versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.6 Rio de Janeiro jun. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015216.06772016
A análise de políticas de saúde e nutrição, tanto no cenário internacional1-7 quanto no nacional8-12, indica como potenciais conflitos de interesses (CDI) podem afetar o desenho e o curso de implementação das ações governamentais.
Essas ações mobilizam um volume expressivo de recursos públicos e envolvem interesses econômicos de larga escala. Portanto, os conflitos em torno da apropriação desses recursos podem atravessar todo o processo político. Disputam-se os próprios termos das políticas no que se refere: às concepções sobre os problemas; às justificativas para instituir certas medidas e não outras, dentre outros8-12.
Nesse contexto, os CDI que envolvem interesses do setor privado comercial merecem destaque, seja pela crescente influência de corporações transnacionais no processo político, seja porque práticas (e.g. estratégias mercadológicas de estímulo irrestrito à compra e consumo) e produtos (e.g. ultraprocessados e agrotóxicos) desse setor vêm sendo associados ao aumento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) e aos seus fatores de risco5-7,10,13.
Dentre o conjunto de políticas de saúde que podem afetar esse quadro, as estratégias de promoção da saúde (PS) assumem particular relevância ao sinalizarem como possível solução para os problemas de saúde os pactos que envolvem o setor privado comercial. A análise de potenciais CDI pode ampliar a compreensão das disputas políticas nesse campo e indicar implicações para o alcance dos objetivos de saúde.
Em âmbito internacional, o ideário da PS vem sendo fomentado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde a década de 1970 e difundido por um conjunto de eventos e documentos, como as Conferências Globais e as Cartas políticas de PS, que influenciaram a ação governamental em vários países14,15. No Brasil, as duas edições da Política Nacional de Promoção da Saúde (PNaPS)16,17 dialogam com esse ideário.
Ainda que a concepção de PS não seja unívoca14,18,19, a abordagem da saúde em todas as políticas sinaliza que as relações entre a saúde, o bem-estar, a equidade e o desenvolvimento econômico devem ser contempladas na agenda pública por meio de novos pactos políticos entre setores governamentais e “não governamentais”20,21.
No entanto, o processo político subjacente à construção dessas políticas e pactos não é isento de CDI de diferentes naturezas, especialmente quando se trata de articular as ações de PS com crescimento/desenvolvimento econômico. Nesse contexto, os interesses dos setores governamentais, da sociedade civil e do setor privado comercial (que em si são heterogêneos e marcados por conflitos internos) estão em constante disputa, ainda que possam convergir em situações específicas.
Diante da relevância desse debate, o estudo analisou os potenciais CDI que envolvem o setor privado comercial no âmbito das políticas nacionais e pactos internacionais de PS, com destaque para os temas da alimentação e nutrição (AN). Foram identificados os enfoques, os princípios, os valores, as estratégias e a abordagem de CDI nessas políticas.
O conceito de CDI vem sendo amplamente problematizado na literatura internacional, ainda que seja reduzido o número de estudos que abordam essa temática no âmbito da AN22. No Brasil, a Lei Nº 12.813, de 16/5/201323, e a Portaria Interministerial Nº 333, de 19/09/201324, caracterizam CDI como ... a situação gerada pelo confronto entre interesses públicos e privados, que pode comprometer o interesse coletivo ou influenciar, de maneira imprópria, o desempenho da função pública.
A esfera da ação pública ultrapassa as fronteiras dos aparatos estatais e das políticas governamentais e são múltiplas as redes de políticas e os interesses que conectam o setor privado comercial com organizações societárias e governos. Dessa forma, o debate sobre CDI abarca um leque amplo de questões em torno da definição de interesse público e privado; das (im)possibilidades de que esses setores sejam tratados de forma tão distinta e dual (dada a privatização do público e os diferentes tipos de interesses que atravessam os governos); das distinções do setor privado (com ou sem fins lucrativos; filantrópico; comercial) e, consequentemente, do que se denomina de CDI11,22. Para evitar reducionismos analíticos decorrentes dessas categorizações, coletivos políticos sugerem que a análise de CDI deva considerar se os produtos, as práticas e as políticas institucionais desses setores ferem interesses, objetivos e princípios que orientam as ações e as políticas públicas construídas em cada contexto geopolítico-territorial22,25.
