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Políticas de Saúde na Argentina, Brasil e México: diferentes caminhos, muitos desafios

Políticas de Saúde na Argentina, Brasil e México: diferentes caminhos, muitos desafios

Autores:

Cristiani Vieira Machado

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.7 Rio de Janeiro jul. 2018

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018237.08362018

Introdução

No século XX, conformaram-se na América Latina sistemas de saúde segmentados, expressando as desigualdades estruturais dessas sociedades. Em alguns países, configuraram-se grupos privados na atenção à saúde, sob incentivos estatais. A partir dos anos 1980, crises econômicas, reformas orientadas ao mercado e processos de democratização levaram a transformações nos Estados latino-americanos, com repercussões sobre as políticas sociais e de saúde1,2.

Argentina, Brasil e México são federações populosas e economicamente relevantes, que em 2014 compreendiam 60,8% da população e 69,1% do PIB da América Latina3. Entre 1930 e 1980, vivenciaram processos desenvolvimentistas que envolveram industrialização, legislação trabalhista, criação de instituições de previdência e atenção médica aos trabalhadores formais e implantação de programas de saúde pública para controle de doenças específicas. Nas últimas décadas, as reformas de seus sistemas de saúde apresentaram diferenças, influenciadas por distintos legados institucionais, agendas políticas e orientações governamentais.

O artigo analisa as políticas de saúde na Argentina, Brasil e México de 1990 a 2014, explorando as estratégias, os condicionantes e os efeitos das reformas sobre a configuração dos sistemas de saúde. Após a descrição de cada caso, os três casos são comparados, buscando contribuir para a compreensão dos limites e desafios à construção de sistemas de saúde universais na América Latina.

Metodologia

O estudo se baseou na abordagem histórico-comparativa4, valorizando semelhanças e diferenças entre os países quanto à temporalidade e condicionantes das políticas e relações Estado-mercado em saúde. Os eixos de análise foram: trajetória da política de saúde; contexto político e econômico; agendas, processos e estratégias de reforma na saúde; e mudanças na configuração do sistema de saúde, em termos de estratificação social e desmercantilização (expansão do direito que reduz a dependência dos indivíduos aos mercados)5. A Figura 1 resume o referencial analítico.

Fonte: Elaboração própria.

Nota: Todas as setas indicam relações entre condicionantes das políticas e seus efeitos. As setas cheias explicitam o foco do estudo em questão.

Figura 1 Referencial analítico do estudo. 

As técnicas de pesquisa compreenderam: revisão bibliográfica, análise documental e de dados secundários e cerca de 40 entrevistas semiestruturadas com especialistas e atores da política de saúde nos países.

Caminhos das políticas nacionais

Argentina: seguro social fragmentado, expansão privada e de programas públicos

Na Argentina, no início do século XX, expandiu-se a ação do Estado na saúde pública e surgiram as primeiras associações mutuais, organizadas por nacionalidade ou inserção laboral. O governo Perón (1946-1955) fortaleceu as mutuais, precursoras das obras sociais por meio das quais os sindicatos organizariam a atenção médica, e expandiu serviços públicos. Porém, nas décadas subsequentes predominou o subfinanciamento e a fragmentação do sistema de saúde segundo a capacidade de pagamento das pessoas6.

O pacto corporativo em torno das obras sociais, financiadas por empregadores e empregados, foi crucial para a governabilidade de lideranças sindicais e governos nacionais nas décadas seguintes7. A contratação de prestadores privados favoreceu sua expansão, sem regulação estatal8. A cobertura do seguro social foi estendida aos trabalhadores por ramo de atividade e institucionalizou-se na saúde um modelo fragmentado, com três subsetores: público, obra social e privado6.

O retorno da Argentina à democracia foi marcado pela eleição de Alfonsín em 1983, que propôs ordenar as obras sociais sindicais, unificar o financiamento do sistema e universalizar a cobertura para os cidadãos. Porém, a resistência dos sindicatos, a crise econômica e a entrega antecipada do poder ao presidente Menem em 1989 impossibilitaram tais mudanças9.

Nos anos 1990, o governo Menem adotou reformas neoliberais que envolveram abertura econômica e privatização, em coalizão com o empresariado, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional10. Na previdência, fortaleceu-se a lógica de capitalização e fundos privados passaram a administrar as contribuições dos trabalhadores, em contas individuais11.

Na saúde, apesar dos sindicatos terem resistido a reformas no sistema9, mudanças afetaram o setor público, as obras sociais e o setor privado8.

No subsistema público, parte importante dos serviços de atenção à saúde já eram descentralizados para as províncias. Em 1993, promulgou-se legislação autorizando os hospitais públicos a se tornarem autônomos. Em 1999, mais de mil hospitais haviam aderido, com autonomia variável e dependência aos recursos públicos. Em muitas províncias persistiam o subfinanciamento dos serviços e problemas no acesso8.

As obras sociais sofreram dificuldades devido à crise econômica, às mudanças nas relações de trabalho e ao aumento do desemprego. Em 1995 o Ministério das Finanças propôs, com apoio do Banco Mundial, a introdução da competição de mercado no seguro social, por meio do direito de escolha dos trabalhadores por qualquer obra social ou por seguro privado. Os sindicatos vetaram que os seguros privados pudessem competir pelos filiados. Porém, instituiu-se a liberdade de escolha dos trabalhadores entre obras, rompendo com a obrigatoriedade de vínculo por categoria profissional7-9.

Várias obras sociais fizeram acordos com empresas para a oferta de planos especiais, visando atrair filiados. A lógica de mercado penetrou o subsistema das obras e mudou o pacto corporativo tradicional6,7, favorecendo a expansão das empresas de medicina pré-paga12.

As reformas da década de 1990 fracassaram em termos de resultados de saúde e custos6. De 1999 a 2002, a crise econômica levou a uma ‘emergência sanitária’, que evidenciou a baixa capacidade de resposta dos segmentos das obras sociais e privado, dependentes de ciclos econômicos13.

