versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.35 no.6 Rio de Janeiro 2019 Epub 30-Maio-2019
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00246818
Em outubro de 2018, o U.S. Food and Drug Administration (FDA) realizou uma ação na sede da empresa fabricante dos cigarros eletrônicos da marca Juul, onde milhares de documentos foram apreendidos por suspeita de que a empresa estivesse realizando práticas direcionadas a induzir jovens a consumirem estes produtos de tabaco 1.
Essa ação foi parte da resposta da agência reguladora americana ao que pode ser considerada uma epidemia do uso de dispositivos eletrônicos para fumar entre estudantes dos níveis Médio e Fundamental nos Estados Unidos. Dentre os estudantes do nível Médio o uso de cigarros eletrônicos aumentou de 1,5% em 2011 para 20,8 % em 2018, sendo 2017 o ano do aumento mais significativo 2. Entre os estudantes do Ensino Fundamental o uso desses produtos saltou de 0,6% em 2011 para 4,9% em 2018 2. Em resumo, praticamente 1 em cada 5 estudantes americanos do Ensino Médio usa cigarros eletrônicos, em sua maioria produtos com diversos sabores e majoritariamente da marca Juul 2. Esse significativo aumento observado em 2017 estaria associado à popularização dessa marca no mercado americano 2.
Os motivos da grande popularidade desses produtos entre os estudantes é seu formato, a possibilidade de serem usados discretamente, terem altas concentrações de nicotina e sabores atrativos 3.
O formato pequeno e retangular do produto, apresentando diversas cores, lembrando um pen drive, com carregamento via porta USB, além de atraente, também é discreto. A carga do produto é feita por meio de “pods”, que contêm a quantidade de nicotina equivalente a 20 cigarros (um maço) 4,5.
Em comparação com os demais cigarros eletrônicos, os “pods” utilizados pelo Juul têm um potencial aditivo muito superior, causando uma sensação fisiológica semelhante àquela experimentada por fumantes de cigarros convencionais. Esse produto utiliza nicotina tratada com ácido benzóico (resultando nos sais de nicotina, sua forma natural na folha de tabaco) e para entregar ao usuário concentrações até 10 vezes maiores de nicotina do que os outros cigarros eletrônicos, que usam a nicotina de base livre (freebase) em suas formulações 5. Outros fabricantes, possivelmente inspirados pelo sucesso comercial do Juul, também começaram a adotar os sais de nicotina em seus produtos 4.
É interessante lembrar que a indústria do tabaco tem um histórico de manipulação dos níveis de nicotina nos cigarros, com técnicas que iam desde a adição de amônia nos cigarros para aumentar a nicotina de base livre, até a utilização de variedades de plantas modificadas que produziam altas concentrações de nicotina (tabaco Y-1) 6,7, entretanto, a utilização destes sais em dispositivos eletrônicos para fumar não têm precedentes. Um estudo inclusive sugere que o Juul teria um potencial aditivo para jovens maior que outros cigarros eletrônicos e até mesmo os cigarros comuns 8.
Assim como outros dispositivos eletrônicos para fumar, o Juul apresenta diversos sabores, como por exemplo, creme brûlée, manga e mentol, o que torna este produto ainda mais atrativo para os jovens, da mesma forma que os sabores são utilizados nos cigarros convencionais para facilitar a iniciação e consequentemente a dependência à nicotina 9. Em cigarros eletrônicos foram descritos cerca de 8 mil sabores 10.
Essa combinação de fatores levou um número considerável de jovens escolares norte-americanos à dependência da nicotina. Considerando ainda que cigarros eletrônicos podem ser a porta de entrada para o uso de cigarros, pois os jovens que utilizam estes produtos correm um risco, após 1 ano de uso, pelo menos 4 vezes maior de começar a fumar cigarros comuns e também apresentar risco aumentado de consumo futuro da maconha 11,12,13,14,15.
Outra controvérsia que cerca estes produtos e em relação ao seu uso como auxiliar ao tratamento da cessação, pois apesar de alguns dados sugerirem um possível aumento nas taxas de cessão, os dados publicados ainda não são suficientes para afirmar que os cigarros eletrônicos seriam um método efetivo para parar de fumar 16. Contudo a Inglaterra, entende que estes produtos poderiam ser usados para a cessação, que estariam contribuindo para a redução da prevalência do tabagismo e que teriam menor risco que os cigarros convencionais 17.
Entretanto, o relatório que subsidiou o posicionamento do governo Inglês foi duramente criticado em um editorial da revista The Lancet18 por usarem referências não científicas 19, usarem poucas referências 18, por problemas na formação dos grupo de especialistas consultados 18, ignorarem ressalvas colocadas em uma referência 20 e a principal referência utilizada possuir conflito de interesses 18. O que indica o tamanho da controvérsia que ainda cerca estes produtos.
No Brasil, a prevalência de uso desses produtos é muito baixa 21 em decorrência da proibição desde 2009. Contudo, a comercialização on-line desses produtos tem sido comum, e apesar da proibição, até mesmo grandes lojas de departamento vendem o Juul, e outros dispositivos eletrônicos para fumar, livremente para crianças e adolescentes, e mesmo as ações e multas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) parecem não inibir estas lojas.
Dados apontam que a redução dos números de fumantes ficou estagnada, e o mais grave é que a prevalência de fumantes entre jovens de 18 a 24 anos residentes nas capitais brasileiras aumentou de 7,4% para 8,5% 22 entre 2016 e 2017.
Um dos fatores que possivelmente pode ter contribuído para o aumento do número de fumantes jovens seja a comercialização disseminada desses produtos pela Internet.
Dessa forma, esses produtos podem reverter em pouco tempo as políticas de controle do tabaco, caso medidas regulatórias mais restritivas não sejam tomadas.
Mesmo considerando que a proibição dos dispositivos eletrônicos para fumar efetivamente protegeu o Brasil da epidemia de Juul entre os jovens, deve ser considerada a tomada de ações mais restritivas contra a venda desses produtos, assim como se buscar meios de impedir que os grandes conglomerados de comércio varejista continuem a desafiar as autoridades de saúde para que esses produtos não revertam a bem-sucedida política de controle do tabaco no Brasil.