versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.25 no.6 São Paulo 2013 Epub 25-Nov-2013
http://dx.doi.org/10.1590/S2317-17822013.05000009
A surdez é uma patologia que inviabiliza a recepção íntegra do sinal acústico pelo córtex auditivo, pois reduz a quantidade de ondas sonoras que estimulam as vias auditivas( 1 ). Quando em grau profundo, ela é capaz de afetar a personalidade, o relacionamento e todo o estilo de vida do indivíduo( 2 ).
A maturação normal das vias auditivas centrais é uma condição precedente para o desenvolvimento normal da fala e da linguagem em crianças. Estes achados são possíveis graças ao fenômeno de plasticidade neural( 3 ), que permite a maturação cerebral necessária ao desenvolvimento da linguagem oral( 4 - 6 ). A estimulação auditiva adequada durante a infância permite que o córtex passe por mudanças e reorganizações, as quais possibilitarão o desenvolvimento da habilidade de discriminação dos sons que chegam ao sistema auditivo central( 7 - 9 ).
Com os avanços tecnológicos e científicos das últimas décadas, o implante coclear (IC), ou ouvido biônico, deixou de ser um instrumento apenas de investigação científica, tornando-se um efetivo recurso clínico capaz de melhorar a qualidade de vida de adultos e crianças com deficiência auditiva neurossensorial bilateral de graus severo e/ou profundo bilateral.
Em crianças com deficiência auditiva de grau severo e/ou profundo bilateral, as quais não apresentaram resultados significativos para o desenvolvimento das habilidades auditivas com a utilização da amplificação convencional, o IC pode ser indicado como proposta de intervenção( 10 ).
Este dispositivo eletrônico de sofisticada tecnologia tem como objetivo substituir parcialmente a função sensorial do órgão da audição por meio da estimulação direta das fibras do nervo auditivo, fornecendo aos seus usuários a possibilidade de conhecer ou reconhecer o mundo sonoro( 11 ).
Os benefícios do IC, principalmente no que se refere à língua oral, dependem da estimulação auditiva necessária para o desenvolvimento da percepção de fala dentro de um período crítico( 12 - 14 ). As camadas mais profundas do córtex podem passar por processos de maturação mesmo na ausência de estimulação, porém as mais superficiais exigem estimulação das vias auditivas durante um período crítico, provavelmente entre três e seis anos de idade, para que a maturação possa ocorrer adequadamente( 15 ). Após o período crítico, são percebidas anormalidades do desenvolvimento da plasticidade sináptica, resultando em uma conectividade anormal entre as células neuronais, desintegração funcional e imaturidade das áreas auditivas corticais; e, consequentemente, algumas áreas auditivas passam a desenvolver funções não auditivas, havendo anormalidades na reestruturação das funções cognitivas( 16 ).
Atualmente, os serviços de Audiologia têm disponibilizado técnicas objetivas e subjetivas para a avaliação das habilidades auditivas e de linguagem por meio de testes específicos que devem ser aplicados de acordo com a idade e nível de desenvolvimento da criança. Eles auxiliam tanto no processo de decisão para a instalação do dispositivo eletrônico quanto no de adequação dos parâmetros de programação necessários para o funcionamento efetivo do IC.
Uma maneira de medir objetivamente o grau de desenvolvimento e os limites da plasticidade da via auditiva central é examinar as mudanças na morfologia e nos valores de latência dos potenciais evocados auditivos corticais (PEACs) com componente P1-N1-P2( 13 , 17 ).
A onda P1 do PEAC foi estabelecida como um biomarcador para avaliar a maturação do sistema auditivo central em crianças. Sendo assim, essas medidas podem auxiliar na verificação da efetividade da reabilitação auditiva em crianças usuárias de aparelhos de amplificação sonora individual (AASI) e ou IC( 17 ).
Com o uso do IC, a tendência é que as conexões sinápticas sejam mais estimuladas e que os resultados obtidos neste procedimento se modifiquem. A diminuição gradual das latências é resultado do aumento gradual na velocidade de transmissão neural, relacionado a alterações de mielinização e ao aumento na sincronização sináptica( 18 , 19 ).
Considerando que o desenvolvimento e a organização das vias auditivas centrais em crianças estão intimamente relacionados a uma experiência auditiva efetiva, a utilização dos PEACs como procedimento capaz de refletir, sobretudo, as atividades das regiões talâmicas e corticais, parece ser potencialmente válida para a determinação da integridade da via auditiva e para o monitoramento das mudanças neurofisiológicas na população com deficiência auditiva após a intervenção e estimulação auditiva por meio do IC( 20 ).