Nos anos 2000, os governos de centro-esquerda de Nestor (2003-2007) e Cristina Kirchner (2007-2015) fizeram ajustes no sistema misto público-privado de previdência social. Em 2008, houve reestatização e unificação do sistema, que passou a cobrir 90% da população11.

Na saúde, o período foi marcado por expansão de programas públicos específicos e debates sobre a regulação das obras sociais e do setor privado. O Conselho Federal de Saúde fortaleceu-se como instância de articulação intergovernamental e definiu prioridades incluídas no Plano Federal de Saúde 2004-200714: política nacional de medicamentos; saúde materno-infantil; seguro público de saúde; programas específicos e Atenção Primária em Saúde.

Os financiamentos internacionais anteriores à crise de 2001-2002 se reorientaram para a implementação dessas prioridades. A política de medicamentos envolveu a criação do programa REMEDIAR, visando ao acesso a uma relação de medicamentos essenciais, e a elaboração da Lei de Medicamentos Genéricos. Ampliaram-se os medicamentos do Plano Médico Obrigatório, a ser cumprido por obras sociais e empresas de medicina pré-paga.

Quanto à saúde materno-infantil, em 2004, o Plano Nascer começou a ser executado pelo governo federal e províncias para diminuir as taxas de mortalidade infantil e materna nas regiões com piores indicadores. Em 2007, foi estendido para todo o país, visando à cobertura pública de gestantes e crianças até 5 anos sem seguro social. O Plano funcionou como um seguro público provincial que buscou fortalecer a Atenção Primária em Saúde15.

O período de 2008 a 2014 se caracterizou pela continuidade de programas e foco em ações de saúde pública. Os programas Remediar e Nascer foram revistos e ampliados. Em 2009 o primeiro incorporou um componente para fortalecer redes de serviços de saúde nas províncias. Em 2014 foi renomeado Remediar + Redes, com três estratégias: provisão de medicamentos essenciais; fortalecimento de redes; e capacitação de profissionais do primeiro nível de atenção16.

Em 2012, o Plano Nascer passou a cobrir crianças até 10 anos, adolescentes até 19 anos e mulheres até 64 anos, sem cobertura formal de saúde. Em 2014 foi renomeado como Programa Sumar, que se destacou em termos do arranjo federativo, ao descentralizar decisões e dar incentivos às províncias e equipes de saúde16.

No que concerne às obras sociais, no início dos anos 2000, regulamentou-se o Plano Médico Obrigatório, que viria a ser atualizado. Porém, a regulação do segmento permaneceu frágil e persistiu a competição entre obras por filiados, expansão de convênios com empresas e contratação de prestadores privados.

Quanto à regulação do setor privado, em 2011 promulgou-se a Lei de Medicina Pré-paga7,13, que admitiu a existência de usuários cuja relação é intermediada por obras sociais, e não alterou a segmentação na estrutura e as desigualdades do sistema de saúde12.

Em 2011, existiam cerca 280 obras sociais nacionais, cobrindo 39% da população; o Instituto Nacional de Serviços Sociais para aposentados e pensionistas cobria 8%; as 24 obras provinciais, 14%. O setor privado era conformado por cerca de 350 empresas, cobrindo 9% da população. Por fim, cerca de 30% da população dependia de serviços públicos.

O sistema de saúde argentino é conhecido por sua segmentação, fragmentação, baixa eficiência e equidade. No sistema público, há serviços nacionais, provinciais, municipais; entre as obras sociais, organizações nacionais e provinciais, de natureza e porte diversos. O segmento privado envolve serviços corporativos, consultórios, empresas de medicina pré-paga. Existem ainda conexões entre tais segmentos6,13.

Brasil: sistema público universal e setor privado forte

No século XX, a trajetória da política de saúde no Brasil envolveu dois ramos: a saúde pública e a assistência médica previdenciária. O segundo ramo se expandiu por categorias profissionais até 1966, quando foi unificado em um instituto responsável pela previdência e assistência médica dos trabalhadores formais urbanos. Nas décadas seguintes, persistiram limites na cobertura, no financiamento e incentivos estatais à prestação privada em saúde, que aumentou por meio de: contratação de prestadores privados; apoio estatal à construção de hospitais privados; subsídios à contratação de planos privados por empresas; clínicas privadas e comércio de medicamentos17.

Nos anos 1980, em meio à crise econômica e à democratização, o movimento sanitário propôs uma agenda de reforma cujas diretrizes foram incluídas na Constituição de 1988, que reconheceu a saúde como direito e instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS), público e universal. A saúde foi inserida, com a previdência e a assistência, em uma concepção ampla de Seguridade Social, a ser financiada por impostos e contribuições sociais18,19.

A década de 1990 foi marcada pela democratização e liberalização econômica, caracterizada por: estabilização monetária, abertura de mercados, restrições ao gasto público, privatização de empresas, fragilidade das políticas industriais, redução do Estado, descentralização e novas relações público-privadas20. Essa agenda foi inaugurada pelo governo Collor (1990-1992) e mantida nos governos Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999-2002), com variações. Em que pesem influências externas, as elites nacionais – Presidência e autoridades econômicas – foram os principais atores em reformas do Estado que impuseram restrições à Seguridade Social, ao limitar os gastos e a expansão de serviços públicos.

A implementação do SUS nos anos 1990 expressou tensões entre a agenda da reforma sanitária e a de reforma do Estado. Algumas mudanças relevantes foram: unificação do comando sobre a política nacional; criação de comissões intergovernamentais e conselhos participativos, que ampliaram atores na formulação da política e apoio ao SUS; expansão nacional de serviços públicos de saúde de vários tipos, com destaque para a atenção primária21.