Com base nesses referenciais, o estudo pautou-se no método de análise documental26 e na concepção de documentos como práticas discursivas (construídas numa dada situação, tempo e espaço) e estratégias de poder que indicam acordos possíveis num dado contexto de disputas de interesses e concepções. O discurso neles formalizado é uma prática social, pois não apenas apresenta ideias ou representações sobre a realidade, mas institui processos e configura a própria realidade por meio da produção de sentidos27,28. Considerando a indissociabilidade entre discurso e prática, Griggs e Howarth29 propõem que os estudos nesse campo problematizem os regimes de práticas num dado contexto, as distintas formas como uma questão é abordada e como esses regimes possibilitam a inclusão e a exclusão de determinados sujeitos políticos e questões. Além disso, destacam que a análise deve considerar as condições de produção e as lógicas do discurso, incluindo a identificação de narrativas que mascaram e naturalizam as relações de poder, ao tratarem questões que são socialmente construídas como se fossem “naturais” ou “dadas”29. Referenciada nessas concepções, a análise dos documentos foi organizada a partir das seguintes dimensões e categorias: (1) na dimensão do ideário da PS, foram problematizados os enfoques de PS, os princípios, os valores, as diretrizes e as estratégias propostos nas políticas; (2) na dimensão do CDI, considerou-se a abordagem dada ao tema, por meio da análise das relações com o setor privado comercial e das propostas denominadas “parcerias público privado” (PPP).
Foram analisados documentos internacionais que historicamente difundiram o ideário da PS desde a década de 1970 e políticas nacionais que formalizaram propostas para o cenário brasileiro: o Relatório de Lalonde30, a Declaração de Alma Ata31, os documentos finais das Conferências Globais de Promoção da Saúde – Carta de Ottawa, Declarações de Adelaide, de Sundsvall, de Jacarta, da Cidade do México32 – Carta de Bangkok33, Declaração de Nairobi34 e de Helsinki35, as declarações regionais de Santafé de Bogotá36 e do Caribe37 e as duas edições da Política Nacional de Promoção da Saúde16,17.
Uma primeira abordagem de PS identificada refere-se às propostas que enfatizam mudanças comportamentais individuais, a exemplo do Relatório Lalonde de 1974, que marca os primórdios das propostas de PS no Canadá30. Tal perspectiva pressupõe que os indivíduos deveriam assumir responsabilidades sobre os efeitos deletérios dos seus hábitos e estilos de vida14.
Outro enfoque, já presente na primeira conferência internacional de PS em Ottawa 198632 e na Declaração de Alma Ata31, enfatiza ações voltadas para: transformar os “determinantes sociais do processo saúde doença”; criar ambientes saudáveis e reorientar os serviços de saúde. Esses elementos configuram a chamada “abordagem socioambiental” da PS, que dialoga com o conceito ampliado de saúde como resultante de um conjunto de fatores sociais, econômicos, políticos, incluindo AN15,32. Consequentemente, as estratégias propostas vão além dos indicativos de mudança comportamental individualizada. No entanto, mesmo no âmbito dessa abordagem ampliada, é possível identificar duas perspectivas com ênfases distintas: uma, que se aproxima da lógica preventivista, sustentada nos modelos epidemiológicos de fatores de risco e prevenção de doenças específicas; outra, baseada na positividade da saúde e na construção de contextos de vida saudáveis18,19. Os textos das políticas nacionais de PS representam um exemplo de como estas duas lógicas coexistem, pois tratam de doenças ou agravos específicos e trazem um enfoque mais amplo do processo saúde doença, especialmente a PNaPS 201417.
A polarização entre essas diferentes perspectivas despolitiza o debate, uma vez que a PS, apesar de não se restringir à esfera individual, não pode desconsiderar sua importância19. Portanto, não se trata de reiterar as dicotomias clássicas entre abordagens individualizadas e socioambientais, mas de reconhecer como as diferentes propostas contribuem para a compreensão de CDI.