Analisar as modificações na morfologia e nos valores de latência do PEAC em crianças usuárias de IC por meio de uma revisão sistemática de literatura.
A primeira etapa consistiu na elaboração da pergunta para a pesquisa bibliográfica: "Quais as características na morfologia e/ou na latência da onda P1 dos potenciais evocados auditivos corticais por meio da estimulação elétrica via IC?".
A revisão sistemática da literatura científica consistiu na busca de estudos nos idiomas português e inglês, publicados nos últimos dez anos (entre janeiro de 2002 e junho de 2013). As bases de dados utilizadas foram Lilacs, PubMed Medline, Science Direct e SciELO.
Como descritores para a pesquisa foram utilizados: eletrofisiologia, implante coclear, criança, plasticidade neuronal e audiologia, com os seus correspondentes para a língua inglesa (electrophysiology, cochlear implantation, child, neuronal plasticity e audiologia).
Os critérios de inclusão dos estudos foram: artigos completos, cujos participantes eram crianças, usuárias de IC, submetidas ao exame dos PEACs e que respondiam à pergunta da pesquisa.
Os critérios de exclusão foram artigos de opiniões de especialistas, revisão de literatura, resumos em anais de congressos, cartas e comentários.
A avaliação para a inclusão dos estudos foi realizada por dois revisores; as divergências foram resolvidas por meio de discussão. Os dados foram obtidos por um autor e checados por outro autor. Num primeiro momento, a seleção foi realizada com base nos títulos e resumos. Os trabalhos foram lidos na íntegra e analisados de acordo com a metodologia utilizada e os resultados dos PEACs.
Foi realizada uma análise dos estudos, verificando os aspectos relacionados ao objetivo da pesquisa, a metodologia utilizada, os resultados obtidos (morfologia e latência da onda P1, quando especificadas) e a conclusão de cada estudo.
Como resultado da busca, foram encontrados 256 estudos distribuídos nas bases de dados. Dentre esses, 34 estudos foram encontrados em mais de uma base de dados e excluídos. Dentre os 222 títulos selecionados, 14 não puderam ser recuperados, por não estarem disponíveis para o acesso eletrônico livre; no total, foram recuperados 208 artigos. Os títulos e resumos dos 208 artigos foram lidos; dentre esses, 195 não foram selecionados por não se enquadrarem em um ou mais critérios definidos e, consequentemente, por não responderem à pergunta da pesquisa (Figura 1). Um total de 13 estudos sobre PEAC em crianças usuárias de IC foi selecionado e lido na íntegra (Quadro 1).
Verificou-se a presença de poucos estudos na literatura que discutem sobre os potenciais auditivos corticais em usuários de IC; no entanto, as análises dos mesmos indicam semelhanças entre si.
Dentre os estudos encontrados observou-se que a abordagem metodológica contemplou desde estudo de dois casos até estudos transversais com a inclusão de 79 sujeitos, com idades variando entre um e 19 anos. Foram encontrados cincos artigos que descreveram estudo de casos. Dentre estes, três estudos de dois casos( 5 , 13 , 21 ), um artigo que avaliou três casos(22) e um que analisou quatro casos( 23 ). Oito estudos avaliaram um número maior de sujeitos: de 14 a 79 sujeitos( 18 , 20 , 21 , 24 - 29 ). Dentre estes, apenas três apresentaram grupo controle( 18 , 28 , 29 ).
No que tange aos aspectos do tipo de estudo, foram encontrados sete estudos longitudinais( 5 , 21 - 25 , 29 ) e seis transversais( 13 , 18 , 20 , 26 - 28 ).
Cinco estudos combinaram os resultados dos testes eletrofisiológicos dos PEACs com avaliações comportamentais, indicando que a diminuição da latência de P1 correlaciona com a melhora dos comportamentos comunicativos (vocalizações)( 5 ); com a melhora nas habilidades de fala e linguagem( 22 ); e com a melhora na percepção de fala das crianças( 13 , 26 , 29 ).