No entanto, a agenda de reforma de Estado impôs restrições à política de saúde em termos de financiamento, descentralização, produção de insumos e gestão do trabalho. Reformas orientadas aos mercados, associadas à força do setor privado no país, afetaram as relações público-privadas em saúde. Apesar da expansão de serviços públicos, o SUS permaneceu dependente de leitos, laboratórios e outros serviços privados. As empresas de planos e seguros continuaram a crescer, subsidiadas por renúncia fiscal. A Agência Nacional de Saúde, criada em 2000, regulou contratos e organizou o mercado de planos, mas não conteve seu crescimento.

No primeiro mandato de Lula (2003-2006), houve continuidade da ênfase na estabilidade econômica, associada a medidas para melhorar a capacidade regulatória do Estado. No segundo mandato (2007-2010), ganhou destaque uma convenção neodesenvolvimentista, com ênfase nos investimentos em infraestrutura e inovação, fortalecimento dos bancos públicos e empresas nacionais22. O boom de commodities favoreceu o crescimento econômico em alguns anos e, durante a crise internacional de 2008-2009, adotaram-se políticas anticíclicas.

Na área social, o governo priorizou estratégias de combate à pobreza e inclusão de grupos vulneráveis. Medidas como aumento do salário mínimo e expansão de programas de transferência de renda contribuíram para reduzir a pobreza e as desigualdades de renda, com expansão do consumo interno23.

A política nacional de saúde de 2003 a 2010 foi marcada por: novas prioridades de governo; mudanças graduais nos campos da atenção, gestão do trabalho e de insumos para a saúde; limitado enfrentamento de problemas estruturais21.

O Programa Saúde da Família e as políticas de promoção da saúde se expandiram, com mudanças incrementais. Programas adotados como marcas de governo – Brasil Sorridente, Serviço de Atendimento Móvel de Urgência e Farmácia Popular – introduziram inovações em áreas que apresentavam lacunas21. Implantaram-se mudanças na gestão do trabalho e de insumos em saúde e, durante o segundo mandato de Lula, enfatizou-se a saúde como setor estratégico para o desenvolvimento, por favorecer empregos qualificados, inovações tecnológicas e dinamismo industrial24.

O primeiro governo Dilma Rousseff (2011-2014) se desenvolveu em um contexto econômico e político desfavorável. Na saúde, predominaram continuidades e mudanças incrementais e definiram-se novos programas prioritários, como o ‘Mais Médicos’ e as Unidades de Pronto Atendimento21.

Em todo o período analisado, persistiram limitações no financiamento e nas relações público-privadas em saúde. O orçamento da saúde permaneceu dependente de negociações com autoridades econômicas e condicionado ao crescimento. Os investimentos em infraestrutura continuaram baixos e a participação federal no gasto público em saúde diminuiu25.

A cobertura dos planos e seguros privados continuou a crescer. As empresas de saúde expandiram suas estratégias políticas e de mercado26, enquanto persistiram os subsídios e a frágil regulação estatal sobre o setor. Após a reeleição de Dilma, promulgou-se uma lei autorizando a entrada do capital estrangeiro na saúde, inclusive na prestação de serviços.

Em síntese, as políticas de saúde brasileiras no período mostraram avanços e contradições21. O Brasil tem um sistema público universal que abrange mais de 200 milhões de pessoas, limitado por dificuldades financeiras e desigualdades. O país também compreende um setor privado dinâmico, que inclui prestadores privados ao SUS e um segmento de planos e seguros de saúde, ao qual estão vinculados cerca de 50 milhões de pessoas, ou 25% da população brasileira, que também utiliza o SUS.

México: sistema corporativo com provisão pública e seguro de saúde para pobres

As ações de saúde pública no México se organizaram a partir do início no século XX. O seguro social em saúde dos trabalhadores se estruturou a partir dos anos 1940, com a criação do Instituto Mexicano de Seguridade Social (IMSS) em 1943 e do Instituto de Seguridade e Serviços Sociais dos Trabalhadores do Estado (ISSSTE) em 1959. Até os anos 1970, houve a incorporação de trabalhadores formais pelo seguro social contributivo. A maior parte da população, no entanto, dependia de limitadas ações assistenciais públicas.

Em meados dos anos 1970, o IMSS começou a prover serviços para a população rural sem capacidade contributiva. Em 1979 o programa passou a se chamar IMSS-Coplamar e nas décadas seguintes foi expandido e renomeado várias vezes27.

Nos anos 1980 e 1990, sob crise econômica e governos do Partido Revolucionário Institucional (PRI), o México passou por reformas caracterizadas por liberalização econômica, privatização e redução de gastos públicos10 que afetaram as políticas sociais. A transição para a democracia combinava eleições regulares com fraudes, repressão e apropriação de recursos do Estado pelo PRI28. Sucessivos governos tentaram reformar o IMSS e o ISSSTE – por retração ou privatização –, mas houve resistências29.

A Constituição de 1983 reconheceu o direito à proteção social à saúde. O governo de La Madrid (PRI – 1982-1988), propôs uma reforma com ênfase na racionalização, descentralização e diversificação dos prestadores de serviços. A proposta sofreu oposição da burocracia do IMSS, dos sindicatos e de governadores30. O primeiro ciclo de descentralização de serviços federais atingiu 14 estados, sob condições adversas de financiamento, baixa definição das responsabilidades das esferas e manutenção do poder federal27. Além disso, teve resultados limitados em termos de eficiência, qualidade e redução das desigualdades31.

Criaram-se duas entidades que influenciariam as reformas da saúde nas décadas seguintes: a Fundação Mexicana de Saúde (FUNSALUD), um think tank financiado por empresários nacionais e internacionais, e o Instituto Nacional de Saúde Pública (INSP) para formação de quadros e proposição de políticas. Tais estruturas se norteariam pelo pensamento da “Nova Saúde Pública”, que visaria à organização do sistema de saúde e uso de recursos públicos com base em evidências, dentro dos limites disponíveis30.

Nos anos 1990, os governos de Gortari (1988-1994) e Zedillo (1994-2000), do PRI, intensificaram reformas econômicas e sociais e enfatizaram políticas de alívio da pobreza. Em 1995, o Congresso aprovou uma reforma previdenciária do IMSS que instituiu um sistema de contribuições pré-definidas e contas individualizadas, administrado por fundos privados. A reforma, adotada em 1997, alterou critérios de elegibilidade e restringiu benefícios29.