O ideário da PS e as políticas dele decorrentes vêm suscitando opiniões díspares e até antagônicas no debate acadêmico entre os que os consideram transformadores ou conservadores do status quo sanitário (marcado por iniquidades de diferentes tipos, inclusive de poder). Esse antagonismo pode indicar o caráter ambíguo de certas premissas, a despolitização de alguns debates ou o não aprofundamento de temas como a relação entre capitalismo e saúde14. A PNaPS 201417 parece avançar neste aspecto ao, por exemplo, analisar temas como modo de consumo e produção sob a ótica do desenvolvimento sustentável.
As ações propostas nas políticas nacionais de PS16,17 estão pautadas em dados epidemiológicos utilizados na análise dos “determinantes sociais da saúde”. A prevalência das DCNT é correlacionada com: o atual perfil alimentar e de atividade física; o uso de álcool e de tabaco, o sobrepeso e a obesidade.
Na PNaPS 200616, as ações específicas destacadas para o alcance da PS e diretamente relacionadas com as DCNT são: a alimentação saudável; a prática corporal/atividade física; a prevenção e o controle do tabagismo; a redução da morbimortalidade em decorrência do uso abusivo de álcool e outras drogas. Podem-se identificar distinções na edição de 2014 da PNaPS, tais como: a adoção de uma lógica de “temas prioritários”; a inclusão do tema da educação permanente e, ainda, a reconfiguração de termos. Enquanto que a PNaPS 2006 utilizava o termo “prevenção” com enfoque na doença, a PNaPS 2014 utiliza outros, como promover hábitos saudáveis, articular e mobilizar. Além disto, explicita os valores fundantes da política, quais sejam: solidariedade, felicidade, ética, humanização, respeito à diversidade, corresponsabilidade, justiça social e inclusão social17.
A PNaPS 2014 enuncia como tema prioritário a alimentação adequada e saudável (AAS), concepção originada no âmbito dos debates sobre Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) e descrita na Política Nacional de SAN (PNSAN). Refere-se à adequação da alimentação numa perspectiva ampliada, não apenas biológica, mas cultural, social, econômica e ambiental38. A adoção dessa nova terminologia, em detrimento de apenas “alimentação saudável” utilizada na PNaPS 2006, consolida um enfoque já presente nessa primeira versão da PNaPS, vinculando ações de promoção da alimentação saudável à SAN e ao Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA). Além dissso, aproxima conceitualmente a PNaPS 2014 de outras políticas como a PNSAN38, a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN)39 e, ainda, o Guia Alimentar para a População Brasilera 201440.
A PNaPS 201417, assim como a PNAN39 e a PNSAN38, propõe ações de ampliação da oferta e do acesso à AAS, regulamentação da propaganda e da oferta de alimentos em escolas, locais de trabalho, dentre outros, além de estratégias educativas. As diferentes ênfases dadas aos fatores condicionantes remetem a diversos tipos de medidas. Se a ênfase recai na dimensão “socioambiental”, as ações propostas visam alterá-la; por outro lado, se é concentrada nas escolhas individuais, a perspectiva é modificar práticas, particularmente por meio do acesso à informação. Ainda que sejam igualmente relevantes, estes distintos enfoques têm implicações diferenciadas para o debate sobre CDI. A ênfase nas decisões individuais em torno dos perfis de consumo pode, por exemplo, desconsiderar a análise da forte influência que as práticas mercadológicas (incluindo as diversas formas de propaganda e marketing de produtos alimentícios) e as estratégias comerciais exercem sobre o consumo. Por outro lado, não há como promover a SAN, reduzir a pobreza, garantir o DHAA, em consonância com os princípios e valores que balizam as respectivas políticas, sem evidenciar os efeitos dessas estratégias desde a produção até o consumo de alimentos e sem regulá-las.
As práticas do setor privado comercial referem-se tanto às atividades “fim” (vender produtos e estimular seu consumo) quanto às práticas políticas, como o bloqueio a medidas governamentais que ferem diretamente seus interesses. Em razão do poder político e econômico que detém, esse setor tem sido capaz de reter avanços, especialmente, nas medidas de natureza regulatória, e de impedir a aprovação de legislações, de postergar sua implementação ou de fazer retroceder medidas já implementadas. Alguns exemplos destes embargos são a derrota do poder público, ocorrida em 2010, em sua iniciativa de regulação da publicidade de alimentos e bebidas não saudáveis12, a ameaça de retrocesso na rotulagem de alimentos transgênicos, oriunda do Projeto de Lei 34/2015 que visa liberar os produtores de alimentos de informar ao consumidor sobre a presença de componentes transgênicos quando estiverem em porcentagem inferior a 1% da composição total do produto alimentício41 e a timidez do poder público na regulação do uso abusivo de agrotóxicos, como no caso do Programa Nacional para Redução do Uso de Agrotóxicos, que tem como um dos principais objetivos ampliar e fortalecer a produção de produtos orgânicos e de base agroecológica e reduzir o uso de veneno nas plantações, cuja formulação foi concluída em 2014, mas até o momento não foi lançado42. Essas situações sinalizam a dificuldade de regular e modificar os “condicionantes socioambientais” das práticas alimentares.
