versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.40 no.3 São Paulo jul./set. 2018 Epub 28-Maio-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-3824
Em 2002, as diretrizes da Iniciativa de Qualidade em Resultados de Insuficiência Renal Crônica da Fundação Nacional do Rim (National Kidney Foundation K/DOQI guidelines) definiram insuficiência crônica renal (IRA) como sendo lesão renal com duração de três meses ou mais. Esse dano pode se manifestar com alterações estruturais do rim com ou sem redução da filtração glomerular. As modificações estruturais podem ser evidenciadas histologicamente, radiologicamente ou por marcadores bioquímicos de dano renal em exames séricos ou de urina. Uma redução da função renal se apresenta como uma taxa de filtração glomerular inferior a 60 mL/min/1,73 m2 com ou sem lesão renal (K/DOQI).1
A prevalência da insuficiência renal crônica vem aumentando mundialmente. Nos Estados Unidos da América, a prevalência aumentou em 10% entre 1988 e 1994 e em 13,1% entre 1999 e 2004. Em Taiwan, houve um aumento de 2% em 1996 e 9,3% em 2003. Um estudo no Japão mostrou um aumento da prevalência no sexo masculino (13,8% em 1974 e 22,1% em 2002) sem qualquer aumento significativo no sexo feminino.2
No México, como na maioria dos países, tem-se observado um aumento acentuado na prevalência e incidência de IRA. De acordo com os dados estatísticos mais recentes do Instituto Mexicano de Seguridade Social (Instituto Mexicano del Seguro Social ou IMSS), estima-se uma incidência de 377 casos por milhão de habitantes, com uma prevalência de 1.142 habitantes. Atualmente, há em torno de 52.000 pacientes sendo submetidos a tratamento de substituição renal, dos quais em torno de 80% são dependentes do IMSS. Houve um aumento de 92 pacientes por milhão de habitantes em 1999 e 400 pacientes por milhão de habitantes em 2008.3
O óxido nítrico é um dos fatores que regulam o tônus vascular e contribuem com a disfunção endotelial. Este composto é sintetizado no endotélio vascular pela ação da enzima óxido nítrico sintase (NOS).4
A enzima NOS tem 3 isoformas:
nNOS ou NOS tipo I (óxido nítrico sintase neuronal)
iNOS ou NOS tipo II (óxido nítrico sintase induzível)
eNOS ou NOS tipo III (óxido nítrico sintase endotelial).5
O gene da nNOS está localizada em 12q24 e o gene da iNOS está localizada em 17q11.2. O gene NOS3 será descrito em detalhe na próxima seção. Cada uma destas enzimas exibe certas características que estão sumarizadas na Tabela 1.6
Tabela 1 Características das diferentes isoformas da enzima NOS.6
Isoforma | Características |
---|---|
nNOS | 150-160 KDa |
Ligada ao citosol e à membrana Expressão constitutiva Dependente do cálcio Baixa produção de NO (óxido nítrico) |
|
iNOS | 125-135 KDa |
Predominância no citosol | |
Expressão indutível Não-dependente do cálcio Elevada produção de NO |
|
eNOS | 135 KDa |
Principalmente acoplada à membrana Expression constitutiva Dependente do cálcio Baixa produção de NO e miristoilação palmitoilação pós-translacional |
A isoforma mais importante para esta revisão é a óxido nítrico sintase endotelial (eNOS).
