam sido negativos para doenças cardíacas, e não havia história familiar relevante nem história de exposição ocupacional.
O exame físico revelou apirexia, hipotensão leve e SpO2 de 94%. Na auscultação, havia estertores crepitantes bibasais, com sopro holossistólico de grau II/VI típico da regurgitação mitral. A veia jugular não apresentava inchaço; tampouco havia hepatomegalia ou edema periférico.
O eletrocardiograma mostrou ritmo sinusal normal, batimentos ventriculares prematuros e inversão da onda T em V4-V6, conhecida como "tensão"; uma fração de ejeção ventricular esquerda (FEVE) de 21% foi identificada na angiografia de radionuclídeos; também foram encontradas dilatação biatrial, dilatação grave do ventrículo esquerdo (71/60 mm) e função sistólica global gravemente comprometida (FEVE = 20%); dilatação moderada do ventrículo direito com comprometimento sistólico - excursão sistólica do plano anular da valva tricúspide de 15 mm (valor normal, 15-20 mm), velocidade de S' de 0,06 m/s (valor normal, > 0,15 m/s) - e regurgitações funcionais mitral e tricúspide graves foram encontradas no ecocardiograma.
O cateterismo cardíaco revelou artérias coronárias normais e índice cardíaco de 2,36 L . min−1 . m−2 (valor normal, 2,6-4,2 L . min−1 . m−2). As biópsias miocárdicas apresentaram celularidade mista sem fibrose ou qualquer outra forma de infiltração. Os testes de detecção de DNA foram negativos para vírus do herpes simplex, herpesvírus humano 6 (HHV-6), HHV-8, citomegalovírus, vírus BK e vírus Epstein-Barr.
Os resultados dos testes de função pulmonar foram normais. Porém, a capacidade de difusão mostrou-se um pouco diminuída (PaO2/FiO2 = 320).
O hemograma apresentou parâmetros inflamatórios normais, eutireoidismo e nível de peptídeo natriurético cerebral de 963,6 pg/mL (valor normal, < 100 pg/mL). Os parâmetros renais e hepáticos, as proteínas do complemento e o sedimento urinário estavam todos normais. O painel sorológico foi negativo para HIV, sífilis, Mycoplasma sp., Coxiella sp., citomegalovírus, vírus Epstein-Barr, parvovírus B19 e HHV-6. Os resultados dos testes para doenças autoimunes foram normais.
Os resultados da broncoscopia foram normais. O LBA apresentou celularidade normal, relação de linfócitos CD4/CD8 diminuída (0,7) e presença maciça de macrófagos espumosos (Figura 3). O estudo microbiológico do LBA foi negativo. Não foram obtidas biópsias pulmonares transbrônquicas, em razão de taquicardia ventricular durante o exame.
Figura 3 Fotomicrografia mostrando macrófagos espumosos no LBA (May-Grümwald-Giemsa; aumento, 400×).
Foi iniciado o tratamento padrão, sem melhora. Foi então iniciado suporte inotrópico. Porém, nenhuma melhora foi observada ao longo de uma semana. Na época, tomou-se a decisão de descontinuar a venlafaxina. Duas semanas depois, a TCAR revelou uma melhora notória, com a permanência de apenas alguns nódulos centrolobulares no lobo inferior direito. Juntamente com essa recuperação radiológica, verificou-se uma melhora geral, e a FEVE foi até 35% na alta hospitalar.
Quatro meses depois, a paciente apresentava FEVE próxima à normal (50%), classe funcional I da NYHA, apresentando somente dilatação leve do ventrículo esquerdo (60/40 mm) e regurgitação mitral leve. A maioria dos medicamentos cardíacos foi, portanto, descontinuada.
Vários trabalhos relatam efeitos adversos relacionados à venlafaxina. Há relatos de pneumonite intersticial aguda e subaguda( 4 - 7 ) e também de casos de pneumonia eosinofílica,( 8 , 9 ) embora os mecanismos envolvidos ainda não estejam esclarecidos.