Mudanças afetaram o sistema de saúde, apesar das resistências a uma reforma radical. A privatização da previdência comprometeu o orçamento do IMSS, prejudicando o financiamento da saúde. A partir de 1995, se iniciou uma segunda onda de descentralização para ampliar responsabilidades estaduais no financiamento, gestão e prestação de serviços. Criaram-se organismos descentralizados de saúde e fundos de financiamento federal nos estados, resultando na conformação de 32 sistemas estaduais de saúde, dependentes de recursos federais27. Em um contexto de austeridade econômica e sob influência do Banco Mundial, a agenda federal enfatizou as ações básicas de saúde.

No início dos anos 2000, a eleição de Fox, do conservador Partido da Ação Nacional (PAN), interrompeu o período de mais de 70 anos do PRI na Presidência. O Ministério da Saúde foi assumido por Julio Frenk, que atuava no INSP e no FUNSALUD e havia sido um dos formuladores do modelo de pluralismo estruturado implantado na Colômbia em 1993, caraterizado por: separação entre financiamento e provisão de serviços; participação privada na compra e prestação de serviços; e adoção de pacotes de ações custo-efetivas32.

Propôs-se uma reforma com o objetivo de expandir a proteção financeira em saúde por meio do asseguramento voluntário das pessoas sem cobertura pelo seguro social. Em 2003 o Congresso Nacional, de maioria governista, aprovou a criação do Sistema de Proteção Social em Saúde, incluindo o Seguro Popular de Saúde (SPS). O financiamento do SPS prevê três fontes: governo federal, estados e uma cota paga pelos filiados, da qual estariam isentas as pessoas com baixa renda. Os recursos federais são transferidos para os estados de acordo com o número de pessoas cadastradas, para custear um pacote básico de ações, o Catálogo Universal de Serviços Essenciais de Saúde. O programa também incluiu um grupo limitado de intervenções de alto custo, visando reduzir gastos por desembolso direto. Em 2013, o número de intervenções incluídas era de 285 tratamentos básicos e 59 de alto custo, ofertados por prestadores públicos ou privados33.

A adesão dos estados foi rápida visando ao recebimento de recursos federais. Em 2001 o programa se iniciou em 5 estados-piloto; em 2002, abrangia 14; em 2003, 21; em 2004, 24; e, em janeiro de 2005, 31 estados34. O Distrito Federal, sob o governo de esquerda de Obrador, do Partido da Revolução Democrática (PRD), foi o último a aderir.

A proporção da população filiada variou entre estados, assim como a disponibilidade de serviços, dependente de infraestrutura e investimentos estaduais. A partir 2011 os serviços do IMSS-Oportunidades nos estados passam a ser disponibilizados para o Seguro Popular27. Apesar da tendência de aumento da provisão privada31, os prestadores públicos ainda predominavam no IMSS e no SPS em 2014.

Segundo apoiadores da reforma de 2003, os resultados positivos seriam: aumento no gasto público; filiação de pessoas ao SPS; alcance da “cobertura universal” (compreendida como asseguramento); expansão do acesso a um pacote básico de intervenções; aumento da proteção financeira em saúde35.

Por outro lado, limites das reformas têm sido apontados: milhões de mexicanos não teriam seguro; os gastos públicos continuaram limitados como proporção do PIB; os gastos por desembolso direto continuaram elevados; o acesso dos filiados ao SPS é limitado a um pacote restrito de ações; os serviços e investimentos são desiguais entre estados; as reformas teriam agravado a fragmentação, sem reduzir desigualdades, aumentar a eficiência ou a qualidade do sistema27,32,36,37.

Ao final do período, o sistema de saúde do México mantinha estrutura segmentada. As estimativas do número de filiados ao SPS variam de acordo com a fonte; em 2013, situava-se entre 40 e 52 milhões27,36. Segundo inquérito domiciliar de 2012, a cobertura do SPS seria 38%, a do IMSS 32% e a do ISSSTE 6%, enquanto 20% da população não estaria coberta por esses seguros33.

Em 2012, com o retorno do PRI à Presidência, o governo propôs uma reforma que integraria os institutos de seguro social e o SPS em um sistema universal de saúde. Até 2014, a proposta não havia sido implantada e suas diretrizes eram controversas, como a definição do pacote de intervenções, a separação de funções e a introdução de compradores privados de serviços27,33.

O Quadro 1 resume a trajetória das políticas de saúde nos três países.

Quadro 1 Políticas de Saúde na Argentina, Brasil e México: trajetória prévia, contexto e agenda política de 1990 a 2014. 

País Trajetória Prévia 1990-1999 2000-2014
Argentina Ao longo do século XX:
  • Ações de saúde pública, serviços públicos de saúde (em geral provinciais) para a população sem cobertura;

  • Obras Sociais: origem nas associações mutuais; serviços de saúde organizados em base corporativa (em geral sindical); distintos portes e natureza; cobertura de mais de 60% da população; em geral contratação de prestadores privados.

  • Setor privado: prestadores privados oferecem serviços para as obras sociais ou clientes individuais; empresas de medicina pré-paga. Anos 1980: - Retorno à democracia; eleição de Raul Alfonsín em 1983;

  • Propostas de unificação do sistema de saúde esbarram em resistências, principalmente dos sindicatos.

  • Crise econômica e política: entrega antecipada do governo a Carlos Menem em 1989.

1989-1999- Governo Menem Política econômica: reformas neoliberais: ajuste estrutural, liberalização dos mercados, privatizações, contenção de gastos públicos. Aposentadorias/Pensões: criação de sistema misto (público-privado); indução à escolha do sistema privado, baseado em contribuições individuais e administrado por fundos privados. Assistência Social: início de programas de transferência de renda para combate à pobreza. Política de saúde:
  • Sistema público sofre efeitos de limites de financiamento e baixo investimento; ênfase na responsabilidade das províncias;

  • Legislação incentiva hospitais públicos a se tornarem autônomos; adesão variável entre províncias.

