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Práticas Corporais e Clínica Ampliada

Práticas Corporais e Clínica Ampliada

Autores:

Janaína Alves da Silveira Hallais,
Nelson Filice de Barros

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.10 Rio de Janeiro out. 2018

http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320182310.14932017

O livro Práticas Corporais e Clínica Ampliada é resultado da pesquisa de mestrado de Valéria Monteiro Mendes sob orientação de Yara Maria de Carvalho no Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade de São Paulo, realizada no Centro de Saúde Escola (CSE) Geraldo Paula Souza, localizado no distrito do Butantã, na cidade de São Paulo. Com 260 páginas, o livro está organizado em três capítulos que problematizam as formas de intervenção do educador físico no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), mais especificamente sobre os modos de produção de cuidado e de saúde, a partir da atuação em grupos de práticas corporais desenvolvidos nos serviços de atenção primária em saúde (APS).

Na Introdução são apresentadas as políticas e os programas do Ministério da Saúde e Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo que estabelecem a oferta das práticas corporais na rede de saúde pública, levantando questionamentos sobre o sentido de promoção da saúde, os caminhos percorridos durante a formação em Educação Física e o desafio do educador físico de desenvolver ações voltadas para a saúde ao invés de focar a intervenção somente na doença e no discurso normativo, pautado pelas lógicas preventivista, prescritiva e punitiva da racionalidade biomédica, bem como a necessidade em fortalecer o trabalho em rede com outros profissionais de saúde.

No capítulo Reflexões sobre a relação entre Educação Física e a produção de saúde é apresentada a revisão de literatura realizada em periódicos nacionais das áreas da Educação Física e da Saúde Coletiva, nas quais foram identificadas duas tendências de intervenção do educador físico no SUS: uma com ênfase na racionalidade biomédica (baseada na bioEducação Física) e a outra com ênfase no diálogo com a Saúde Coletiva (baseada nas práticas corporais). A primeira, predominante na prática profissional, compreende o corpo humano em uma dimensão biológica e funcional, focando o desempenho e culpabilizando o sujeito que não adere à prática regular de exercícios físicos. Dessa forma, reforça classificações e estigmas como “o sedentário”, “o gordo”, “o fumante”, “o diabético”, desvaloriza as subjetividades e as necessidades e desejos individuais e coletivos, bem como produz a “protocolização do cuidado” e a redução do conceito de promoção da saúde. A segunda tendência de intervenção do educador físico está pautada principalmente nas ciências humanas e sociais e contribui para ampliar a compreensão sobre o processo saúde-doença e redimensionar o cuidado, compondo novas possibilidades de “pensar e agir na produção de saúde”. Esta perspectiva está em sintonia com as práticas corporais, já que estas contemplam a “humanização do cuidado [e a] atenção integral da saúde (...) [contribuindo] para a ressignificação de competências e habilidades necessárias ao desenvolvimento de um trabalho intersetorial e multidisciplinar”.

A partir destes achados, as autoras defendem que a clínica ampliada dá suporte para uma efetiva redefinição no modo de intervenção do profissional de Educação Física no SUS, já que esta abordagem contempla o sujeito singular e seus diversos contextos de vida, não se fixando apenas no cuidado protocolar. Em acréscimo, as autoras afirmam que tal conjectura contribui para problematizar a hegemonia da racionalidade biomédica e sua prática clínica, convidando o profissional que atua na APS para construir espaços coletivos destinados à diversidade, escuta e coprodução de cuidado.

No capítulo 2, Metodologia, é descrito o processo de entrada e estabelecimento no campo da pesquisa, desde a negociação, passando pela redefinição do objetivo e das questões norteadoras da investigação, até as relações e parcerias desenvolvidas com os funcionários e os usuários do serviço de saúde escolhido. A pesquisa foi realizada através de uma intervenção com práticas corporais, como alongamento, relaxamento, massagem e consciência corporal, dentre outras técnicas advindas do planejamento da pesquisadora e também da demanda do próprio grupo ao longo dos encontros semanais. Os preceitos da Clínica Ampliada e Compartilhada e do Método da Roda conduziram o trabalho, priorizando parcerias com trabalhadores do serviço e valorizando o “conjunto de saberes, poderes e afetos” que permeiam o processo de trabalho em saúde.

