versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.108 no.3 São Paulo mar. 2017
https://doi.org/10.5935/abc.20170039
A revisão da necessidade do jejum para determinação do perfil lipídico (colesterol total, LDL-C, HDL-C, não-HDL-C e triglicérides [TG]) baseia-se nas seguintes justificativas:
Como o estado alimentado predomina durante a maior parte do dia, o paciente está mais exposto aos níveis de lipídes nesta condição em comparação ao estado de jejum. Portanto, a condição pós-prandial pode representar mais eficazmente o potencial impacto dos níveis lipídicos no risco cardiovascular de um indivíduo.
As dosagens no estado pós-prandial são mais práticas, viabilizando maior acesso do paciente ao laboratório, com menor perda de dias de trabalho, abandono de consultas médicas por falta de exames e maior acesso à avaliação do risco cardiovascular.
A coleta de sangue no estado pós-prandial é mais segura em diversas situações e pode ajudar a prevenir a hipoglicemia por uso de insulina em pacientes com diabetes mellitus, ou por jejum prolongado no caso de gestantes, crianças e idosos, minimizando intercorrências e aumentando a adesão para realização de exames e o comparecimento às consultas médicas.
As determinações do colesterol total, HDL-C, não-HDL-C e LDL-C não diferem significativamente se realizadas no estado pós-prandial ou de jejum. Há aumento nos níveis de TG no estado alimentado; porém, este aumento é pouco relevante desde que se considere uma refeição usual não sobrecarregada em gordura, havendo a possibilidade de se ajustar os valores de referência.1-7
Com a flexibilidade do jejum para o perfil lipídico, há maior amplitude de horários, reduzindo assim o congestionamento nos laboratórios, especialmente no início da manhã, o que traz mais conforto para o paciente.
Com os avanços tecnológicos nas metodologias diagnósticas, os principais ensaios disponíveis mitigaram as interferências causadas pela maior turbidez nas amostras, decorrentes de elevadas concentrações de TG. Contudo, há potenciais limitações, especialmente referentes ao cálculo da LDL-C, onde estudos de desempenho entre diferentes metodologias têm demonstrado a necessidade de revisão das práticas de utilização das fórmulas adotadas.
Com o processo de flexibilização do jejum na coleta da amostra para avaliar o perfil lipídico, algumas recomendações clínicas e laboratoriais são importantes.
Coleta de amostra sem jejum para o perfil lipídico: poderá ser realizada pelo laboratório com a presença da informação do estado de jejum, no momento da coleta da amostra, no laudo laboratorial.
Solicitação médica sem definição do tempo de jejum e que não contenha outros exames sabidamente requerentes de jejum: recomenda-se incluir o tempo informado de jejum no momento da coleta no laudo laboratorial.
Presença na mesma solicitação de outros exames que necessitem de jejum: o laboratório clínico poderá definir que o perfil lipídico seja coletado com jejum de 12h quando outros exames laboratoriais, solicitados na mesma requisição, também necessitem desse período de jejum. Recomenda-se que o laboratório especifique a necessidade ou não do jejum para cada exame: sem jejum, com jejum de 12h, ou conforme a definição do laboratório.
Quando houver a indicação de um tempo específico de jejum: se na solicitação do médico houver um tempo específico de jejum, o laboratório deverá seguir tal recomendação. Poderá ser utilizado o cálculo de horas de jejum pelo "SIL" (Sistema de Informação Laboratorial) com base na informação do tempo da última refeição.
Quando os níveis de TG no estado pós-prandial se encontrarem > 440 mg/dL ou na presença de situações especiais como recuperação de pancreatite por hipertrigliceridemia ou no início de tratamento com drogas que causem hipertrigliceridemia grave, será recomendado ao médico solicitante a prescrição de uma nova avaliação de TG com jejum de 12h e será considerado este teste como sendo um novo exame de TG pelo laboratório clínico.1
Quando ocorrer a segunda coleta de amostra para TG: ficará a critério de cada laboratório clínico, dependendo de seu sistema e estratégia, utilizar o mesmo código ou outro específico para o exame de TG sem jejum e TG com jejum de 12h.