  • Obras Sociais: liberdade de escolha entre obras sociais é aprovada, mas sindicatos vetam a possibilidade de concorrência direta de empresas no sistema; aumenta a competição entre as obras, que passam a subcontratar empresas privadas para oferecer melhores planos e atrair clientes; substituição do pacto corporativo por lógica de mercado.

  • Setor privado: expansão dos prestadores privados e das empresas de medicina pré-paga.

2000-2002 – Crise econômica; 2003 a 2014 - Governos Nestor Kirchner (2003-2007) e Cristina Kirchner (2007-2015): Política econômica: tentativa de retomada do crescimento, emprego formal e investimentos públicos; empréstimos internacionais. Aposentadorias/Pensões: 2003-2007: correções e livre opção entre sistemas; inclusão no sistema público; 2008-2014: reestatização do sistema; criação de sistema único público e integrado (SIPA); cobertura de 90% da população. Assistência Social: ampliação de políticas de transferência de renda e criação do programa Assignación Universal por Hijo. Política de Saúde:
  • Ampliação de programas públicos específicos, com apoio financeiro internacional;

  • Política de Medicamentos: programa Remediar (depois Remediar-Redes); genéricos; aumento dos medicamentos na lista do PMO;

  • Plano Nascer/SUMAR – seguro público provincial; cobertura de gestantes e crianças; em 2012 estendida a adolescentes e mulheres até 64 anos.

  • Programa Médicos Comunitários (APS);

  • Investimentos em infraestrutura hospitalar;

  • Obras Sociais: persiste concorrência para atrair filiados, contratação de prestadores privados e de empresas de medicina pré-paga.

  • Lei da Medicina pré-paga (em 2011)

Brasil Ao longo do século XX:
  • Ações de saúde pública com foco no controle de doenças específicas;

  • Assistência médica previdenciária para os trabalhadores formais urbanos providas pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões, unificados em 1966 no Instituto Nacional de Previdência Social. Prestação de serviços hospitalares em grande parte feita pela contratação de serviços privados.

  • Anos 1960: início de subsídios estatais ao setor privado.

  • Anos 1970: expansão da cobertura da assistência médica previdenciária para trabalhadores rurais e de alguns serviços para toda a população (ex: emergências); experiências locais de reorganização dos serviços. Anos 1980:

  • Contexto de redemocratização e ampla mobilização social; articulação do movimento pela reforma sanitária;

  • Constituição de 1988: Seguridade Social ampla; saúde como direito de todos e dever do Estado; criação do Sistema Único de Saúde: público, universal, gratuito, integral, orientado pela descentralização e controle social.

  • Reformas institucionais e descentralização em saúde.

Governo Collor-PRN (1990-1992); impeachment; Governo Itamar Franco-PMDB (1993-1994); Governo Fernando Henrique Cardoso – PSDB (1995-2002) Política econômica: Reformas neoliberais: abertura econômica, privatizações, reforma do Estado e contenção de gastos públicos. Aposentadorias/Pensões: Lei Orgânica da Previdência em 1991; propostas de privatização sofrem resistências; a partir de 1998, reformas incrementais reforçam o componente contributivo e mudam regras de acesso aos benefícios; mantido o caráter público; Assistência Social: mudanças institucionais (Lei Orgânica da Assistência Social); aumento das políticas de transferência de renda no final da década. Política de Saúde:
  • Influenciada pelas agendas da reforma sanitária e de reforma do Estado.

  • Início da implementação do SUS sob dificuldades financeiras;

  • Ênfase na descentralização; expansão de serviços públicos descentralizados;

  • Adoção de mecanismos de coordenação intergovernamental e de controle social; Principalmente no período 1995-2002:

  • Expansão do Programa Saúde da Família

  • Avanços em políticas saúde mental, controle de HIV/AIDS; controle do tabaco.

  • Empresas de planos e seguros de saúde: lei de regulação em 1998 e criação de agência reguladora em 2000; regulação limitada e crescimento do setor.

Governos do PT- Lula (2003 a 2010) e Dilma Rousseff (2011-2014). Políticas econômicas: estabilidade monetária; porém retomada de políticas desenvolvimentistas, ênfase na criação de empregos formais, no aumento do salário mínimo e do poder de consumo da população; Aposentadorias/Pensões: reformas incrementais nos regimes geral e dos servidores públicos reforçam caráter contributivo e mudam critérios de acesso; mantém-se o caráter público do sistema; Assistência social: expansão das políticas de transferência de renda; ampliação do Benefício de Prestação Continuada e criação do Programa Bolsa Família; ênfase na expansão de direitos de grupos vulneráveis (população negra, LGBT, mulheres) Política de Saúde:
  • Políticas de fortalecimento da APS/ Estratégia Saúde da Família: inclusão de novos profissionais nas equipes, programa Mais Médicos (contratação de médicos para áreas remotas e abertura de vagas para Medicina).

  • Programas prioritários para áreas críticas: saúde bucal, atenção às urgências e assistência farmacêutica.

  • Estratégias de promoção da saúde.

  • Estratégias de fortalecimento da produção nacional de insumos estratégicos para a saúde;

  • Estratégias voltadas para a educação e gestão do trabalho em saúde.

  • Setor privado suplementar (empresas de planos e seguros de saúde)- limitada regulação pela agência reguladora; setor continua a crescer.

  • Final de 2014: Medida Provisória (que se torna Lei em 2015) autoriza abertura do setor saúde ao capital estrangeiro, inclusive na assistência à saúde.

México Ao longo do século XX:-
  • Constituição de 1917- Pacto social amplo; porém, 70 anos de domínio de um único partido no poder (PRI).

