versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.35 no.11 Rio de Janeiro 2019 Epub 31-Out-2019
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00129519
Graças à política de saúde mental iniciada nos anos 1980, o Brasil conquistou um lugar único no campo da saúde mental global. Esse destaque, amplamente reconhecido em nível internacional, deriva de o Brasil ter sido um dos primeiros, fora do grupo dos países de maiores recursos, a estabelecer uma política nacional de saúde mental e de tê-la implementado com êxito apreciável durante mais de 30 anos 1. Não surpreende, assim, que a experiência brasileira tenha despertado um grande interesse em todo o mundo e seja uma das experiências mais estudadas e discutidas nesse campo.
Uma revisão sistemática da literatura, efetuada no âmbito de uma avaliação da reforma psiquiátrica brasileira levada a cabo, em 2015, pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Fundação Gulbenkian e Organização Mundial da Saúde (OMS) 2, mostra que esse processo não foi isento de dificuldades. Desde o seu início, confrontou-se com inúmeras resistências: a Lei de Saúde Mental, por exemplo, proposta em 1989, só foi aprovada em 2001. No entanto, ao longo de mais de 30 anos, foi sempre possível construir os consensos políticos necessários para assegurar a continuidade da política inicial e até para diversificar os seus objetivos. Centrada inicialmente na substituição do modelo baseado no hospital psiquiátrico por um novo sistema de serviços baseados na comunidade e na proteção dos direitos humanos das pessoas com transtorno mental, a política de saúde mental, à medida que foi se fortalecendo, foi também se estendendo a outros objetivos - por exemplo, a prevenção dos transtornos mentais, a atenção à saúde mental de crianças e adolescentes e as estratégias contra as dependências de álcool e outras drogas.
A avaliação efetuada em 2015 mostrou que, hoje em dia, o Brasil conta com uma massa crítica importante na área da saúde mental, que envolve representantes de todos os setores e é fortalecida pela existência de um número significativo de grupos de investigação de alto nível, com produção científica de excelente qualidade.
Muitas das publicações identificadas por meio da revisão aqui citada anteriormente apontam várias insuficiências na implementação do novo sistema de atenção e sublinham a necessidade de se repensar algumas das estratégias seguidas. No entanto, verifica-se a existência de um larguíssimo consenso quanto aos fundamentos, principais objetivos e resultados da política de saúde mental desenvolvida até 2016 2.
As posições assumidas em nível governamental após 2016 representam um corte com relação a essa perspectiva. Embora os documentos oficiais sobre a estratégia do atual governo sejam escassos e em muitos aspectos contraditórios, tudo leva a crer que a estratégia que se pretende implementar tem objetivos, em muitos pontos, contrários aos da política anterior 3.
Neste contexto, toda discussão que ajude a compreender o que verdadeiramente está em causa - em termos conceptuais e científicos, de valores e princípios, além de resultados para a saúde mental das populações - no confronto atualmente em curso no Brasil, no campo da política nacional de saúde mental, reveste-se de particular importância não só para o país, como também para a saúde mental global.
No final dos anos 1970, o desenvolvimento de uma política nacional de saúde mental era uma necessidade urgente no Brasil. O sistema psiquiátrico, baseado principalmente em um grande número de hospitais psiquiátricos, caracterizados por baixa qualidade de cuidados e ocorrência frequente de violações dos direitos humanos, era escandalosamente arcaico. Uma reforma dos serviços de saúde mental era absolutamente indispensável.
As primeiras reformas, implementadas em algumas cidades (por exemplo, Santos, Estado de São Paulo), tiveram um papel decisivo no desenvolvimento de um modelo adaptado às especificidades do contexto brasileiro e deram contribuições valiosas para os primeiros passos na construção de uma política nacional de saúde mental. Essa política viria, no decurso dos anos 1980, a integrar-se ao processo de redemocratização iniciado nesse período no país e a fortalecer-se progressivamente em nível legislativo, administrativo e financeiro.
Para responder às violações dos direitos humanos nos hospitais psiquiátricos da época, as reformas inicialmente focaram-se na melhoria das condições de vida nessas instituições e na promoção de um processo de desinstitucionalização. Os principais objetivos centraram-se, assim, na substituição progressiva dos hospitais psiquiátricos por uma rede de serviços comunitários, tendo como núcleo os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que se inspiravam nos centros de saúde mental desenvolvidos na Itália e em outros países europeus.