Documentos governamentais ressaltam a importância das medidas regulatórias para o enfretamento das DCNT e para a promoção da SAN43,44. Contudo, as barreiras para sua concretização são inúmeras, pois repercutem nos interesses políticos e econômicos de instituições, dentro e fora do governo, que sobrepõem os interesses financeiros aos objetivos e prioridades pautados nas próprias políticas de governo.
As práticas do setor privado com suposta convergência com as políticas públicas referem-se: à prestação de serviços para os governos; aos acordos voluntários (que, em geral, estabelecem metas bem flexíveis ou já atingidas); às parcerias para campanhas educativas, dentre outros. Tais tipos de relação nem sempre são reconhecidos como uma interferência do setor privado comercial que diverge ou obstaculiza os interesses e missões dos governos. Portanto, é nesse conjunto de práticas que o CDI se coloca de forma mais evidente, porque há um interesse do setor privado comercial em limitar as ações dos governos a medidas desse tipo e com isso posicionar-se como “parceiro” do poder público. Nesse caso, são desconsiderados pelos governos o conjunto de práticas, produtos e políticas institucionais desse setor, que ferem os princípios e os objetivos das políticas públicas e que podem comprometer o interesse coletivo ou influenciar, de maneira imprópria, o desempenho da função pública.
Ao analisarem a construção do conceito de PS numa perspectiva histórica, Lopes et al.45 indicam de que forma os fóruns e os organismos internacionais que lidam com o tema, incluindo os vinculados às Nações Unidas (ONU), como a OMS, influenciaram os termos das políticas nacionais de saúde no Brasil.
Em documento da ONU que orienta sua relação com outros setores (explicitado pelo termo “parcerias”), o setor privado é definido como “todos os indivíduos, associações, empresas e negócios com fins lucrativos e associações, coalizações, corporações e fundações filantrópicas”46. Essa definição não distingue setor privado lucrativo, comercial, ou “não lucrativo”, distinção encontrada em documentos posteriores de instâncias específicas da ONU, como o Comitê Permanente de Nutrição que, em 2006, estabeleceu sua política em relação ao engajamento do setor privado47. O documento reconhece que o setor privado apresenta oportunidades e riscos para os objetivos do próprio comitê e apresenta um protocolo de medidas a serem tomadas para que CDI com este setor sejam administrados de forma adequada. Neste documento, o setor privado é definido como aquele que visa lucro, independentemente do porte das empresas e do tipo de propriedade (privada, coletiva, de empregados ou estatal), sejam elas formalmente legalizadas ou não. São consideradas também como integrantes do setor privado organizações que, mesmo denominadas de “sem fins lucrativos” em suas bases legais, sejam financiadas, prestem serviços ou defendam as causas de organizações com fins lucrativos. O documento explicita que existe CDI quando um interesse secundário e/ou os propósitos de organizações ou de indivíduos influenciam o alcance dos interesses primários do próprio comitê, ou dos termos de seu mandato, ainda, de sua visão institucional que consiste no alcance de um mundo livre da fome e da má nutrição47. O Comitê dedicou um número especial de sua revista para abordar as possíveis formas de engajamento dos governos com o setor privado comercial48.
No âmbito da prevenção de DCNT, documentos da ONU e da OMS diferenciam a ação do setor denominado de sociedade civil (na prestação de serviços e mobilização política) da participação do setor privado comercial (indústrias e empresas) que se dá, por exemplo, por meio da reformulação de produtos alimentícios (redução do teor de gordura trans, sal, açúcar), de ações de PS, da produção de medicamentos e da garantia de um marketing “responsável”49-51.