  • Ações de saúde pública limitadas;

  • Em 1943: criação do IMSS (trabalhadores formais);

  • Em 1959: criação do ISSSTE (servidores públicos);

  • Anos 1970: IMSS começa a oferecer serviços de saúde para pobres rurais sem cobertura. Anos 1980

  • Governo de Miguel de la Madrid-PRI (1982-1988)

  • Crises econômicas: reformas de austeridade, contenção do gasto público;

  • Democracia restrita;

  • Reforma constitucional de 1983 –direito das pessoas à proteção da saúde.

  • Constrangimentos orçamentários ao IMSS, ISSSTE e Secretaria de Saúde;

  • 1983-1984 – Descentralização de serviços de saúde, sob condições financeiras adversas, envolve 14 estados.

  • Governos do PRI de Carlos Salinas de Gortari(1988-1994) e Ernesto Zedillo (1994-2000) Política econômica: Crises econômicas e reformas neoliberais; Aposentadorias/Pensões: sucessivas propostas de privatização do seguro social; em 1995: privatização do sistema de pensões (IMSS); resistências à privatização da saúde e do ISSSTE. Assistência Social: expansão de políticas de combate à pobreza (transferência de renda). Política de Saúde:

  • Reforma do Setor Saúde 1995-2000-descentralização envolve os 32 estados; criação de “organismos públicos descentralizados” e fundo público para transferências federais. -

  • IMSS – Após privatização das pensões, dificuldades financeiras crescentes para a atenção médica.

  • Baixo investimento nos serviços públicos e incentivo à contratação de privados (ainda limitada).

  • Governos PAN de Vicente Fox (2000-2006) e Felipe Calderón (2006-2012) – rompem com mais de 70 anos do PRI no governo nacional.

  • Eleição de Peña Nieto - PRI retorna ao poder em 2012. Política econômica: continuidade das políticas neoliberais; incentivos à expansão do setor privado. Aposentadorias/Pensões: propostas de expansão da participação privada no ISSSTE (planos complementares para os servidores); Assistência social: expansão das políticas de transferência de renda; Progresa se torna o programa Oportunidades; Política de Saúde:

  • Lei do Sistema de Proteção Social em Saúde e Criação do Seguro Popular de Saúde (2003) - voluntário e para pobres – cobre número limitado de intervenções de saúde de baixa e média complexidade (285 ao final de 2013) e relação de intervenções complexas por meio do Fundo Catastrófico de Saúde; serviços em geral prestados pelas secretarias estaduais; em alguns estados-expansão de serviços públicos ou contratação de serviços privados.

  • IMSS-Solidariedade passa a se chamar IMSS-Oportunidades; serviços passam a ser disponibilizados para beneficiários do Seguro Popular em 2011.

  • IMSS e ISSSTE – dificuldades financeiras; lenta expansão da contratação de serviços privados.

  • Crescimento de consultórios médicos; pequeno crescimento do segmento de planos privados.

Fonte: Elaboração própria, a partir das diversas fontes bibliográficas e documentais.

Nota: Siglas APS- Atenção Primária em Saúde; PMO – Programa Médico Obrigatório; SIPA- Sistema Integrado Previdenciário Argentino.

Condicionantes e implicações das políticas para a configuração dos sistemas

Os três países apresentam características estruturais comuns, como: passado colonial; inserção periférica no capitalismo mundial; industrialização parcial e economia dependente do setor terciário; susceptibilidade a crises; concentração de renda e desigualdades sociais; democracias recentes, com longa trajetória de regimes autoritários, golpes e instabilidade política. Nas últimas décadas, sofreram efeitos das transformações do capitalismo, expressas na financeirização e no neoliberalismo.

Os sistemas de proteção social e de saúde desses países reiteraram a estratificação social, por meio de segmentação de clientelas e benefícios, dada a sua vinculação a mercados de trabalho ou a segmentos privados. Os seguros sociais levaram à incorporação de trabalhadores formais e familiares, enquanto os demais cidadãos contavam com serviços de saúde pública. A existência de economias dinâmicas e grupos de maior renda, associada ao apoio estatal, favoreceu segmentos privados: prestadores de serviços ao seguro social ou à população, empresas de planos de saúde e comércio de medicamentos. Esse processo, e os limites dos serviços públicos, explicam a relevância dos mercados e gastos privados em saúde nos países.

A trajetória de configuração dos sistemas até os anos 1980 expressou similaridades e diferenças quanto aos arranjos corporativos e configuração de mercados em saúde que geraram legados institucionais de difícil transformação nas décadas seguintes.

Argentina e Brasil foram pioneiros na América Latina na organização da atenção médica corporativa, tendo alcançado até os anos 1980 razoável cobertura entre trabalhadores formais1. Inicialmente segmentados por categorias, os sistemas desses países apresentaram diferenças em sua evolução, arranjo institucional e dinâmica dos mercados, que condicionariam as possibilidades de universalização.

No Brasil, em 1966, durante o regime militar, os institutos de previdência e saúde organizados por categorias foram unificados em um instituto nacional. Nos anos seguintes, expandiram-se prestadores privados na atenção médica previdenciária e subsídios estatais aos planos privados17. Apesar da ruptura do arranjo corporativo tradicional pela reforma sanitária dos anos 1980, com a criação do SUS, público e universal, a estratificação social se reafirmaria nas relações público-privadas, pela vinculação da classe média e de grupos de trabalhadores a planos privados de saúde. A força dos segmentos privados configuraria uma situação de dependência de trajetória durante a implementação do SUS, sob incentivos estatais e relações imbricadas entre público e privado38.

Na Argentina, enquanto em 1967 a reestruturação da previdência resultou na conformação de três caixas nacionais, a saúde permaneceu sob gestão dos sindicatos por meio das obras sociais, cuja fragmentação se acentuaria nas décadas seguintes12. O pacto entre Estado e sindicatos em torno da atenção à saúde preservaria o caráter corporativo do sistema, dificultando a conformação de um sistema universal. Porém, não impediria a expansão privada na prestação a partir dos anos 1990, por dentro das obras, que se articularam com empresas de medicina pré-paga, favorecendo seu aumento12.

