versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.108 no.6 São Paulo jun. 2017
https://doi.org/10.5935/abc.20170021
A ponte miocárdica é uma das mais prevalentes anomalias congênitas que envolve a circulação coronária, sendo a sua incidência na população geral elevada, atingindo de 23 a 55% em estudos de necropsia.1 É mais frequente o comprometimento da artéria descendente anterior, nos seus 2/3 proximais.1 Na maioria dos pacientes, as pontes miocárdicas não apresentam sintomas pois, para haver isquemia, é necessário que exista um desequilíbrio entre a oferta e o consumo de oxigênio. As pontes superficiais, com banda muscular pequena ou delgada, são as mais comuns, podendo corresponder a 75% dos casos, com comprimento médio de 1,5 cm e, geralmente, não apresentam sintomas. Em cerca de 24% dos casos, observamos pontes miocárdicas profundas, com banda muscular de maior espessura.1,2
A aterosclerose é a causa mais comum de cardiopatia isquêmica, entretanto outras causas de isquemia são frequentes e, dentre elas, destacamos a ponte miocárdica, que pode provocar angina de peito típica ou atípica, infarto agudo do miocárdio e morte súbita.3-5
A angiotomografia das artérias coronárias é uma técnica diagnóstica de crescente importância na avaliação da ponte miocárdica, com alta resolução especial e temporal. Esta técnica de imagem não invasiva é uma ferramenta muito útil na localização e definição da morfologia da ponte miocárdica.6
Descrevemos o caso de uma paciente com isquemia miocárdica detectada pela cintilografia miocárdica, em que o mecanismo determinante para presença da alteração perfusional foi uma ponte diagnosticada pela angiotomografia das artérias coronárias que também confirmou o defeito perfusional pela avaliação das imagens de perfusão em repouso e sob estresse farmacológico.
Paciente feminina, 52 anos, apresentando dor torácica atípica, com índice de massa corporal de 26,5, diabética, hipertensa, dislipidêmica, fazendo uso de AAS, BRA, Insulina, Metformina. Foi encaminhada para o setor de medicina nuclear com o pedido de cintilografia do miocárdio para a pesquisa de isquemia.
A paciente foi convidada a participar do projeto de pesquisa nº 392.966, aprovado pelo comitê de ética, que tem como objetivo comparar os achados perfusionais do exame de medicina nuclear com os da angiotomografia das artérias coronárias em repouso e sob estresse farmacológico. A paciente realizou protocolo específico de cintilografia do miocárdio (Figura 1) em um aparelho Gama Câmara de 1 colimador (Millenium MPR, GE) e tomografia computadorizada de 64 detectores (Brilliance, Philips), para avaliação do escore de cálcio, perfusão miocárdica de repouso e estresse, associado à avaliação anatômica coronariana. A aquisição de estresse foi realizada após infusão de dipiridamol na dosagem de 0,56 mg/kg, em 4 minutos; no 6 minuto, foi administrado 25 mci de 2-metoxi-isobutil-isonitrila-99 mTc (sestamibi-99mTc). Logo no mesmo minuto, foram adquiridas as imagens de perfusão sob estresse farmacológico pela angiotomografia (Figura 2) e com infusão de contraste iodado na dosagem de 70 ml sob a velocidade de fluxo de 5 ml por segundo. As imagens da cintilografia de perfusão miocárdica etapa estresse foram adquiridas 30 a 90 minutos após a administração do radiofármaco.
Figura 1 Cintilografia do miocárdio com 2- metoxil- isobutil- isonitrila-99mTc (sestamibi-99mTc) utilizando-se protocolo (repouso-estresse), com dose de 25 mCi em cada etapa. As imagens cintilográficas revelam hipoperfusão nos segmentos ântero-apical e látero-apical do ventrículo esquerdo nas imagens pós-estresse com melhora completa da captação em relação as imagens em repouso.
Figura 2 Tomografia computadorizada cardíaca de 64 canais etapa esforço e repouso, revela defeito de perfusão nos segmentos ântero-apical e látero-apical do ventrículo esquerdo nas imagens pós-estresse com perfusão normal no repouso.
As imagens cintilográficas de estresse demonstraram defeitos perfusionais reversíveis no território da artéria descendente anterior. A tomografia computadorizada de perfusão confirmou a presença dos defeitos perfusionais e não evidenciou presença de lesão aterosclerótica em artérias coronarianas. Uma significativa ponte miocárdica constringindo a artéria descendente anterior foi diagnosticada pela angiotomografia das artérias coronárias (Figura 3), configurando o mecanismo mais provável para os defeitos perfusionais observados.