Ainda comparando a avaliação eletrofisiológica e comportamental, outro artigo analisou os valores do componente P1 com os resultados da reabilitação dividindo as crianças usuárias de IC em dois subgrupos: com reabilitação adequada (uso efetivo do IC e terapia fonoaudiológica com abordagem aurioral três vezes por semana) e com reabilitação inadequada (não usavam efetivamente o IC e não compareciam regularmente às sessões de terapia). Observou-se que no primeiro grupo os valores de latência eram menores, ao passo que a amplitude da onda era maior em relação ao segundo grupo. Os autores concluíram que a avaliação dos PEACs pode ser uma ferramenta clínica útil para verificação da reabilitação auditiva( 27 ). A análise dos mesmos permite concluir que a diminuição nos valores de latência de P1 em crianças que recebem o IC reflete diretamente na velocidade de reorganização cortical, e que a maturação das vias auditivas proporciona o desenvolvimento das habilidades auditivas e linguísticas mais rapidamente.
Os resultados obtidos pelos estudos selecionados têm demonstrado, de maneira geral, uma diminuição nos valores de latência do componente P1 por meio do uso do IC, o que coloca a análise dos PEACs como uma ferramenta útil na verificação da maturação cortical em crianças implantadas, podendo ser utilizada como um biomarcador capaz de avaliar o desenvolvimento das vias auditivas corticais e auxiliar na conduta cirúrgica e no monitoramento da reabilitação auditiva( 21 , 22 , 27 ).
Apesar disto, a apresentação dos valores da latência da onda não está claramente relatada. Na maioria dos estudos descritos, os valores de latência são apresentados por gráficos. Essa prática, embora didática, impossibilita descrever com precisão os valores da latência de P1. Da mesma forma, não há um critério específico para caracterizar a morfologia da onda, o que dificultou a descrição deste aspecto.
Dentre os 13 estudos selecionados, nove apresentam os valores de latência do componente P1 em gráficos( 5 , 13 , 20 - 23 , 25 , 28 , 29 ). Quatro estudos descreveram em tabelas os valores de latência encontrados. Em um deles, a latência do componente P1 em grupo de crianças precocemente implantadas, ou seja, menores que 3 anos e 5 meses de idade, apresentou valores médios de 378 ms no momento da ativação e de 137 ms após 12-18 meses de uso do IC; e, em um grupo de crianças tardiamente implantadas, ou seja, maiores do que sete anos de idade, a média dos valores de latência do componente P1 foi de 245 ms na ativação e de 148 ms após 12-18 meses depois da ativação dos eletrodos( 24 ). No segundo estudo, a latência do componente P1 foi analisada em três grupos de sujeitos com idades entre um e 17 anos: um grupo de ouvintes, cujos valores encontrados foram de 61 a 122 ms, diminuindo conforme a idade aumentava; um grupo de crianças surdas antes da ativação dos eletrodos do IC, nas quais os valores de latência foram observados entre 110 a 198 ms; e, por fim, um grupo de crianças já usuárias de IC, apresentado valores de latência entre 65 a 135 ms( 18 ). No terceiro estudo analisou-se uma população de crianças entre quatro e 11 anos diagnosticadas com Neuropatia Auditiva, já usuárias de IC, e verificou-se a latência do componente P1 em média de 97 e 134 ms para crianças com desempenho bom e ruim nos testes de percepção de fala, respectivamente( 26 ). Por último foram observados valores de latência em média de 94 e 129 ms para crianças com reabilitação adequada ou não, respectivamente( 27 ).
Nos estudos nos quais foram descritos os valores de latência do componente P1, observou-se que os dados sugeridos na literatura são muito variáveis. Estes valores, em sujeitos com até 17 anos, variaram de 110 a 378 ms antes da ativação do IC e de 65 a 148 ms após experiência auditiva por meio do uso deste dispositivo.
No que tange aos aspetos relacionados à morfologia do traçado, foram encontrados oito artigos que descrevem este parâmetro. Cinco deles descrevem a presença de uma negatividade precedendo a onda P1 observada em crianças surdas, que por sua vez, vai diminuindo em latência e amplitude até desaparecer completamente de acordo com a experiência de uso do IC. Os estudos apresentam valores variáveis, porém próximos, quanto ao tempo de experiência com o IC para que o traçado se adeque ao esperado para a idade: três meses; oito meses; seis a oito meses de estimulação em crianças precocemente implantadas e, em crianças tardiamente implantadas, o início da diminuição da latência e amplitude desta negatividade se dava após 12 a 19 meses; três a seis meses; três meses e meio; e, ainda, seis meses de uso do IC( 5 , 20 - 22 , 25 , 29 ). Um penúltimo estudo descreve a presença do componente P1 normal e com grande amplitude em crianças com reabilitação adequada, ao contrário de em crianças sem reabilitação adequada, em que o traçado é caracterizado com ondas polifásicas( 27 ). Já um último estudo, que também analisa a morfologia do traçado, observou que as respostas dos usuários de IC, embora evoluam no decorrer do tempo, ainda permanecem diferentes dos resultados das crianças ouvintes, mesmo após dez anos de experiência auditiva via IC( 29 ).