O diagnóstico da doença pulmonar intersticial induzida por drogas é dificultado por sua inespecificidade clínica, por variabilidades individuais, pelo efeito de confusão causado por comorbidades e pelo tratamento com múltiplos medicamentos.( 4 ) Além disso, foram descritos casos de insuficiência cardíaca aguda induzida pela venlafaxina, alguns até mesmo em pacientes previamente hígidos em uso de regimes padronizados de dosagem.( 4 , 10 ) Alguns autores relataram miocardiopatia dilatada e choque cardiogênico em um paciente com função cardíaca previamente normal, com recuperação da FEVE após a descontinuação do medicamento.( 10 ) Com o uso da Escala de Probabilidade de Reações Adversas a Medicamentos, proposta por Naranjo et al.,( 11 ) encontrou-se uma provável ligação com a venlafaxina.( 10 ) Embora o mecanismo de agressão cardíaca ainda não seja totalmente compreendido, há relatos de inibição da recaptação da noradrenalina pelo miocárdio e de bloqueio dos canais de sódio cardíacos, ambos induzidos por drogas.( 12 )
A superfamília do citocromo P450 (CYP) está presente no tecido pulmonar humano e participa da inativação enzimática de inúmeros xenobióticos.( 13 ) Diferenças metabólicas relacionadas a polimorfismos do CYP contribuem para a variabilidade refletida em respostas a drogas e toxicidade inesperada.( 2 ) Alguns autores mostraram que, entre 59 pacientes com doença pulmonar intersticial induzida por drogas, 54 (91,5%) apresentavam pelo menos um dos genes variantes do CYP estudados.( 2 ) Em 87% dos pacientes, a presença de tais genes mostrou-se relevante para o perfil clínico.( 2 )
A venlafaxina é um antidepressivo que é metabolizado em O-desmetilvenlafaxina (ODV) pela isoenzima CYP2D6 e, em menor escala, pela CYP3A4.( 14 ) Para inúmeras drogas psicotrópicas, a CYP2D6 é uma enzima de alta afinidade/baixa capacidade cujos polimorfismos podem fenotipicamente determinar uma metabolização lenta, prolongada ou rápida.( 15 , 16 ) Como uma variante menos funcional pode ser capaz de precipitar manifestações graves,( 15 ) a administração de venlafaxina em metabolizadores lentos de CYP2D6 ou a coadministração com inibidores de CYP2D6 traz o risco de acúmulo de fármacos e subsequente agressão celular/orgânica.( 16 ) Demonstrou-se que a Centella asiatica pode induzir inibição moderada a forte da CYP2D6( 17 ) e que o Fucus vesiculosus pode também inibir o complexo enzimático citocromo P450.( 18 ) Dessa forma, embora o perfil de CYP2D6 de nossa paciente não tenha sido testado, temos como hipótese que ela era uma metabolizadora lenta de CYP2D6 ou que a ação inibitória do uso concomitante de medicamentos fitoterápicos contribuiu para o acúmulo da venlafaxina, levando a toxicidade cardiopulmonar.
