versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622
Epidemiol. Serv. Saúde vol.25 no.1 Brasília jan./mar. 2016
http://dx.doi.org/10.5123/s1679-49742016000100017
O consumo de álcool representa um grande desafio social, econômico e de saúde a afetar milhões de pessoas em todo o mundo. Não existe uma solução única para esse complexo problema, a que se somam as dificuldades específicas de diferentes governos em lidar com a questão do consumo do álcool e implementar as medidas necessárias para diminuí-lo entre suas populações.
A informação epidemiológica e biológica mais consistente disponível foi compilada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).1 O consumo de álcool é um dos fatores de risco mais relevantes para a saúde da população mundial.2,3 O consumo per se - não só o consumo excessivo - correlaciona-se com a mortalidade geral.1,4 O álcool (ou etanol) é uma substância psicoativa com efeitos em praticamente todos os órgãos do corpo: intoxicante, tóxica em nível celular e em tecidos, com efeitos imunossupressores (associados ao risco para infecção pelo vírus da imunodeficiência humana [HIV], tuberculose e pneumonia),5,6 teratogênicos (pode levar à síndrome fetal pelo álcool e outros problemas fetais, atribuídos ao uso de álcool pela mulher na gestação) e carcinogênicos, ademais da possibilidade de causar dependência e outras doenças mentais, e até aumentar o risco de suicídio.1
O consumo do álcool está associado a mais de 200 códigos diferentes da 10ª Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10),1,7 associado a problemas agudos e crónicos, distribuídos entre o espectro de bebedores embora mais concentrados entre os que são dependentes; e mais prevalentes entre os que não o são, ou seja, aqueles que consomem esporadicamente e em excesso. Isso significa que o impacto total do consumo de álcool para a Saúde Pública se deve não apenas aos dependentes, como também aos muitas vezes considerados "bebedores sociais".8
Extensas análises8,9 revelam que as medidas mais efetivas para reduzir os problemas relacionados ao álcool são aquelas que consideram toda a população consumidora, independentemente de sexo, idade, status socioeconômico e nível de consumo. Em outras palavras, é necessário reduzir o consumo per capita da população, não apenas a dependência e o "abuso" do álcool.
As consequências do consumo de álcool vão além dos danos à saúde do consumidor. Os danos causados pelo álcool atingem familiares, vizinhos, colegas e demais pessoas de seu convívio social, possíveis vítimas do consumo de outra pessoa e não do próprio. Entre essas decorrências, incluem-se o absenteísmo, comparência, diminuição da renda familiar, desemprego na família (para cuidar de um familiar com problemas advindos do consumo de álcool), violência, destruição da propriedade pública e/ou privada, abuso e negligência, aumento dos gastos com saúde (pela família e pelo Estado), impacto na saúde mental dos familiares (depressão, ansiedade, traumas de infância devidos a negligência e abuso, entre outros), ocorrência de lesões no trabalho, no trânsito, em casa e em locais públicos.10,11 Os danos estendem-se ao feto, atribuídos ao consumo de álcool durante a gestação, levando a complicações pré-parto e à manifestação de doenças fetais específicas, sendo a mais grave a síndrome fetal pelo álcool.12
Mesmo sem uma estimação de todos os custos envolvidos no consumo de álcool por país ou no mundo, é razoável prever que eles sejam elevados para consumidores, familiares, sociedade e governos. Esses custos, onde foram estimados (e.g. Estados Unidos da América, Inglaterra, União Europeia),13-15 são muito maiores que os lucros auferidos da venda de bebidas alcoólicas, incluídos os empregos gerados, os impostos arrecadados e o desenvolvimento econômico resultante.
Revisões sistemáticas da literatura científica e estudos desenvolvidos em vários países1,8,16 apontam para uma conclusão similar: onde existe consumo de álcool é onde se encontram os problemas (o que de certo modo é óbvio, embora pouco levado em conta nas discussões sobre políticas públicas). Onde a bebida alcoólica é proibida, os problemas são muitíssimo menores que em países onde o produto é legal. Nos países onde o álcool é uma droga legal, o consumo pela população é diretamente proporcional à mortalidade e à morbidade. Não há país no mundo onde o efeito total do álcool na saúde seja positivo. Os efeitos "positivos" do consumo de álcool (a famosa frase de que o vinho faz bem para o coração) têm muito pouca relevância para a Saúde Pública,17 a despeito de tais "benefícios" serem amplamente promovidos na mídia e pela indústria de álcool.
A realidade é que onde houver menor disponibilidade de álcool para consumo, a ocorrência de problemas será menor. Isto não quer dizer que seja politicamente possível ou desejável proibir o consumo de álcool e sim - mais que isso, necessário - controlá-lo. Nesse sentido, as medidas mais custo-efetivas são aquelas implementadas mediante políticas públicas e regulação governamental,8,9 restringindo a disponibilidade econômica, física e social de bebidas alcoólicas.