Em audiência da ONU sobre DCNT ocorrida em 2011, enfatizou-se a necessidade de envolvimento de todos estes setores no processo. Por outro lado, insistiu-se na importância de se esclarecer o papel de cada um para garantir que potenciais CDI fossem administrados de forma apropriada, incluindo o desenvolvimento, pelos países signatários, de protocolos que facilitassem esta análise49. A declaração política dessa reunião indicou explicitamente que deve ser reconhecido o fundamental CDI entre a indústria do tabaco e a saúde pública e defendeu, inclusive, que as políticas de saúde pública devem ser protegidas da influência dessa indústria. No entanto, não mencionou o CDI com a indústria de produtos alimentícios e bebidas50.
Nos documentos globais de PS, a menção direta ao papel do “setor privado” apareceu pela primeira vez na Declaração de Jacarta (1997), elaborada na quarta conferência de PS, a primeira sediada em um país em desenvolvimento. Esse evento marcou o início da participação oficializada do setor privado nesses fóruns, contando, inclusive, com espaço próprio para elaboração de uma declaração voltada para seus interesses (Declaração de Jakarta sobre o Setor Privado)52. As conferências anteriores enfatizaram questões mais relacionadas ao setor público, como a de Adelaide-Austrália, em 1988, cujo tema principal foram as políticas públicas saudáveis32; a de Sundsvall-Suécia, em 1991, que abordou temas como ambientes favoráveis à saúde e o fortalecimento da ação social32; e a Carta do Caribe, em 1993, que destacou as alianças com a mídia, um setor comercial considerado importante pela influência que exerce nos processos políticos37.
A partir de Jacarta, o setor privado tem participado sistematicamente das conferências globais de PS e atuado ativamente na elaboração dos relatórios e das estratégias. A conferência de Bangkok (2005) já reconhece explicitamente a penetração do setor privado na saúde pública. A mais recente conferência realizada em Helsinki (2013) evidencia as relações com todos os setores para o alcance de resultados positivos em saúde, incluindo o setor privado. No entanto, pela primeira vez os governos são demandados a estabelecerem medidas para lidar com CDI para proteger as políticas das distorções, interesses e influências comerciais. Parte dos desafios apontados refere-se ao poder político das empresas e à possibilidade de afetarem a capacidade governamental de proteger e promover a saúde da população. Destacam-se especificamente os interesses de forças econômicas poderosas que resistem em ser reguladas. No documento, a abordagem da saúde em todas as políticas é uma resposta concreta a esses desafios, por seu potencial em fornecer parâmetros de regulação e ferramentas práticas que combinem metas sociais, de saúde e equidade, com desenvolvimento econômico e que abordem CDI com transparência, o que não é suficiente, mas é essencial. Considera-se que essa perspectiva possa facilitar o cuidado das relações entre os setores envolvidos, incluindo o privado, no sentido de proteger políticas, missões e valores contra desvios que os desvirtuem do interesse público, contribuindo positivamente para desfechos de saúde35.
No âmbito das políticas nacionais, a PNaPS 2014 referenda mecanismos que dão visibilidade aos CDI já previstos na PNaPS 2006, como a constitução de seu Comitê Gestor.. Seus membros titular e suplente devem declarar a inexistência de CDI com suas atividades no debate dos temas pertinentes a este espaço e, na eventualidade de existência de CDI, deverão abster-se de discutir e deliberar sobre o tema53. O tema de CDI também é tratado nos objetivos específicos da PNaPS, sob o seguinte enunciado Fomentar discussões sobre os modos de consumo e produção que estejam em conflito de interesses com os princípios e valores da promoção da saúde e que aumentem vulnerabilidades e riscos à saúde. Este enunciado sugere, por um lado, uma distorção conceitual em relação aos referenciais de CDI e, por outro, uma lacuna de critérios mais explícitos para caracterizar situações de CDI, especialmente quando se trata de setores comerciais que podem comprometer os princípios e os valores previstos na política.