A fosfolipidose induzida por drogas é caracterizada pelo acúmulo intracelular de fosfolipídios em vários tecidos corporais e pela formação de corpos lamelares, levando a uma aparência espumosa dos macrófagos à microscopia de luz.( 19 ) Pode ser causada por mais de 50 fármacos que compartilham uma estrutura molecular específica, com regiões hidrofóbicas e hidrofílicas, denominados drogas anfifílicas catiônicas.( 20 ) A formulação de venlafaxina utilizada por nossa paciente foi analisada pelo Departamento de Química Orgânica, Universidade de Coimbra, Portugal. A paciente estava tomando uma formulação da mistura racêmica de cloridrato de (R/S)-1-[(2-dimetilamino)-1-(4-metoxifenil)etil]- ciclohexanol. Sua estrutura combina um componente catiônico hidrofílico (grupos amina terminal e álcool terciário) com um componente apolar hidrofóbico (metoxilação do anel aromático e grupo ciclohexil), conferindo anfifilicidade.( 21 ) Além disso, tem propriedade catiônica,( 22 ) pois a ODV apresenta um grupo fenol acídico (proveniente da hidrólise dos éteres metílicos ligados ao anel aromático) e o grupo amina pode sofrer grande protonação intramolecular, tornando-se uma droga anfifílica catiônica ao assumir a forma zwitterion (grupos amina aromática O- e amina H+). Esse fato, associado ao contexto clínico e à presença maciça de macrófagos espumosos no LBA, sugere fortemente um mecanismo de fosfolipidose induzida pela venlafaxina.
Embora a fosfolipidose induzida por drogas possa ocorrer horas ou meses após o início do tratamento,( 19 ) seus mecanismos exatos ainda não estão totalmente esclarecidos. Os lisossomos atuam como um local de acúmulo de drogas anfifílicas catiônicas e fosfolipídios por causa de sua ligação direta com as drogas anfifílicas catiônicas e da inibição das fosfolipases.( 19 , 20 ) Como os lisossomos participam de uma grande variedade de processos celulares, pode haver comprometimento do transporte iônico, fosforilização oxidativa, heterofagia, autofagia, reciclagem de organelas, reparação da membrana celular e regulação do ciclo celular. Três padrões reconhecidos de dano podem ocorrer: fosfolipidose macrofágica (o mais comum), fosfolipidose celular parenquimatosa e fosfolipidose localizada.( 19 )
Outra característica típica da fosfolipidose induzida por drogas é a sua reversibilidade após a descontinuação da droga.( 1 ) Como os níveis de fosfolipídios se normalizam e ocorre efluxo da droga, as alterações orgânicas, funcionais e radiológicas geralmente melhoram em semanas ou meses.( 19 ) A reversibilidade geralmente é total, mas danos permanentes podem diminuir em casos de lesão orgânica mais grave.( 2 )
O presente caso detalha a ocorrência de toxicidade cardiopulmonar, provavelmente associada à venlafaxina. O caso ocorreu em uma paciente previamente hígida de 35 anos de idade que foi submetida a investigação exaustiva após a exclusão de outras possíveis causas. Apenas dois casos semelhantes foram relatados na literatura.( 4 )
Reconhecemos a administração concomitante de dois medicamentos fitoterápicos sabidamente inibidores da isoenzima específica do metabolismo da venlafaxina, o que explicaria o acúmulo de venlafaxina e ODV a níveis tóxicos. A forte relação temporal entre a administração da droga e as manifestações clínicas e, inversamente, entre a descontinuação da droga e a rápida melhora das alterações pulmonares e da função cardíaca fornece suporte adicional a essa hipótese. Por razões éticas, não foi feita reexposição à venlafaxina. Após uma análise objetiva, considerando-se a Escala de Probabilidade de Reações Adversas a Medicamentos de Naranjo,( 11 ) foi feito o diagnóstico de toxicidade cardiopulmonar induzida pela venlafaxina.
Uma fosfolipidose induzida por drogas poderia ser o mecanismo de toxicidade, pois a venlafaxina é uma droga anfifílica catiônica em potencial, e também porque havia grandes quantidades de macrófagos espumosos no LBA, relação de linfócitos T CD4/CD8 diminuída no sangue e no LBA e características consistentes com um padrão do subtipo "fosfolipidose macrofágica".
O presente caso destaca a importância da alta suspeição clínica para o reconhecimento oportuno da toxicidade cardiopulmonar induzida por drogas, especialmente em casos de doença inicialmente inexplicável. A descontinuação imediata da droga geralmente resulta em notável melhora clínica e do prognóstico.