No capítulo 3 são narrados os Caminhos de Passagem percorridos pela pesquisadora e pelo grupo, enfatizando a experimentação da Clínica Ampliada na pesquisa-intervenção. Em seu relato, a autora principal do livro revela as implicações dos papéis assumidos por ela (pesquisadora, educadora física e profissional de saúde) e os desafios, as inquietações, as descobertas e os desdobramentos das parcerias com trabalhadores e outros grupos do serviço. Sobre os caminhos percorridos pelo grupo de práticas corporais o relato contempla o coprotagonismo de participantes e os movimentos de cuidado individual e coletivo que surgiram dos encontros conduzidos pela pesquisadora, nos quais “o grupo foi se constituindo como um espaço de troca de saberes, de experiências e afetos” na medida em que as práticas corporais foram utilizadas enquanto um recurso que vai além da mera repetição de técnicas, efetivando-se, assim como uma potente ação de educação em saúde.

Em Considerações, as autoras sintetizam os atravessamentos da pesquisa, quais sejam: a ressignificação do processo de trabalho, o acolhimento, a interprofissionalidade, o vínculo e a autonomia, reiterando a discussão sobre a Clínica Ampliada e as práticas corporais como estratégias que contribuem para reorientar e qualificar as ações do educador físico na produção de cuidado em saúde no SUS, colocando-os diante da complexidade das demandas e dos atendimentos que são realizados na APS e convidando-os para refletir sobre as limitações do caráter disciplinador das práticas de saúde convencionais e a necessidade em superar modelos tradicionais de intervenção baseado em uma linguagem pastoral, culpabilizante e moralizadora. Para tanto, apontam que as ações do PET-Saúde se constituem como uma estratégia de aproximar a Educação Física do SUS, sendo também um importante enfrentamento ao modelo clínico-prescritivo que predomina o currículo deste campo de saber.

Apesar das autoras afirmarem o caráter dialógico da Clínica Ampliada e a necessidade em superar modelos tradicionais de intervenção baseado na doença e em uma linguagem culpabilizante e moralizadora, cabe uma reflexão quanto à centralidade da narrativa nos profissionais de saúde. Ao longo do livro, a ênfase sobre a interlocução, a troca de saberes e a inter-ação estão voltadas, majoritariamente, para as relações estabelecidas entre a pesquisadora e os trabalhadores do serviço. Assim, observa-se a construção de relações horizontalizadas e uma supervalorização do compartilhamento de ações entre os profissionais de saúde – os detentores do saber especializado – mantendo em segundo plano a relação profissional-paciente, que ainda é verticalizada e permeada, mesmo que em menor grau, pela hierarquia. Nesse sentido, o encontro em saúde segue mediado por uma pessoa autorizada, que está devidamente capacitada para “ensinar sobre questões da vida” para os indivíduos que trazem consigo apenas seus modos de ser e estar no mundo.

O livro contribui para refletir sobre a reorientação do habitus1 do educador físico no âmbito do SUS, quando este profissional incorpora à sua atuação outros saberes e modos de intervir advindos de diversos campos do conhecimento, além de evidenciar a potencialidade das práticas corporais na produção de cuidado, já que estas, contra-hegemônicas, ainda são consideradas atividades marginais dentro dos serviços de saúde. No entanto, para além da perspectiva da Clínica Ampliada, é fundamental que as práticas corporais sejam inquiridas pelos profissionais de saúde na perspectiva de convivialidade2, que diz respeito à “desinstitucionalização” da sociedade, através do livre acesso ao conhecimento, do aprendizado mútuo e da participação dos indivíduos na construção de saberes e sentidos, colocando o indivíduo no centro do cuidado à saúde (afinal, ele é cuidador em potencial!) e estimulando a produção de autoconhecimento e autonomia3.

REFERÊNCIAS

1. Ortiz R. Introdução - A procura de uma sociologia da prática. Ortiz R, organizador. Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática; 1983. p. 7-15.
2. Illich I. A convivencialidade. Lisboa: Publicações Europa-América; 1976.
3. Hallais JAS. Sociabilizando na prática: a sociabilidade entre usuários de práticas integrativas corporais na atenção primária [dissertação]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas; 2016.