A noção de atuação integrada de diferentes setores (governamentais, societários, privado comercial) e responsabilização múltipla, seja pelos problemas seja pelas soluções, esteve presente no ideario da PS desde Alma-Ata, ainda que o foco recaísse sobre a ação dos governos32. O termo “parceria” aparece pela primeira vez na declaração de Alma Ata, referindo-se ao apoio mútuo entre os países em prol da atenção primária e do cuidado em saúde31. A Carta de Ottawa32 não utiliza o termo, mas sinaliza a mesma ideia por meio da noção de “ações intersetoriais”. A partir de então, as ações intersetoriais e as parcerias tornaram-se pressuposto fundamental para a caracterização de uma ação enquanto promotora da saúde. A declaração de Adelaide menciona que a cooperação deve ocorrer entre os diferentes setores, mas também dentro de uma mesma área32. Por vezes, o termo “setor” refere-se a campos de atuação (saúde, meio ambiente, etc.), mas, até a Conferência de Jacarta (1997), esses setores referiam-se fundamentalmente aos governos. É nesse momento que há uma inflexão importante no sentido de sugerir o setor privado comercial como parceiro nas estratégias de PS. A Carta de Bangkok menciona a formação de alianças entre organizações públicas, privadas, não governamentais e internacionais, bem como com a sociedade civil, para criar ações de PS sustentáveis33.
Reiterando essa análise, Lopes et al.45 identificam que a necessidade de mediação da saúde com outros setores, incluindo a constituição de “parcerias” e “alianças” dos governos com sociedade civil e setor privado, contribuiu para a conformação do conceito de PS. No ideario da PS, o alcance dos objetivos de saúde requer uma ação coordenada de todos os implicados (setores de governo, para além da saúde, meios de comunicação, organizações societárias e setor comercial) e, de igual modo, demanda uma abordagem integrada dos processos de desenvolvimento social e econômico com a saúde.
As ações coordenadas e as abordagens integradas estão intimamente associadas ao princípio da intersetorialidade, cuja operacionalização se dá, conforme os termos utilizados nos documentos nacionais, por meio de novas “parcerias” e “alianças” com sindicatos, segmentos do comércio, indústria, associações acadêmicas, mídia entre outros43. A concepção que baliza o debate sobre PS é a de que a intersetorialidade se refere ao processo de articulação de saberes, potencialidades e experiências de sujeitos, grupos e setores na construção de intervenções compartilhadas, estabelecendo vínculos, corresponsabilidade e cogestão para objetivos comuns17. Propõe-se, assim, uma estratégia de convergência que inclui o setor privado comercial54. Portanto, a atuação intersetorial é uma questão central para o debate sobre CDI, mas, no âmbito da PS, o tema não vem sendo problematizado sob esse enfoque. Como visto, essa discussão aparece pela primeira vez apenas na Declaração de Helsinki em 201335.
A PNaPS 2014 pressupõe como papel de todos os níveis de governo Viabilizar parcerias com organismos internacionais, com organizações governamentais e não governamentais, incluindo o setor privado e a sociedade civil, para o fortalecimento da promoção da saúde no País17. A possibilidade de articulação com o setor privado comercial aparece de forma mais explícita no tema prioritário da promoção do desenvolvimento sustentável17. Esse tema se constitui em espaço particularmente complexo, considerando as divergências de concepções e enfoques sobre a relação entre desenvolvimento e saúde55.
A interdependência entre saúde e desenvolvimento socioeconômico se destaca como um pressuposto para a PS, tendo sido um tema central em documentos como as declarações regionais de Bogotá36 e do Caribe37, o que implica considerar que os processos econômicos devem condicionar positivamente as condições de vida de modo a favorecerem a saúde e não a doença. Os termos dessas propostas indicam que, se por um lado as bases do desenvolvimento/crescimento econômico podem interferir positiva ou negativamente na saúde da população, esse quadro, por sua vez, pode contribuir, numa via de mão dupla, para o crescimento ou para a estagnação da economia56.
Cabe, no âmbito deste estudo, problematizar a própria utilização desses termos nos documentos analisados, à luz das reflexões sobre CDI, considerar o conjunto de empresas que integram o setor privado comercial e analisar em que medida são pautadas pelos mesmos princípios, valores e objetivos de uma política de Estado como a PNaPS22,25.
A responsabilização compartilhada com o setor privado reitera o estabelecimento de “parcerias” na construção de soluções. No entanto, tais parcerias são tratadas como relações entre entes que a princípio teriam objetivos comuns, princípios e valores compartilhados. Além disso, pressupõem relações horizontais entre sujeitos políticos com forte assimetria de poder.
