versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.105 no.3 São Paulo set. 2015
https://doi.org/10.5935/abc.20150120
Aumentar equanimemente a qualidade assistencial em saúde, de forma sustentável, é um grande desafio do mundo contemporâneo. As governanças dos países necessitam buscar continuadamente soluções criativas e inteligentes para que os múltiplos subsistemas de saúde se alinhem de forma equilibrada com as necessidades e expectativas dos pacientes e da coletividade, mas que, ao mesmo tempo, sejam viáveis e sustentáveis. Países desenvolvidos utilizam ciência para avaliar a qualidade assistencial em saúde que está sendo oferecida e gerar informações que sirvam para melhorar os resultados verificados1. Políticas públicas embasadas em ciência é o paradigma corrente nesses países. No Brasil, a visão ideológica ainda parece prevalecer.
Pesquisa de resultados (outcomes research), pesquisa em sistemas de saúde (health service research) e ciência de implementação (implementation science) abrigam parte expressiva das temáticas relativas ao estudo científico da qualidade assistencial e sua relação com o sistema de saúde1, mas ainda necessitam de divulgação e incentivos institucionais para frutificarem no Brasil. De maneira geral, tais ramos dedicam-se a avaliar, de forma sistemática e metódica, aspectos variados relativos à estruturação dos sistemas de saúde, seus resultados finalísticos para pacientes e coletividade, relação médico-paciente, como tais resultados podem ser melhorados e como inovações devem ser implementadas. Desses, a pesquisa de resultados destaca-se por investigar os resultados finalísticos da assistência em saúde, focados pela perspectiva e pelo olhar dos resultados que interessam diretamente aos pacientes e à sociedade1.
A partir da Constituição Federal de 1998 (Constituição Cidadã) e da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1990, ficou garantido, em Carta Magna, que todos os brasileiros teriam direito ao acesso integral, universal e igualitário, além de gratuito, a serviços de saúde de qualidade. A partir daquela data, o Estado teria o dever de financiar, prover e operacionalizar a infraestrutura necessária para o cumprimento da Lei nº. 8.080/1990. O reconhecimento constitucional de que saúde é um direito universal foi um avanço ideológico substancial. No papel, o modelo de saúde pública idealizado para o Brasil passou a ser um exemplo para o mundo. Estima-se que aproximadamente 75% de brasileiros sejam dependentes do SUS e o restante possui cobertura complementar privada.
Se o objetivo é o de gerar informação relevante para iluminar a tomada de decisão referente às políticas públicas em saúde, devemos nos dedicar de forma sistemática a avaliar, pelo método científico, os resultados assistenciais do SUS. Entretanto, passados 25 anos da implantação do SUS, temos poucas evidências científicas, especialmente que representem o país continental que somos, quais são os resultados assistenciais finalísticos do SUS. Por exemplo, não dispomos de dados representativos sobre a mortalidade pós Infarto Agudo do Miocárdio, a taxa de indivíduos submetidos a tratamento de reperfusão ou a taxa de readmissão hospitalar em 30 dias. Mais ainda, sabemos muito pouco sobre o grau de disparidade existente entre os resultados assistenciais do SUS e da rede privada.
Escrutinizar o SUS e também o sistema complementar brasileiro, em nível nacional, pela ótica científica, será fundamental para a consolidação e construção de um sistema de saúde equânime, seguro, responsivo, acessível e eficiente. As iniciativas recentes da Sociedade Brasileira de Cardiologia em incentivar os registros nacionais devem ser aplaudidas, mas ainda são tímidas para transformar a saúde pública brasileira2.
O DATASUS poderia muito bem se prestar ao papel de vigilância da qualidade dos resultados assistenciais dos principais problemas nacionais de saúde. Contudo, de maneira generalizada, a insatisfatória qualidade na alimentação de dados e a falta de estudos que tenham validado o DATASUS, em nível nacional, como banco de dados fidedigno, são fatores que ainda limitam seu uso científico.
Nos EUA, dados administrativos do Medicare têm sido utilizados em inúmeros estudos de monitorização e vigilância dos macro-indicadores assistenciais nas principais entidades nosológicas cardiovasculares3-5 e prestado grande serviço para o conhecimento dos resultados assistenciais oferecidos aos americanos com idade ≥ 65 anos.
O conceito da necessidade imperativa de se avaliar constantemente os desfechos da prática assistencial no mundo real para promover melhoria contínua do sistema de saúde foi cristalizado na ideia do resultado final (end-result idea) por Ernst Codman (1910)6. Segundo Codman: "A ideia do resultado final exige que os resultados sejam constantemente analisados e que possíveis soluções para melhorá-los sejam constantemente consideradas".
A base teórica da "outcomes research" foi posteriormente refinada por Donabedian quando propôs um modelo conceitual7 no qual a qualidade do sistema de saúde poderia ser inferida pela abordagem de três domínios: estrutura, processo e resultados. O domínio "resultado" é aquele que mais captura a qualidade assistencial que interessa aos pacientes e à sociedade.