O México estruturou o subsistema corporativo a partir da década de 1940, com a criação do IMSS, e nos anos 1950 do ISSSTE, que se consolidaram como instituições públicas de previdência e atenção médica para os trabalhadores formais, com predomínio da provisão pública. A partir dos anos 1980, o poder técnico e político dos institutos dificultaria a ruptura do pacto corporativo diante de pressões por reformas neoliberais. A presença dos mercados, limitada no que concerne aos prestadores e planos de saúde, se expressa nos altos gastos das famílias por desembolso direto e na tendência recente à expansão de serviços privados31.

Outro grupo de condicionantes, de caráter político-conjuntural, concerne às relações entre democracia, neoliberalismo e perfil dos governos.

No Brasil, a anterioridade da democratização em relação à liberalização favoreceu a mobilização social e a promulgação de uma Constituição em 1988, avançada em termos de cidadania, com relativo efeito protetor contra as reformas neoliberais na década de 1990. Os governos de centro-esquerda de Lula e Dilma de 2003 a 2014 implantaram políticas redistributivas e preservaram o SUS, com avanços incrementais. No entanto, problemas estruturais não foram enfrentados, como o dinamismo do setor privado. A tomada do poder por Temer em 2016, após o impeachment de Dilma, mostrou o potencial de destituição de direitos sociais por um governo não eleito de orientação neoliberal, articulado a interesses econômicos nacionais e internacionais.

Na Argentina, após a crise dos anos 1980, a liberalização econômica foi radicalizada nos anos 1990, ao longo do governo democrático de Menem10. A partir de 2003, os governos Kirchner, de centro-esquerda, implementaram medidas reestatizantes e buscaram expandir direitos sociais. Isso favoreceu a expansão de programas públicos na saúde, sem romper com a segmentação do sistema de obras sociais, nem conter a expansão dos mercados em saúde, por dentro das obras.

No México, aceleradas reformas neoliberais desencadeadas nos anos 1980 afetaram o sistema de saúde. O país não teve governos nacionais de esquerda e nem propostas de universalização da saúde no período. A política social centrou-se no combate à pobreza, em consonância com a orientação das agências internacionais e das reformas econômicas. A burocracia dos institutos e o movimento sindical buscaram defender os direitos dos trabalhadores e a expansão da cobertura da população não contribuinte, por meio dos institutos e da provisão pública.

Diante de resistências às reformas no seguro social, os governos apostaram na descentralização, na fragilização dos institutos e, nos anos 2000, no asseguramento dos pobres para oferecer um pacote restrito de ações. Predominou a disputa de projetos para a expansão da cobertura dos serviços de saúde fundados nas lógicas neoliberal (pró-mercado e focalizada) ou corporativa (defesa das instituições públicas e dos direitos adquiridos por parte da população). A partir de 2014, a proposta de sistema universal foi retomada por um governo de direita, associada ao risco de homogeneização dos serviços por baixo, sob condições adversas de financiamento e descolada do debate sobre direito e modelo de atenção à saúde.

A Tabela 1 resume indicadores dos países em 1990 e 2014. O Brasil apresentava em 1990 os piores indicadores de pobreza, desigualdades e saúde, mas teve avanços expressivos. A Argentina, com a melhor situação inicial, também teve resultados positivos. Quanto ao México, em que pese a melhora de indicadores de saúde, registraram-se resultados limitados na redução da pobreza, sugerindo a insuficiência das políticas focalizadas que predominam no país.

Tabela 1 Indicadores demográficos, econômicos, sociais e de saúde selecionados. Argentina, Brasil e México, ao redor de 1990 e 2014. 

Indicador Argentina Brasil México
1990 2014 % Var. 1990 2014 % Var. 1990 2014 % Var.
População (total)* 32.688.966 42.874.155 31,2 150.310.243 205.960.069 37,0 85.380.637 122.978.018 44,0
População (% América Latina)* 7,5 7,0 - 6,6 34,5 33,7 - 2,5 19,6 20,1 2,5
PIB per capita (US$ correntes)*,1 4302,9 13225,9 207,4 2838,6 11732,6 313,3 3435,9 10532,4 206,5
GDP (% América Latina)*,1 12,4 9,2 - 26,3 37,7 39,0 3,6 25,9 20,9 - 19,3
Agricultura, valor adicionado (% do PIB)**,1 8,1 8,0 - 1,5 8,1 5,0 - 37,9 7,8 3,5 - 54,9
Indústria, valor adicionado (% do PIB)**,1 36,0 28,9 - 19,7 38,7 23,8 - 38,5 28,4 34,3 20,8
Serviços, valor adicionado (% do PIB)**,1 55,9 63,1 12,9 53,2 71,2 33,8 63,7 62,1 - 2,5
Grau de abertura da economia (% US$ correntes)* 15,6 28,4 81,8 14,1 25,1 77,6 34,3 65,8 92,0
Pobreza (% população)*,2 16,1 4,3 - 73,3 48,0 16,5 - 65,6 44,2 41,2 - 6,8
Extrema pobreza (% população)*,2 3,4 1,7 - 50,0 23,4 4,6 - 80,3 16,0 16,3 1,9
Coeficiente de Gini*,3 0,501 0,470 - 6,2 0,627 0,548 -12,6 0,542 0,491 - 9,4
Abastecimento de água tratada (% da população com acesso)** 93,8 98,9 5,4 88,5 98,1 10,8 82,3 96,1 16,8
Infraestrutura adequada de saneamento (% da população com acesso)** 87,4 96,1 10,0 66,6 82,7 24,2 66,2 85,1 28,5
Expectativa de vida ao nascer, total (anos)** 71,5 76,2 6,5 65,3 74,4 13,9 70,8 76,7 8,4
Fecundidade total (nascidos por mulher)** 3,0 2,3 - 22,3 2,8 1,8 - 36,3 3,5 2,2 - 35,5
Taxa de mortalidade de menores de 5 anos (por 1.000 nascidos vivos)*** 27,6 12,9 - 53,3 60,8 16,2 - 73,4 46,6 13,8 - 70,4
Taxa de mortalidade infantil (por 1.000 nascidos vivos)*** 24,4 11,5 - 52,9 50,9 14,4 - 71,7 37,1 11,9 - 67,9
Taxa de mortalidade neonatal (por 1.000 nascidos vivos)*** 15,4 6,5 - 57,8 24,3 9,6 - 60,5 20,6 7,4 - 64,1

Fontes: * CEPAL, 2017 (CepalStat); ** Banco Mundial (Base de Dados), 2017; *** Organização Mundial de Saúde (Repositório de Dados), 2017.