Dois aspectos importantes muito discutidos na literatura pesquisada são a diminuição na latência do componente P1 com relação ao tempo de uso e a idade na ativação do IC.
Oito estudos analisaram a variável em relação ao tempo de uso do IC( 5 , 18 , 20 , 22 , 23 , 25 , 28 , 29 ). Dentre estes, sete estudos observaram diminuição da latência do componente P1 à medida que a experiência auditiva aumenta. Por outro lado, o outro estudo( 18 ) observou que embora as latências de P1 pareciam estar menos atrasadas em um grupo de crianças usuárias de IC em comparação a outro grupo de crianças ainda não implantadas, esta diferença não foi estatisticamente significante; os autores justificaram este achado às diferenças individuais de cada sujeito e sugerem novos estudos que comparem o mesmo indivíduo nos dois momentos: pré e pós-cirúrgico.
Com relação à idade da ativação, quatro estudos relacionaram a diminuição do componente P1 com a idade na ativação e o tempo de uso do IC( 13 , 21 , 24 , 29 ). No primeiro foi comparado o traçado de duas crianças, sendo que uma foi implantada precocemente e a outra tardiamente. Nesta, o traçado observado e a latência da onda estava anormal com ondas polifásicas, e naquela o componente estava dentro da normalidade. No segundo foram observados dois grupos de crianças, implantadas precocemente e tardiamente, sendo que o primeiro alcançou os valores esperados para a normalidade após quatro meses de estimulação e o segundo manteve a latência de P1 atrasada mesmo após 13 meses de estimulação via IC. O terceiro demonstrou que, no momento da ativação, as crianças implantadas precocemente apresentam as latências do componente P1 mais atrasadas do que as implantadas tardiamente; no entanto, estas tiveram diminuição da latência de P1 mais lenta do que aquelas, ao passo que após 12 a 18 meses de uso do IC a mesma se tornou semelhante entre ambos os grupos, e a morfologia ainda não estava adequada nas crianças tardiamente implantadas. Dentre estes estudos, observou-se que a principal conclusão encontrada é a existência de um período crítico em que a estimulação auditiva deve ser iniciada para obtenção do maior grau de eficácia clínica. As crianças implantadas antes dos dois anos de idade apresentaram latências do componente P1 normais, enquanto as implantadas mais tarde mostraram latências atrasadas( 29 ).
Um último aspecto analisado diz respeito à latência do componente P1 em casos de implante bilateral observados em três artigos. Em um deles, o foco foi no tempo de ativação: quando o IC é ativado precocemente há uma rápida modificação na latência( 21 ). Os outros dois analisaram a diferença entre o implante bilateral realizado de modo sequencial e simultâneo( 23 , 25 ). Observou-se que as crianças que recebiam o IC sequencialmente apresentavam valores de P1 dentro da normalidade após três a seis meses de uso do primeiro implante e após um mês de uso do segundo; já as crianças implantadas simultaneamente atingiam os valores da normalidade após um mês de estimulação; e, nas duas situações, os sujeitos alcançavam valores esperados para a idade após 3,5 meses de uso do IC.
Observou-se que em casos de IC bilateral, não há consenso sobre qual conduta (sequencial ou simultânea) é mais efetiva à maturação cortical e, consequentemente, qual modo sugeriria valores de latência da onda P1 mais rapidamente próximos à normalidade; porém, o que se pode concluir é que todos defendem a existência de um período crítico para maior eficácia no tratamento.
A presente revisão permitiu observar que há poucos estudos, principalmente nacionais, que descrevem as modificações ocorridas no sistema nervoso auditivo central após o uso do IC por meio do registro dos PEACs.
Apesar disto, por meio da análise dos estudos encontrados, verificou-se que há consenso na literatura de que o uso do IC pode proporcionar modificações nas vias auditivas centrais que podem ser registradas por meio da rápida diminuição dos valores de latência de P1 dos PEACs, principalmente quando a ativação do IC ocorre antes dos 3 anos e 6 meses de idade.
*LAFS foi responsável pela coleta e tabulação dos dados;MIVC acompanhou a coleta e colaborou com a análise dos dados; CGM e ACMC foram responsáveis pelo projeto e delineamento do estudo e orientação geral das etapas de execução e elaboração do manuscrito.