Estudos de associação genômica ampla (GWAS) abrem a possibilidade de encontrar possíveis genes de susceptibilidade a doença renal e à progressão da IRA (Staples et al, 2010 Risk Factors for progression of chronic kidney disease - Fatores de Risco na evolução da insuficiência renal crônica). Um desses genes é o NOS3 que contém 23.605 bases e está localizado em 7q36.1. Tem 26 exons e codifica eNOS, uma enzima composta por 1.203 amino ácido com um peso molecular de 133.289 Da.7,8
Esta enzima atua como um homodímero e encontra-se presente na membrana celular, no citoplasma e no aparelho de Golgi. A enzima usa 5 cofatores:
Um heme
FAD (dinucleotídeo da flavina-adenina)
FMN (mononucleotídeo da flavina)
BH4 (cofator da tetrahidrobiopterina)
NADPH (fosfato de dinucleotídeo da nicotinamida e adenina).9
A enzima catalisa a conversão da L-arginina a óxido nítrico (Figura 1). Esta síntese é feita por meio de 2 reações. Em primeiro lugar, a enzima atua como uma hidroxilase da arginina. Na segunda reação, atua como uma mono-oxigenase da hidroxiarginina. Nesta reação, há uma transferência líquida de cinco elétrons, quatro dos quais são necessários para reduzir O2 do NADPH e da arginina. Na primeira reação, o NADPH atribui dois elétrons que oxidam o nitrogênio do grupo guanidina da arginina. No segundo passo, o NADPH fornece um elétron e a N-hidroxiarginina sofre uma oxidação de três elétrons para formar citrulina e óxido nítrico.10,11
Figura 1 A) Estrutura da enzima endotelial sintase do óxido nítrico. B) Mecanismo de transferência de elétrons. Modificado de Dias RG, et al.10
Na extremidade amina, a enzima tem um domínio de oxigenasse que contém o sítio catalítico e os sítios de ligação do BH4, heme e L-arginina (Figura 1). Na extremidade carboxila, a enzima tem um domínio de redutase que contém sítios de ligação para o NADPH, FMN e FAD; os dois domínios estão ligados na porção central por um domínio que contém a calmodulina.12,13
A atividade enzimática é regulada por cálcio livre e pela união subsequente do complexo cálcio-calmodulina. Fatores hormonais, tais como a gravidez e níveis aumentados de estrógenos, ampliam a expressão da enzima.6
O produto da reação enzimática é o óxido nítrico (NO), um gás que se dissemina facilmente das células endoteliais para as células da musculatura lisa da parede vascular. O NO tem uma meia-vida muito curta, de 0,5 a 5 segundos, sendo rapidamente metabolizado a nitritos, os quais podem ser medidos indiretamente.14
O óxido nítrico renal tem várias funções hemodinâmicas nos glomérulos renais. Entretanto, sem efeito mais importante é promover diurese e a natriurese, bem como regular a secreção de renina. O eNOS é expressado em grande quantidade no endotélio vascular renal (inclusive nas arteríolas aferentes e eferentes). Também é expressado nos túbulos proximais, na parte espessa da porção ascendente da alça de Henle e nos túbulos coletores. Não se conhece o papel preciso do óxido nítrico nos túbulos proximais; entretanto, um estudo em camundongos onde a expressão desta enzima foi abolida, observou-se um aumento da reabsorção de NaCl, resultando num aumento da taxa de filtração glomerular (TFG), o que favoreceu o surgimento de hipertensão.15
Na insuficiência renal, a produção do óxido nítrico está reduzida, seja por uma diminuição no substrato enzimático (L-arginina), seja por um aumento na biodisponibilidade do inibidor enzimático dimetilarginina assimétrica (ADMA), o que por sua vez reduz a síntese de óxido nítrico por um mecanismo de retroalimentação. Observou-se que este mecanismo está acelerado na evolução de uma doença renal pré-existente.16
Um polimorfismo é definido como sendo uma variante genética presente em pelo menos 1% da população. Três principais polimorfismos do gene NOS3 têm sido estudados em doenças sabidamente associadas com a nefropatia diabética, em estudos diversos:16,17 894G>T ou Glu298Asp (rs1799983), variantes 27-bp de repetições no intron 4 (VNTR) 4b/a, e -786 T>C.
O polimorfismo 894G>T, localizado no exon 7, consiste de uma conversão do ácido glutâmico a ácido aspártico (Glu298Asp).18 A mudança do glutamato (E) pelo ácido aspártico (D) afeta o domínio da enzima oxidase, que é o sítio de ligação do BH4 e do amino ácido L-arginina. Esta mudança causa uma variação na enzima, tornando-a mais susceptível à clivagem proteolítica na posição D238-P239. Isso gera uma forma mais curta da enzima com consequente redução da produção de NO.9
Este polimorfismo tem sido associado principalmente a várias patologias cardiovasculares, tais como a doença arterial coronariana, a aterosclerose, o espasmo coronariano induzido pela acetilcolina e a hipertensão arterial. Outras condições associadas a este polimorfismo são a doença de Alzheimer, a hipertensão induzida pela gravidez, o câncer vesical e da próstata e a nefropatia diabética, dentre muitas outras.17
Estudos em populações africanas, caucasianas e afro-americanas têm mostrado que a frequência do alelo polimórfico (T) nestas populações em geral é de 14.3%, 40.4% e 66.1%, respectivamente.19 Em um estudo de 126 pacientes de uma população mestiça mexicana, Rosas-Vargas et al.20 relataram uma frequência de 23% deste polimorfismo.