O desenvolvimento da política de saúde mental no Brasil esteve estreitamente associado à criação do Sistema Único de Saúde (SUS), à descentralização da administração da saúde no país, à mobilização de profissionais e a mudanças sociais e culturais da sociedade brasileira.
A participação de todos os setores da sociedade foi outra característica importante da reforma brasileira. Houve conferências nacionais de saúde mental com milhares de participantes, incluindo profissionais, usuários e famílias, que tiveram um papel fundamental no desenvolvimento da política de saúde mental. Também devem ser citados os ativistas sociais e culturais, que foram frequentemente aliados decisivos, além da participação dos usuários, que foi incentivada.
A ligação aos movimentos inovadores de saúde mental em nível global foi também uma constante da reforma brasileira. Inicialmente influenciada pelas reformas psiquiátricas levadas a cabo na Europa (em particular na Itália), a experiência brasileira foi depois enriquecida pelos desenvolvimentos registados na integração da saúde mental à atenção primária após Alma-Ata e desempenhou um papel importante na iniciativa de reestruturação dos serviços psiquiátricos da América Latina, que se seguiu à Declaração de Caracas1.
Como sucede em todos os processos inovadores, a política de saúde mental suscitou resistências significativas por parte dos setores mais tradicionais. No entanto, os desenvolvimentos verificados mais tarde no campo dos direitos humanos, em particular o consenso criado em torno dos princípios da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a adoção generalizada dos princípios do recovery, mostraram que a política brasileira não só esteve certa nesse campo, como antecipou muitos dos princípios que viriam a ser universalmente reconhecidos com relação aos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais.
O foco prioritário nos cuidados comunitários foi também inteiramente validado pela investigação científica das últimas décadas, existindo hoje um consenso alargado quanto à necessidade de uma transição do modelo centrado no hospital psiquiátrico para uma rede integrada. A partir daí, deve-se ter por base as equipes de saúde mental comunitárias e a internação de agudos em hospital geral, devidamente articuladas com a a atenção primária e os serviços de reabilitação psicossocial 4,5,6,7,8.
Os progressos verificados no processo de desinstitucionalização foram muito significativos. Entre 2001 e 2014, verificou-se uma drástica redução do número de leitos em hospitais psiquiátricos: de 53.962 em 2001 para 25.988 em 2014 2. Essas mudanças haviam, na realidade, começado na década anterior, quando as auditorias realizadas pelas autoridades levaram ao encerramento de inúmeros hospitais psiquiátricos que não atendiam aos requisitos mínimos estabelecidos ou que haviam sido objeto de denúncias de violações de direitos humanos. Deve-se notar também que foi o movimento desenvolvido nos anos 1980 e 1990 que tornou possível a aprovação da Lei da Reforma Psiquiátrica em 2001. Além disso, foi essa lei que, juntamente com o apoio político conquistado na III Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada no mesmo ano, possibilitou a redução dos leitos, bem como muitas outras ações especificamente dirigidas à melhoria da atenção aos pacientes de longa permanência, como foi o caso do desenvolvimento de serviços residenciais.
Um outro aspecto que merece ser sublinhado é que a desinstitucionalização foi um processo planejado e progressivo. Por exemplo, entre 2002 e 2011, os hospitais com mais de 400 leitos, que tinham 30% do total, sofreram uma redução gradual para 10,5%, enquanto os hospitais menores, com menos de 160 leitos, que tinham apenas 22% do total de leitos em 2002, aumentaram gradualmente a sua participação, de modo que, em 2011, alcançaram 52% do total do número de leitos 2.
Simultaneamente, serviços baseados na comunidade foram criados para substituir os serviços baseados no hospital. Os CAPS constituíram o núcleo fundamental desses serviços, tendo sido projetados para responder às principais necessidades de cuidados dos pacientes que sofrem de transtornos mentais graves e persistentes. A partir de 2002, novos tipos de CAPS começaram a ser criados, com o objetivo de atender populações com necessidades específicas. Assim, foram criados e incorporados à rede de saúde do SUS os CAPS-I, para prestar atendimento a crianças e adolescentes, e os CAPS-AD, para atender pacientes com problemas relacionados ao uso de álcool e abuso de substâncias. Em 2006, havia 673 CAPS para adultos e 66 CAPS especiais para crianças e adolescentes. Em 2014, existia um total de 2.209 CAPS 2, e em 2017 esse número tinha subido para 2.462 9.