A atuação sobre a disponibilidade econômica inclui o aumento dos impostos, e consequentemente dos preços, visando a redução do consumo. Assim se fez recentemente no Brasil, para vinhos e destilados: Lei no 13.241, de 30 de dezembro de 2015.18 As bebidas com maior teor alcoólico deveriam ser mais caras (por unidade de consumo), de modo a facilitar o consumo daquelas menos concentradas. Todavia, cabe destacar que o principal objetivo das políticas públicas deve ser, sempre, diminuir o consumo total de álcool, em todas as bebidas; portanto, o maior consumo de bebidas menos concentradas, caso da cerveja, é tão prejudicial quanto o consumo equivalente de outros tipos de bebida. Promoções de descontos de tipo happy hour ou open bar, vendas a crédito ou em grandes quantidades para consumidores individuais, oferta gratuita em eventos, entre outras medidas promocionais, incentivadoras da compra e consumo de cerveja e outras bebidas, aumentam os riscos de consequências negativas para a saúde. A cerveja é a bebida alcoólica mais consumida no Brasil e, de modo geral, na América Latina, vendida a preço mais acessível e sujeita a regulação mínima. Contudo, essa bebida carrega os mesmos riscos de danos mencionados em epígrafe. Grande parte dos problemas causados pelo álcool no Brasil são atribuídos à cerveja.
Outra área de atuação política efetiva diz respeito à disponibilidade física das bebidas alcoólicas. O cenário estatutário mais restritivo (considerando onde as bebidas alcoólicas são legalizadas) é o do monopólio governamental de vendas ao público: sendo o governo o único autorizado a vender álcool (à exceção de locais específicos para esse consumo, como bares e restaurantes), ele pode determinar o preço, a quantidade, a localização dos pontos e os horários de venda e/ou consumo, melhor controlar sua venda a menores de idade, além de regulamentar a publicidade de bebidas alcoólicas. Vendas em supermercados, postos de gasolina, postos de serviço, farmácias etc. podem ser proibidas, limitando o acesso ao álcool fora de bares e restaurantes. O sistema de licenças para venda de bebidas ao público limita seu acesso, estabelece condições sanitárias e de segurança mínimas para a venda de bebidas, enquanto a legislação correspondente deve prever penalidades para a venda a menores e pessoas alcoolizadas. Também podem ser definidos os locais onde o consumo é permitido, excluindo certos lugares e ambientes públicos (praias, edifícios públicos, praças, eventos culturais e esportivos de massa, estádios desportivos etc.), implicando menores riscos de atos violentos e consequentes traumatismos. A determinação de uma idade mínima para a compra e consumo de álcool é imprescindível; entretanto sua efetividade depende da rigorosa aplicação e fiscalização das leis.
A disponibilidade social refere-se ao controle do marketing, este compreendido como patrocínio, publicidade em todos os meios e para todas as bebidas, e promoção do consumo de álcool (inclusive pela internet e celulares). A proibição total de bebidas alcoólicas é a medida com maiores chances de impacto, mais fácil de fiscalizar. O marketing contribui com a percepção do consumo de álcool como necessário para o alcance da felicidade, entretenimento, acesso a cultura, êxito pessoal e - inclusive - saúde mental. Modificar a aceitação social do álcool é um passo importante no sentido de criar condições para uma escolha mais consciente do cidadão, especialmente dos jovens, sem a pressão social pelo consumo, baseada em fatos e não em mitos difundidos pela publicidade.
Diversos estudos documentam a ineficácia da autorregulação por parte da indústria,19 demonstrando a necessidade de medidas estatutárias. A noção de que beber e embriagar-se é a melhor maneira de lidar com situações da vida comum, entreter-se e atuar no convívio social resulta de um marketing massivo e agressivo. O mesmo marketing que há anos desvirtua reconhecidos símbolos da cultura do país, como o carnaval e o futebol. O patrocínio de eventos culturais e esportivos pela indústria também contribui para essa "naturalização" do consumo do álcool. A publicidade de bebidas alcoólicas é desenvolvida com base em conhecimentos acumulados da psicologia e das neurociências, buscando associar sentimentos positivos com esse consumo. Crianças de pouca idade já reconhecem marcas de bebidas e querem experimentá-las o quanto antes, muitas vezes encorajadas pelos pais; estes, por sua vez, são sugestionados pelos mesmos anúncios publicitários e têm pouco conhecimento de como seu próprio comportamento pode ser manipulado pelos meios de comunicação. Conforme revelam indicadores de morbimortalidade no Brasil e no mundo, a situação real é outra, grave e triste, contudo pouco visível e compreendida, entre a população geral.
O poder de influência da indústria de álcool na formulação e implementação de políticas públicas é fator decisivo para a inercia governamental. Seria necessário, por exemplo, impor limites ao patrocínio campanhas políticas por essas indústrias, de modo a tornar o debate sobre o álcool mais justo, com a participação e contribuição consciente e equilibrada da sociedade e seus representantes. As organizações não governamentais, as sociedades científicas e de profissionais de saúde poderiam assumir um papel importante nessa tarefa, mais além da defesa da Saúde Pública: monitorar as ações da indústria de bebidas, cada vez mais empenhada em "demonstrar" sua contribuição para reduzir os danos causados pelo consumo de álcool - ao mesmo tempo que, movida pelo lucro, a mesma indústria necessita expandir seus mercados e vendas, incentivando maior consumo e "recrutando" novos consumidores. Certamente, essa lógica de mercado cria um conflito de interesses com a Saúde Pública e as ações resultantes não contribuem para a minimização dos problemas causados pelo álcool.
Os agentes públicos necessitam de independência para tomarem decisões, de modo que o bem da Saúde Pública se sobreponha aos princípios e valores comerciais. Sem necessariamente proibir o consumo, é possível reduzi-lo, assim como os danos a ele associados, com importantes ganhos para a Saúde e a Economia.