Em 1998, o termo "outcomes research" entrou na terminologia científica em publicação clássica na revista Science. Como definido por Clancy e Eisenberg, "outcomes research" investiga os efeitos das intervenções médicas e das políticas sobre os resultados que interessam diretamente aos indivíduos e à sociedade8.
Dez anos mais tarde (2008), "outcomes research" foi definitivamente reconhecida como uma área importante de investigação cardiovascular, quando a American Heart Association lançou a revista Circulation Cardiovascular Quality and Outcomes, editada por Krumholz e associados, endossando o emergente campo de pesquisa biomédica9.
A revista Arquivos Brasileiros de Cardiologia é o principal veículo da ciência cardiológica brasileira e representa a única sociedade de cardiologia nacional. Revisamos artigos originais publicados nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia nos últimos dois anos que abordaram o tema qualidade assistencial, com o intuito de apresentar exemplos de estudos com o potencial de contribuir e impactar os resultados assistenciais brasileiros.
Para tornar nossa investigação mais compreensiva, subdividimos o tema qualidade assistencial em alguns subtemas que interessam diretamente à pesquisa de resultados e outros que interessam especificamente ao Brasil, como por exemplo, foco no SUS1(Tabela 1). Não houve pretensão em se avaliar a qualidade do estudo publicado e nem seu potencial impacto em gerar recomendação de diretriz. Alguns estudos serviram de exemplo a mais de uma categoria.
Tabela 1 Artigos originais sobre qualidade assistencial nos ABC
Exemplos de estudos* | |
---|---|
Segurança | Eficácia e Segurança de Stents Eluidores de Drogas no Mundo Real: Acompanhamento de 8 Anos10 |
Linha temporal do cuidado, acesso, responsividade do sistema | Implantação da Linha de Cuidado do Infarto Agudo do Miocárdio no Município de Belo Horizonte11 |
Efetividade de um Protocolo Assistencial para Redução do Tempo Porta-Balão da Angioplastia Primária12 | |
Variabilidade na prática assistencial | Nenhum |
Efetividade | Estratégia Antitrombótica nos Três Meses Iniciais após Implante de Bioprótese Valvar Cardíaca13 |
Custo | Itinerário de Investigação do Paciente Coronariano do SUS em Curitiba, São Paulo e Incor - Estudo IMPACT14 |
Disparidade | Evolução de Indicadores Socioeconómicos e da Mortalidade Cardiovascular em três Estados do Brasil15 |
Assistência Centrada no Paciente /Autonomia / Decisão Compartilhada | Nenhum |
Resultados institucionais | Experiência Inicial de Dois Centros Nacionais no Implante de Prótese Aórtica Transcateter16 |
Registros sobre doença específica | Registro Brasileiro das Síndromes Coronárias Agudas (ACCEPT)2 |
Estudo BREATHE - I Registro Brasileiro de Insuficiência Cardíaca17 | |
Comportamento da Síndrome Coronariana Aguda. Resultados de um Registro Brasileiro18 | |
Foco no SUS | Itinerário de Investigação do Paciente Coronariano do SUS em Curitiba, São Paulo e Incor - Estudo IMPACT14 |
Embora não tenhamos realizado avaliação quantitativa sistemática, de maneira geral, percebemos que há uma notória escassez de investigações que abordem diretamente o tema qualidade assistencial do sistema de saúde brasileiro.
Nosso levantamento, restrito aos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, sugere que o país necessita aumentar a produção científica capaz de nortear políticas públicas na área cardiovascular. Nessa temática, o uso de ciência importada tem limitação crítica e pode enviesar a tomada de decisão. Conhecer, de forma sistêmica, os resultados assistenciais brasileiros será essencial na elaboração e priorização da agenda de políticas públicas regionais e nacionais.
Temos um longo caminho à frente e ao menos dois desafios muito bem definidos se apostarmos no papel da ciência como lastro da tomada de decisão referente às políticas públicas em saúde, a saber: 1) produzir ciência nacional de alto nível que represente a qualidade assistencial brasileira; e 2) convencer as governanças em nível federal, estadual e municipal de que a ciência é uma ferramenta fundamental para iluminar as tomadas de decisão referentes à implantação de políticas públicas.
Isso exigirá investimentos substanciais: 1) na formação intelectual de pesquisadores especializados; 2) na melhoria da qualidade do DATASUS como banco de dados para pesquisas em todos os estados brasileiros; 3) na criação, estruturação e consolidação de grupos cooperativos de pesquisa; e 4) no fomento contínuo da produção científica nacional.
Para a comunidade científica cardiovascular brasileira, especialmente os pesquisadores mais jovens, essa lacuna da ciência brasileira pode representar uma grande oportunidade de abraçar uma linha de pesquisa que tem todo o potencial de impactar e beneficiar substancialmente o Brasil e os brasileiros.