Notas: 1 PIB - Produto Interno Bruto; 2 Pobreza e Extrema Pobreza- na Argentina, os dados se referem apenas à população urbana e aos anos 1994 e 2012; no México, o dado se refere à população total e aos anos 1992 e 2014. 3 Coeficiente de Gini - na Argentina, os dados se referem apenas à população urbana e aos anos 1990 e 2014; no México, os dados se referem à população total e aos anos 1992 e 2014.

No financiamento da saúde, observa-se aumento do gasto público per capita no Brasil e no México, sendo os gastos maiores no primeiro (Figura 2). A Argentina, apesar de níveis iniciais elevados, apresentou oscilações, com aumento entre 2004 e 2009 e queda a partir de 2010 no gasto per capita e na participação do gasto público no PIB.

Fonte: OMS (Repositório de Dados), 2017. http://apps.who.int/gho/data/node.home.

Notas: 1PIB - Produto Interno Bruto; 2US$ PPC: Em dólares americanos, pareado por poder de compra.

Figura 2 Gasto público em saúde como proporção (%) do PIB1 e gasto público per capita (US$ PPC)2 em saúde. Argentina, México e Brasil, 1995 a 2014. 

Quanto à composição do gasto público, no Brasil 100% se destina ao SUS, enquanto nos outros países mais de 50% se destina ao seguro social em saúde dos trabalhadores. No México, a participação dos gastos do seguro social se reduziu entre 1995 e 2014. Na Argentina essa participação aumentou entre 2009 e 2014, sugerindo que os gastos com o seguro social foram mais resistentes à retração do financiamento setorial do que os programas públicos.

Os gastos privados permaneceram elevados nos três países, com diferenças de composição. Destaque-se a relevância dos planos de saúde no Brasil e do desembolso direto no México, que se manteve o mais elevado no período, bem como o seu crescimento na Argentina nos últimos anos (Figura 3).

Fonte: OMS (Repositório de Dados), 2017. http://apps.who.int/gho/data/node.home.

Figura 3 Participação dos gastos privados totais e dos gastos por desembolso direto no gasto total em saúde. Argentina, Brasil e México, 1995 a 2014. 

Considerações Finais

As políticas de saúde dos países estudados seguiram caminhos diferentes nas últimas décadas. Porém, os três mostraram elementos de dependência de trajetória, persistindo a estratificação social e mercantilização em saúde, sob características distintas. No Brasil, o SUS assegura o direito dos cidadãos à saúde, mas parte da população tem planos ou acessa serviços privados diretamente. Na Argentina e no México, a segmentação se expressa na convivência entre seguro social, programas públicos específicos, pagamento a planos e serviços privados. No México, a criação do Seguro Popular acentuou a segmentação e reiterou o sistema de saúde como elemento de estratificação social.

Em todos, a base corporativa da proteção social foi relevante na conquista de direitos e resistência às reformas pró-mercado. Porém, tendeu a manter a segmentação e a dificultar projetos universalistas na saúde. Em meio à tensão entre corporativismo e neoliberalismo, a ideia de direito universal perde espaço para a proposta de ‘cobertura universal de saúde’, que é consoante com as reformas no México e com a estratégia lançada em 2016 na Argentina.

No Brasil, a ruptura com o seguro social e a instituição do SUS foram fundamentais para a afirmação do direito, mas não suficientes para superar a estratificação e a força dos mercados em saúde. A contradição central é a coexistência de um sistema público forte, que favoreceu o acesso e as mudanças no modelo de atenção à saúde, com um setor privado dinâmico e em expansão, que mantém relações imbricadas com o sistema público e ameaça a sua viabilidade, ao disputar recursos do Estado e da sociedade.

O caráter da democracia e a orientação política dos governos importam. O México, nas três décadas, não teve governos progressistas e foi objeto de reformas neoliberais, com efeitos sobre a previdência e a saúde. Na Argentina e no Brasil, a presença de governos de centro-esquerda de 2003 a 2014 foi relevante para a contenção de reformas neoliberais e a adoção de políticas redistributivas, com a expansão de programas sociais e de saúde. Porém, não foi suficiente para o enfrentamento de problemas estruturais dos sistemas de saúde, que expressaram contradições e projetos em disputa. Recentemente, o retorno ao poder de governos de direita – na Argentina, pela via eleitoral; no Brasil, por impeachment presidencial – tem levado a retrocessos nos direitos sociais. Fragilidades na democracia se expressam em instabilidade institucional e descontinuidades nas políticas, manipulação pela mídia e perseguição a lideranças de esquerda.

Nos três países, obstáculos ao sistema público de saúde transcendem limites setoriais, se relacionando à sua identificação como mercados atraentes para empresas de saúde internacionais e nacionais. A disputa de grupos privados por recursos constrange os serviços públicos. Porém, sistemas de saúde com forte componente privado são fragmentados, caros, vulneráveis a ciclos econômicos e excludentes, especialmente em sociedades desiguais.

O desafio para as nações latino-americanas é construir um pacto em torno de um projeto de desenvolvimento soberano, democrático e orientado para garantir direitos sociais. Nessa perspectiva, o papel do Estado, em diálogo com diferentes grupos da sociedade, seria conter as forças de mercado, promover a redistribuição social, reduzir as desigualdades e expandir a cidadania universal.

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