Figura 3 AngioTC miocárdica demonstrando presença de ponte miocárdica de 34,3 mm, na projeção da artéria descendente anterior, sendo responsável pela área de defeito perfusionalnos segmentos ântero-apical e látero-apical do ventrículo esquerdo, descritos na cintilografia e tomografia computadorizada do miocárdio.
A ponte miocárdica ainda apresenta diversos desafios à prática clínica, pois pode ocorrer em pacientes nos quais a doença aterosclerótica é incomum. Isto leva, em inúmeras situações, a não realização do diagnóstico pela baixa probabilidade pré-teste destes pacientes. Por ser um fator conhecido de isquemia miocárdica, a ponte miocárdica pode dificultar a correlação clínica quando associada à doença aterosclerótica, dificultando o planejamento da melhor conduta terapêutica e de acompanhamento destes pacientes. No caso das pontes miocárdicas, o mecanismo responsável pelos sintomas é incerto e controverso. A irrigação do miocárdio ventricular ocorre, quase exclusivamente, durante a diástole, e a ponte reduz a luz da artéria, na grande maioria dos casos, somente durante a sístole, sendo assim não é fácil explicar a fisiopatologia da isquemia miocárdica.7
Dentre as diversas hipóteses, podemos citar a distorção da artéria intramiocárdica durante a sístole, provocando isquemia miocárdica. A presença de sintomas somente nos indivíduos, cujas pontes miocárdicas são longas e profundas, corrobora essa hipótese. Este mecanismo poderia ser agravado quando houvesse aumento do consumo de oxigênio pelo miocárdio. O aparecimento do espasmo coronariano na artéria descendente anterior, no seu trajeto intramiocárdico, após a injeção intracoronária de acetilcolina, parece ser outra hipótese, sugerindo haver disfunção endotelial localizada naquele segmento, parecendo ser esta a razão do aparecimentodos sintomas somente na 4ª ou 5ª década de vida, época em que ocorrem alterações no tônus vascular.8,9 A lesão endotelial também está implicada na formação de trombos na porção proximal à ponte miocárdica.10
O diagnóstico através do exame clinico é difícil justamente porque os sintomas são praticamente iguais aos da doença coronariana aterosclerótica. Estudos funcionais avaliando o efeito da ponte miocárdica sobre o fluxo sanguíneo miocárdico demonstram que a sua restrição ocorre tanto durante a sístole quanto na diástole e que há uma associação com isquemia miocárdica reversível demonstrada pela cintilografia ou pela tomografia por emissão de pósitrons.11 O estresse farmacológico vasodilatador pode não se associar à isquemia, pois não há aumento da contratilidade e consequente compressão sistólica coronariana.11 A angiotomografia (angioTC) das coronárias é um exame que permite visualizar a anatomia cardíaca, especialmente das artérias coronárias, além de analisar a parede dos vasos, a presença de placas e o diâmetro e curso das artérias. Barros e colaboradores demonstraram que a angioTC tem elevada acurácia na avaliação morfológica da ponte miocárdica, permitindo uma abordagem não invasiva de sua localização, extensão e profundidade, bem como da presença de aterosclerose associada.12 A associação da angioTC de coronária com o estudo funcional da perfusão miocárdica sob estresse com dipiridamol permite uma melhor definição do significado fisiológico e clínicos desta condição, conforme observado no caso em questão, em que há significado funcional.12
O prognóstico, na maioria dos casos de ponte miocárdica, é bom, após o início do uso de medicamentos, mas existem relatos de morte súbita em jovens ao praticar exercícios. O tratamento medicamentoso consegue controlar os sintomas na grande maioria dos casos, podendo ser feito utilizando betabloqueadores e antagonistas dos canais de cálcio, propiciando melhor enchimento da coronária comprometida durante a diástole, reduzindo a frequência cardíaca em repouso e os esforços. Os nitratos podem agravar os sintomas anginosos e a isquemia, quando usados em pacientes com ponte miocárdica, pois esse medicamento promove redução do retorno venoso e da pressão arterial, com consequente estimulação adrenérgica, aumentando a constrição sistólica da banda miocárdica sobre a artéria coronária. Atualmente, o tratamento preferencial das pontes miocárdicas tem sido medicamentoso, pois este, em doses adequadas, consegue controlar os episódios de angina na maioria dos pacientes.12,13
Acreditamos que a angiotomografia das artérias coronárias, quando utilizada com protocolo em repouso e sob estresse farmacológico, poderá agregar informações úteis para o manejo do paciente com dor precordial sem doença coronariana obstrutiva significativa, seja diagnosticada pelo cateterismo, ou por qualquer outro método de caracterização da isquemia, como demonstramos pela cintilografia no presente caso.