versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.35 no.8 Rio de Janeiro 2019 Epub 12-Ago-2019
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00085919
Inúmeros avanços ao longo dos últimos 100 anos, principalmente no acesso a novas tecnologias, a bens e serviços, atendimento médico e ampliação da disponibilidade de medicamentos, propiciaram um expressivo aumento na expectativa de vida da população mundial. Isso tem colocado o envelhecimento populacional como uma das transformações globais de maior importância à vida humana. No entanto, algumas nações, principalmente aquelas de baixa e média renda, irão experimentar esse aumento na expectativa de vida e, consequentemente da população idosa, em uma velocidade jamais observada, quando comparadas ao mesmo fenômeno em países europeus e norte-americano. Desse modo, essas nações terão de se preparar rapidamente para lidar com uma crescente carga de doenças muito comuns em idades mais avançadas 1.
Atualmente, estima-se que 12% da população do planeta têm mais de 60 anos, e projeções para o fim deste século estimam que esta população representará 21,5% da população mundial. Será a primeira vez na história humana que haverá mais pessoas idosas do que pessoas mais jovens 2. Nesse contexto, o envelhecimento cognitivo e as patologias resultantes desse processo representam um grande desafio para o envelhecimento saudável. É importante ressaltar que o envelhecimento cognitivo normal passa por um processo natural e dinâmico, que envolve modificações no funcionamento biológico (molecular, celular, tecidual e orgânico), psíquico (dimensões cognitivas e psicoafetivas) e social 3,4,5. Dessa maneira, o envelhecimento saudável pode ser acompanhado por certo grau de diminuição das reservas cognitivas, mas que não chega a interferir substancialmente nas atividades do dia a dia. Em outros casos, nos quais o envelhecimento cognitivo não é bem-sucedido, observa-se um declínio mais acentuado da cognição, que pode estar ligado a fatores extrínsecos ao indivíduo, tais como sedentarismo, tabagismo, baixa escolaridade, consumo de álcool e drogas, e exposição à poluição do ar.
Nos últimos 40 anos, os estudos que investigaram os impactos dos poluentes lançados na atmosfera, principalmente no ambiente urbano, são unânimes em associar que quanto maior e por mais tempo um indivíduo for exposto aos poluentes do ar, maior será o risco dele desenvolver processos inflamatórios, doenças associadas ao sistema respiratório e problemas cardiovasculares. Na maioria das vezes, idosos e crianças são os mais suscetíveis ao desenvolvimento dessas patologias. Seguindo as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), diversos países adotaram limites de concentração de poluentes do ar mais rigorosos. Porém, ainda hoje, 91% da população mundial residem em cidades onde a qualidade do ar excede os limites sugeridos pela OMS 2. Como consequência, em 2016, 8% de todas as mortes no mundo foram atribuídas à exposição aos poluentes atmosféricos, principalmente em grandes centros urbanos, que têm sua emissão principal originária do tráfego veicular. Coletivamente, os poluentes do ar são constituídos por uma mistura complexa e diversa de elementos químicos com capacidade para causar danos ou desconfortos em seres humanos. Dessa maneira, esses poluentes são hoje a segunda principal causa de mortes por doenças não transmissíveis, atrás apenas do consumo de tabaco, que diferentemente da exposição aos poluentes atmosféricos ambientais, pode ser evitado pelo indivíduo. No Brasil, apesar das limitações de dados, estima-se que 66 mil óbitos são atribuídos anualmente à exposição aos poluentes do ar 2. No entanto, esse número de pode ser ainda maior, visto que projeções para os próximos 15 anos apenas para o Estado de São Paulo afirmam que se nada for feito, a exposição aos poluentes do ar, serão a causa de 250 mil óbitos, um milhão de internações a um custo de 1,5 bilhão de reais apenas no Estado de São Paulo 6,7.
Em relação aos efeitos deletérios da poluição atmosférica no desempenho cognitivo, em uma coorte contendo 2,1 milhões de pessoas na cidade de Ontário, Canadá, encontrou-se associação positiva entre o material particulado fino (MP2,5), mesmo em baixas concentrações, e a incidência de demência 8. Na Suécia, um estudo realizado com 1.806 voluntários adultos encontrou associação positiva entre os poluentes atmosféricos e o aumento da incidência de demência e doença de Alzheimer 9. Em Taiwan, dois estudos de coorte, sendo o primeiro com 96 mil voluntários e um segundo estudo com 30 mil, identificaram que a exposição aos poluentes dióxido de nitrogênio (NO2), material particulado fino (MP2,5), ozônio (O3) e monóxido de carbono (CO) também esteve associada ao aumento da incidência de demência 10,11. Em conjunto, esses estudos sugerem que a exposição prolongada aos poluentes do ar, principalmente aqueles relacionados ao tráfego veicular nos grandes centros urbanos, como o material particulado, apresentam associação positiva com o declínio cognitivo e maior incidência de demência 12,13. Essa é uma associação biologicamente plausível, visto que, uma vez no organismo, esses poluentes podem desencadear inflamação crônica e sistêmica, além de causar danos diretamente ao sistema nervoso 14,15,16,17,18,19.
Por fim, é importante ressaltar que antes de os indivíduos apresentarem demência, ocorre um processo insidioso de comprometimento cognitivo, que a princípio não é grave o suficiente para levar à perda funcional e interferir em sua qualidade de vida. Entretanto, esse comprometimento cognitivo é de grande importância para diagnosticar precocemente fatores de risco para a demência em idades mais avançadas 1,20.
O Brasil e seus vizinhos latino-americanos estão em um processo de envelhecimento populacional acelerado e irreversível. Além disso, um grande número de países tem cidades com limites de emissão de poluentes do ar em desacordo com os sugeridos pela OMS 2. Ao mesmo tempo, projeções para 2030 afirmam que 63% da população mundial com demência residirão em países de baixa e média renda 1. Desse modo, estudos que busquem identificar e compreender possíveis fatores de riscos ambientais e sua influência no processo de envelhecimento cognitivo patológico em indivíduos adultos jovens e de meia idade são de suma importância para evitar tais desfechos no futuro. Portanto, a pesquisa sobre como a exposição crônica aos poluentes do ar interfere em processos neurodegenerativos em populações jovens e idosas, adquire elevada importância em um ambiente com crescente aumento da expectativa de vida e elevada emissão de poluentes atmosféricos.
A relação entre a exposição aos poluentes do ar e os desfechos neurodegenerativos ainda não está bem estabelecida, mas já é considerada uma preocupação mundial. Diversas nações, entre elas a maior parte dos países latino-americanos, ainda carecem de dados e estudos que busquem entender essa associação em suas realidades, o que indica uma lacuna de grande importância a ser preenchida. Nesse sentido, espera-se que nos próximos anos o Brasil e outros países latino-americanos avancem no entendimento referente à associação entre os poluentes do ar e desfechos cognitivos, visando a minimizar o impacto dessa associação, para propiciar ao indivíduo um envelhecimento mais saudável em ambientes urbanos.