versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.109 no.6 São Paulo dez. 2017
https://doi.org/10.5935/abc.20170187
Estima-se que um entre três adultos nos Estados Unidos da América (EUA) tem algum tipo de Doença Cardiovascular (DCV), sendo o Infarto Agudo do Miocárdio (IAM) a principal condição. Nos EUA, estima-se que mais de um milhão de pessoas são vítimas de IAM ao ano.1 No Brasil, em 2011, 384.615 mortes foram atribuídas a DCV.2 Em 2010, a American Heart Association (AHA) propôs a avaliação de 7 métricas relativas à Saúde Cardiovascular (SCV) que, potencialmente, teriam grande impacto no controle das DCV. De acordo com o status de adesão ou controle, as métricas (cessação de tabagismo, dieta adequada, realização de atividade física, controle da massa corporal, pressão arterial, colesterol e glicemia sérica) foram divididas em: “ideal”, “intermediário” e “ruim”, com pretensão de reduzir em 20% as mortes por DCV nos EUA até 2020.3
Tal recomendação tem sido seguida em vários países com o objetivo de verificar a SCV de suas populações. Na China, pessoas com SCV “ideal” apresentaram mortalidade geral 30% menor comparado com os participantes com SCV “ruim”. Para a mortalidade específica por DCV, a redução foi de 39%.4 Na Coreia do Sul, a redução foi de 58% para todas as causas de mortalidade e 90% para DCV.5 No nosso meio, segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2013, foi verificado que apenas 1% da nossa população atingiu as sete métricas em nível “ideal”. Isoladamente, apenas 3,2% apresentaram dieta no melhor nível, seguida de atividade física (23,6%) e IMC (43,7%). As mulheres apresentaram maior prevalência em níveis ideais para tabagismo (89,5%). Melhores níveis para pressão arterial (77,7%) e para o Colesterol Total (CT) de 87,3% foram encontrados entre os homens.6
A maior parte da população brasileira, com ou sem DCV, tem seu acesso de saúde através do Sistema Único de Saúde (SUS). A Atenção Primária em Saúde (APS) constitui o primeiro contato de indivíduos no SUS, famílias e comunidades, trazendo os serviços de saúde o mais próximo possível dos lugares de vida das pessoas, sendo o primeiro elemento do processo contínuo de atenção.7 Para que a APS realize sua contribuição na prevenção e controle de doenças crônicas, além do aumento na quantidade de pessoas atendidas, é necessário melhoria do acesso, incentivo ao paciente da auto-gestão de sua saúde, capacitação da equipe de saúde, através da educação aos provedores e apoio aos gestores de saúde. É imperioso a interlocução com os outros níveis de atenção à saúde, facilitando o acesso a serviços de diagnóstico e tratamento especializados, assim como a implantação de sistemas eficientes para melhor registro e uso da informação, coordenação de medicamentos prescritos e acompanhamento dos resultados ao longo do tempo.8 Desta forma, é necessário examinar com minúcia o SUS e também o sistema de saúde complementar no Brasil, através de estudos científicos, para que haja a consolidação e construção de um sistema de saúde equânime, seguro, responsivo, acessível e eficiente.9
A ESF foi escolhida para ordenar a APS no SUS. Tem papel fundamental no primeiro contato da população com o SUS, na longitudinalidade e na coordenação do cuidado, devendo operar como base de estruturação das redes de atenção, com suporte dos serviços de apoio diagnóstico, assistência especializada e hospitalar.10 No entanto, existem muitas lacunas a serem preenchidas no cuidado das DCV através da ESF.
Entre usuários do Sistema de Cadastro para Hipertensos e Diabéticos (HIPERDIA), hoje incorporado ao sistema eletrônico da atenção básica (e-SUS AB), de uma cidade no Rio Grande do Sul, observou-se que os pacientes tinham baixo controle da pressão arterial e insuficiente adesão ao tratamento.11 Em Brusque, Santa Catarina, verificou-se, dentre pacientes usuários da ESF, que os níveis médios de CT se encontravam elevados em 30% maior que os níveis desejados. O Low Density Lipoproteins - Cholesterol (LDL-C) apresentava níveis de 50% acima do ideal, sendo em média limítrofes principalmente entre as mulheres.12 Em Ribeirão Preto, no Estado de São Paulo, entre usuários da ESF com DM, foi observado níveis de glicemia 60% acima do recomendado, assim como a Hemoglobina Glicada.13 Em Cuiabá, Mato Grosso, 17,7 % (1.402 usuários associados ao HIPERDIA) eram fumantes. A maioria (81,3%) desses pacientes sofreram IAM e 8% Acidente Vascular Encefálico (AVE), sem registro sobre o tratamento para tabagismo.14
Por outro lado, existem experiências bem-sucedidas e que atestam o potencial do programa no combate às DCV. Teixeira et al.,15 avaliaram método de intervenção nutricional educativa entre mulheres praticantes de atividade física em Aracaju, Sergipe. Houve mudança expressiva na alimentação, número de refeições realizadas ao dia e quantidade de alimentos consumidos a favor do grupo intervenção. Também foi observada redução do Índice de Massa Corpórea (IMC) em média 11,19 Kg/m2 Kg (p < 0,05).15 Rocha et al.,16 desenvolveram, no interior da Bahia, programa de atividade física na ESF. No grupo intervenção houve redução significante na Pressão Arterial Sistólica (PAS) média de 47,3 mmHg (p = 0,003), redução dos níveis de glicemia em 33,4 mg/dl e IMC em 1,1 Kg/m2 (p < 0,001).16
Em face da epidemia global das DCV, especialmente ocorrendo nos países em desenvolvimento, acreditamos que a ESF pode desempenhar um papel central, tanto na promoção de uma melhor SCV como no combate à DCV. A escassa literatura sobre o tema indica, na sua maioria, que o controle dos fatores biológicos e comportamentais relativos à SCV pela ESF está aquém do ideal. Entretanto, algumas experiências bem-sucedidas apontam para o potencial da ESF na luta contra as DCV.
Na atual fase do programa, seria muito salutar se a ESF começasse a ser melhor escrutinizada sobre a ótica da evidência científica. O ramo da pesquisa denominado Pesquisa de Serviços em Saúde se prestaria muito bem a esse fim. O incentivo de estudos buscando gerar evidências de qual o real impacto da ESF na saúde pública cardiovascular brasileira poderia alavancar melhorias sistêmicas constantes no programa e embasar políticas de saúde mais efetivas e eficientes que reduzam a perspectiva de aumento das DCV no nosso meio