O laudo laboratorial é de responsabilidade do laboratório clínico e de seu responsável técnico. Com o intuito de alinhamento e harmonização entre as instituições, recomenda-se a adoção das seguintes informações no laudo:
os valores referenciais e de alvo terapêutico do perfil lipídico (adultos > 20 anos) de acordo com a avaliação de risco cardiovascular estimado pelo médico solicitante estão descritos na Tabela 1.1,8,9
Tabela 1 Valores referenciais e de alvos terapêuticos para adultos > 20 anos conforme avaliação de risco cardiovascular do paciente pelo médico solicitante do perfil lipídico
Com jejum (mg/dL) | Sem jejum (mg/dL) | Categoria referencial | |
---|---|---|---|
Colesterol total* | < 190 | < 190 | Desejável |
HDL-C | > 40 | > 40 | Desejável |
Triglicérides** | < 150 | < 175 | Desejável |
Categoria de risco | |||
LDL-C | < 130 < 100 < 70 < 50 |
< 130 < 100 < 70 < 50 |
Baixo Intermediário Alto Muito alto |
Não-HDL-C | < 160 < 130 < 100 < 80 |
< 160 < 130 < 100 < 80 |
Baixo Intermediário Alto Muito alto |
*Colesterol total > 310 mg/dL: considerar a probabilidade de hipercolesterolemia familiar;
**Quando os níveis de triglicérides estiverem acima de 440 mg/dL (sem jejum), o médico solicitante deverá fazer uma nova requisição para a avaliação de triglicérides com jejum de 12h e o laboratório clínico deverá considerar este teste como sendo um novo exame de triglicérides.
Inserção de observação no laudo referenciando que os valores de perfil lipídico devem ser interpretados conforme avaliação e evolução clínica do paciente. Recomenda-se a seguinte frase: "A interpretação clínica dos resultados deverá levar em consideração o motivo da indicação do exame, o estado metabólico do paciente e a estratificação do risco para estabelecimento das metas terapêuticas".
Os valores referenciais desejáveis do perfil lipídico para crianças e adolescentes são indicados na Tabela 2.10,11
Tabela 2 Valores referenciais desejáveis do perfil lipídico para crianças e adolescentes
Lípides | Com jejum (mg/dL) | Sem jejum (mg/dL) |
---|---|---|
Colesterol total* | < 170 | < 170 |
HDL-C | > 45 | > 45 |
Triglicérides (0-9 anos) ** | < 75 | < 85 |
Triglicérides (10-19 anos) ** | < 90 | < 100 |
LDL-C | < 110 | < 110 |
*Colesterol total > 230 mg/dL: considerar a probabilidade de hipercolesterolemia familiar;
**Quando os níveis de triglicérides estiverem acima de 440 mg/dL (sem jejum) o médico solicitante deverá fazer uma nova requisição para avaliação de triglicérides com jejum de 12h e o laboratório clínico deverá considerar este teste como sendo um novo exame de triglicérides.
Pacientes com diabetes e sem fatores de risco ou sem evidência de aterosclerose subclínica devem manter o nível de LDL-C abaixo de 100 mg/dL. Pacientes com fatores de risco ou doença aterosclerótica subclínica devem manter o nível de LDL-C abaixo de 70 mg/dL. Pacientes com história de infarto agudo do miocárdio; acidente vascular cerebral (AVC); revascularização coronariana, carotídea ou periférica; ou história de amputação devem manter o nível de LDL-C abaixo de 50 mg/dL.12,13
Fica a critério do laboratório a inclusão de uma observação específica para o rastreamento da hipercolesterolemia familiar (HF). Recomenda-se a utilização da seguinte frase: "Valores de colesterol total ≥ 310 mg/dL em adultos ou ≥ 230 mg/dL em crianças e adolescentes podem ser indicativos de hipercolesterolemia familiar, se excluídas as dislipidemias secundárias".14
A avaliação do LDL-C pode ser realizada por dosagem direta ou estimada por cálculo com base nas fórmulas de Friedewald15 ou de Martin.16 Recomenda-se que os laboratórios clínicos adotem as seguintes orientações:
Observar, na utilização da fórmula de Friedewald, as limitações da falta de jejum e de valores de TG > 400 mg/dL para estimar o LDL-C, podendo nestes casos ser aplicada a fórmula de Martin, ou utilizada a dosagem direta.
Na coleta de amostra pós-prandial, a avaliação do LDL-C pode ser realizada por dosagem direta ou cálculo através da fórmula de Martin.16
Incluir o cálculo do não-HDL-C junto aos demais resultados do perfil lipídico para adultos, mesmo sem jejum, pois os níveis de TG não interferem neste cálculo. Fica a critério do laboratório reportar ou não o cálculo do VLDL-C.
A principal finalidade desse documento é padronizar condutas clínicas e laboratoriais em relação à flexibilidade do jejum na avaliação do perfil lipídico em todo território nacional, contribuindo para que os médicos e os laboratórios clínicos tenham segurança em suas tomadas de decisões, com o respaldo de evidências científicas.