Os serviços residenciais terapêuticos, que podem abrigar até oito pacientes, tornaram-se também um recurso importante para a desinstitucionalização de pacientes de longa permanência. Em 2004, havia 265 serviços residenciais, com 1.363 residentes 2. Em 2017, o número total de serviços residenciais tinha subido para 489 9.
Uma estratégia especialmente inovadora para a desinstitucionalização foi o programa Volta para Casa, criado por meio de uma lei nacional aprovada pelo Congresso Nacional em 2003. Dentro desse programa, um apoio financeiro poderia ser oferecido a pacientes desinstitucionalizados, que tivessem estado internados ininterruptamente durante pelo menos um ano. Além desse apoio, a esses pacientes foi também assegurado o acesso a um programa de gerenciamento de casos fornecido pelos CAPS de sua área residencial, incluindo cuidados e apoio na resolução de problemas de documentação civil. Em 2003, 206 pacientes haviam sido incluídos no programa. Em 2014, o número havia aumentado para 4.349 pacientes 2.
No decorrer desse processo, recursos financeiros significativos da rede hospitalar foram realocados para serviços comunitários: no período em questão, o orçamento para atendimento hospitalar psiquiátrico foi reduzido de 95% do total para menos de 30%, possibilitando assim o financiamento dos serviços substitutivos na comunidade, que se tornou quinze vezes maior do que no período anterior. Avanços substanciais também foram feitos em relação ao atendimento de crianças e adolescentes, na assistência a dependentes de álcool e substâncias, bem como na aprovação de uma agenda relacionada aos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais.
Os progressos alcançados são indiscutíveis. Porém, como concluiu a avaliação realizada em 2015, “o processo brasileiro da Reforma, ainda que indique avanços substanciais, está longe de ser considerado plenamente exitoso” 2 (p. 7). Por outro lado, os dados disponíveis mostram que, apesar de todos esses avanços, se verificaram diversas fragilidades na implementação da política e, em 2015, continuavam a subsistir vários desafios de base.
Fragilidades relevantes verificaram-se com relação a financiamento. Embora direcionado corretamente para os serviços comunitários, o financiamento tem sido considerado, por muitos, insuficiente para a implementação plena de diversos componentes da reforma. O desenvolvimento de recursos humanos foi também considerado um problema importante. Fragilidades também foram apontadas em relação à qualidade da informação produzida pelos serviços, à integração da saúde mental na atenção primária e à sustentabilidade das associações de usuários 2.
Entre os principais desafios, contam-se sobretudo a ampliação do acesso e integração da saúde mental com a atenção primária, o desenvolvimento de respostas de internação de agudos no hospital geral e a articulação entre os vários componentes do sistema.
Os dados disponíveis sobre a atual política de saúde mental do Brasil são limitados e, em alguns casos, de difícil interpretação para um observador externo. A única descrição oficial das mudanças que o governo pretende introduzir na política de saúde mental a que tivemos acesso é uma nota técnica publicada em fevereiro de 2019 3, na qual se anuncia que as mudanças previstas têm o objetivo de “tornar a rede assistencial mais acessível, eficaz, resolutiva e humanizada”, por meio de uma reforma do “modelo de assistência em saúde mental, que necessitava de aprimoramentos, sem perder a essência de respeito à lei 10.216/01”.
Dada a suspensão posterior dessa nota e a expressão pelo Ministro da Saúde de dúvidas sobre alguns de seus aspectos, não é claro até que ponto as mudanças propostas exprimirão a verdadeira posição do governo.
No entanto, a simples publicação desse documento e as medidas de apoio aos hospitais psiquiátricos já tomadas parecem justificar as preocupações manifestadas por vários setores da saúde mental brasileira 7,8.
Apesar das declarações de respeito à Lei de Saúde Mental, as mudanças propostas “representam na verdade o abandono dos princípios legais, assistenciais e das várias estratégias de atenção psicossocial consolidados pela Reforma Psiquiátrica brasileira, com risco real de retrocessos das políticas de saúde mental no país” 8.