Diversos estudos têm descrito uma associação entre este polimorfismo e a insuficiência renal crônica.21 Num estudo de 37 pacientes mexicanos diagnosticados com uma variante renal da doença de Fabry, os autores encontraram uma associação entre os alelos Asp298 e 4a do gene NOS3. Observou-se que os pacientes com esses alelos apresentavam níveis mais elevados de ureia e creatinina, bem com uma redução na taxa de filtração glomerular. Esta associação se comporta na forma de um modelo de herança codominante.22
Outros estudos têm mostrado uma associação entre a presença do alelo T (ácido aspártico) e a susceptibilidade ao desenvolvimento de IRA em várias populações, especialmente populações asiáticas.23 Este achado também foi observado em um estudo indiano de pacientes com IRA secundária à nefropatia diabética, onde um aumento nos níveis de creatinina foram encontrados em pacientes com o alelo asp298. Adicionalmente, notou-se uma associação estatisticamente significativa com marcadores de estresse oxidativo tais como SOD2 e GST.24
Entretanto, não houve associação entre estes marcadores genéticos e IRA em um estudo conduzido na Malásia.25
Este polimorfismo consiste de 27 pares de bases caracterizados por um alelo "a" contendo 4 modificações repetidas (deleção/polimórfica) e um alelo "b" que consiste de 5 modificações (push/wild). Estudos recentes sugerem que este polimorfismo regule a expressão desse gene através da produção de pequenas moléculas de RNA interferente (iRNA) com 27 nucleotídeos, que reduzem a expressão do gene e/ou a síntese da proteína.26
Estudos realizados em populações africanas, caucasianas e afro-americanas mostram que a frequência desse polimorfismo nestas populações em geral é de 36%, 29,7% e 36,1%, respectivamente.27
Em um estudo brasileiro sobre IRA, encontrou-se um aumento significativo na frequência do alelo "a" nestes pacientes comparado aos controles, tendo sido observada uma robusta associação estatística entre este alelo e a doença.28
Entretanto, outro estudo conduzido na Suécia e na Finlândia numa população com insuficiência renal crônica secundária à nefropatia diabética mostrou uma baixa frequência do alelo 4ª, sem associação estatística entre o polimorfismo e a doença.29
Este polimorfismo, situado na região flanqueadora 5', tem sido associado a uma diminuição na expressão do gene NOS3, reduzindo a taxa de transcrição do gene em 50%. Acredita-se que este polimorfismo pode se ligar à proteína replicadora A1; esta proteína está envolvida em vários processos celulares, dentre eles a transcrição.30,31
Estudos realizados em populações africanas, caucasianas e afro-americanas mostram que a frequência desse polimorfismo nestas populações em geral é de 3,2%, 14,5% e 1,8%, respectivamente.26
Um estudo realizado numa população indiana com IRA mostrou uma frequência elevada dos polimorfismos asp298, -T786C e alelos 4a, sendo que seus níveis de nitrito estavam diminuídos comparado ao grupo controle. Assim, considerou-se haver uma associação entre estes polimorfismos e insuficiência renal crônica.32
Entretanto, um outro estudo realizado numa população caucasiana brasileira não mostrou associação entre estes polimorfismos e IRA.33
A integridade funcional do endotélio permite um equilíbrio preciso entre os agentes vasoconstritores e vasodilatadores. Em condições normais, há uma predominância dos agentes vasodilatadores, anticoagulantes e antiproliferativos (principalmente NO) sobre os agentes vasoconstritores, procoagulantes e proliferativos. Os polimorfismos descritos no gene NOS3 têm sido associados à disfunção endotelial em diversas populações. Entretanto, alguns estudos não encontraram tais associações; portanto, os resultados continuam sendo controversos. Estudos adicionais são necessários em populações diferentes visando identificar potenciais fatores genéticos de risco para a IRA.