Na análise das condições de possibilidade e do contexto em que esse discurso foi construído, destaca-se a influência das propostas de retração da ação do Estado, presentes no cenário internacional na década de 1990. É nessa conjuntura que a discussão sobre PPP ganha relevância na ONU, fortemente influenciada pelo Banco Mundial, passando este termo a ser definido como a relação entre participantes estatais e não estatais que concordam em trabalhar juntos para alcançar objetivos comuns. Ao analisar as PPP propostas pela ONU no âmbito da saúde pública global, Velaskes57 indica que elas não têm sido efetivas e que os CDI estão presentes nos espaços políticos e comitês consultivos que as definem.
A perspectiva de alcançar objetivos comuns em saúde e nutrição por meio da PPP há que ser problematizada à luz dos efeitos da comercialização de produtos ultraprocessados e de agrotóxicos no aumento das DCNT no Brasil e no mundo6,13,58. Tais empresas vêm contribuindo para um perfil de práticas alimentares e para situações de insegurança alimentar que a PNaPS pretende reverter.
Portanto, questiona-se se há objetivos comuns entre esses “parceiros” e vale sinalizar o elemento contraditório expresso nos documentos que, por um lado, reconhecem que as práticas do setor privado vêm contribuindo negativamente para o quadro de saúde (e, portanto, fazem parte do problema), mas não apontam ações capazes de restringir a atuação destes setores. Paradoxalmente, propõem relações de parceria sem considerar as assimetrias de poder e a incompatibilidade entre valores e práticas e ignoram o fato de que medidas efetivas para reverter esse quadro são inconciliáveis com a lógica e os interesses mercadológicos.
Os documentos analisados não apresentam proposições específicas para lidar com CDI e não aprofundam o tema. No entanto, as diferentes abordagens de PS (individualizada, socioambiental, preventiva e positiva de saúde) identificadas podem sustentar distintas estratégias de ação que têm implicações diferenciadas para o debate sobre CDI. A depender da forma como as ações e as práticas do setor privado comercial são consideradas nessas propostas, os CDI podem ser mais ou menos evidenciados e, consequentemente, tratados de forma mais ou menos politizada. Nos documentos analisados, essa despolitização foi identificada em narrativas que mascaram as relações de poder existentes e omitem assimetrias e interesses antagônicos.
Ao reconhecerem a importância de pactos políticos amplos e parcerias que articulam um leque heterogêneo de instituições e sujeitos políticos, as estratégias de PS podem desencadear composições políticas entre instituições com poder de influência distinto no processo decisório e, principalmente, com vocações, princípios, valores, objetivos e interesses por vezes opostos e inconciliáveis. O debate sobre CDI sofre uma despolitização quando não são explicitadas tais assimetrias e oposições entre aqueles que integram as denominadas PPP, ou quando são desconsideradas as práticas do setor privado comercial que ferem objetivos, princípios e valores das próprias políticas de PS.
A abordagem da PS associada à garantia da SAN, da AAS e do DHAA, presente nas PNaPS, bem como os princípios, os valores e as estratégias que vêm sendo construídos no país nesses respectivos âmbitos de ação política, são incompatíveis com os produtos e as práticas mercadológicas do setor privado comercial. Na perspectiva de CDI, há que se refletir sobre a (im)possibilidade de compartilhamento de poder com esse setor, dados os princípios e os valores estabelecidos pela própria política. As PPP só são possíveis quando os valores e os objetivos que pautam as políticas e o objeto das parcerias convergem com a missão primordial das partes. Do contrário, se tornam inconcebíveis enquanto tal, mesmo que assim sejam nomeadas e se estabelecem como relações com aparência de parceria, mas que são assimétricas e permeadas por CDI.
As políticas analisadas não dispõem de critérios e procedimentos concretos para lidar com situações de CDI no curso da formulação e implementação de ações. Quando os próprios CDI não são reconhecidos de forma transparente, como proposto na Declaração de Helsinki, as relações com setores cujas práticas e produtos ferem os princípios que a própria política estabelece para a PS e para a promoção da AAS serão despolitizadas e naturalizadas.