Existe hoje um largo consenso em nível internacional sobre a importância vital de assegurar a substituição dos hospitais psiquiátricos por uma rede integrada e territorial de serviços comunitários. Esse é um dos quatro objetivos fundamentais do Plano Global de Saúde Mental da OMS 10, e o relatório da Lancet Commission 6 recomenda explicitamente que o encerramento de hospitais psiquiátricos deverá ser iniciado pelos países de renda baixa, consolidado nos de renda média e completado nos de renda alta. Interromper essa substituição e voltar a colocar o hospital psiquiátrico no centro do sistema de saúde mental, como estabelece a Nota Técnica, resultará inevitavelmente na diminuição do acesso à atenção de qualidade, no aumento das violações dos direitos humanos e no aumento da exclusão social das pessoas com transtornos mentais. Todos os esforços de redistribuição dos recursos financeiros serão anulados, e os recursos disponíveis para serviços na comunidade certamente se tornarão cada vez mais escassos.
Por razões de outra ordem, a proposta de criação de Unidades Psiquiátricas Especializadas em hospitais gerais e Unidades Ambulatoriais Especializadas, tal como enunciada no documento, não pode também deixar de suscitar algumas reservas. Embora ambos os tipos de serviço possam ter um papel importante em um sistema de saúde mental, a sua criação, de forma desligada de um território específico e sem uma integração adequada com os CAPS e outros dispositivos da comunidade, levará inevitavelmente a uma fragmentação do sistema e a um desaparecimento da continuidade de cuidados. Por outro lado, a possibilidade de estabelecimento de unidades ambulatoriais especializadas destinadas ao tratamento de “pessoas com transtornos mentais mais comuns e prevalentes” em hospitais não parece fazer muito sentido. Essas unidades devem estar junto das pessoas e dos serviços de atenção primária, com que desejavelmente devem colaborar.
Essas e outras mudanças propostas - por exemplo, as referentes à criação de serviços de internação para crianças e adolescentes e às estratégias na área de álcool e outras drogas - revelam, no fundo, uma ênfase nas abordagens institucionais e uma subalternização sistemática das abordagens integradas com base na comunidade. Esses pontos são totalmente discordantes do propósito, repetidamente manifesto na Nota Técnica, de passar a basear em evidências científicas todas as ações de prevenção, promoção à saúde e tratamento.
Essa contradição é, aliás, um dos aspectos que mais chama a atenção na leitura desse documento. Apesar de uma constante proclamação de respeito à evidência científica, o texto em que se apresenta uma nova política de saúde mental não inclui uma única referência aos inúmeros contributos surgidos, nos últimos anos, da epidemiologia psiquiátrica, da investigação de políticas e de serviços de saúde mental e da ciência de implementação, que constituem, hoje em dia, o suporte conceptual e científico das políticas de saúde mental. As mudanças propostas ignoram totalmente as evidências que provam a necessidade de basear a promoção, a prevenção e o tratamento dos transtornos mentais em uma abordagem de saúde pública, sistêmica e intersetorial 6,9,11. Igualmente, partem da crença, hoje totalmente ultrapassada, de que se pode construir uma política de saúde mental apenas com base em uma perspectiva estritamente clínica, ignorando todo o debate atual à volta da saúde mental do futuro.
A experiência do Brasil na implementação de uma política de saúde mental levou a uma profunda transformação do sistema nacional de saúde mental e a melhorias significativas na acessibilidade e qualidade dos cuidados dessa área.
Apesar de todos os progressos alcançados, subsistem ainda desafios importantes, e só poderão ser enfrentados se for possível definir uma política centrada nas necessidades prioritárias das populações, baseada no conhecimento científico mais atualizado e alinhada com os instrumentos internacionais de direitos humanos. É necessário, ao mesmo tempo, envolver na sua implementação todos os atores relevantes do campo da saúde mental. Nesse contexto, todos os esforços deverão ser empreendidos para a construção de um consenso alargado, que permita dar continuidade aos progressos já alcançados com base na lei de saúde mental do país e nas recomendações técnico-científicas das organizações internacionais competentes nessa matéria.