versão On-line ISSN 2526-8910
Cad. Bras. Ter. Ocup. vol.26 no.4 São Carlos out./dez. 2018
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoar1162
As discussões acerca da Atenção Primária à Saúde (APS)1 foram intensificadas no cenário internacional a partir da década de 1970, decorrentes dos questionamentos que rondavam a organização da saúde. Tinha-se como proposta o modelo médico hegemônico especializado e intervencionista e desigualdade no acesso aos serviços de saúde existentes nos países desenvolvidos em relação àqueles considerados em desenvolvimento (CASTRO; MACHADO, 2010).
No Brasil, apesar de o estabelecimento de assistência à saúde com foco na Saúde Pública datar de 1916 e a implantação dos primeiros Centros de Saúde, de 1925, foi no início da década de 1980, com o processo de redemocratização do país, que houve um crescimento considerável da rede básica brasileira. A rede foi respaldada pela Conferência de Alma-Ata, ocorrida em 1978, que preconizava cuidados essenciais aos sujeitos para garantir saúde a todos (LAVRAS, 2011).
Na década de 1990, ocorreram importantes mudanças no cenário político do Brasil, decorrentes da Constituição de 1988 e também a partir da criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Ambos foram responsáveis pela consolidação da descentralização da saúde previdenciária e pela municipalização do sistema de saúde brasileiro (CAMPOS et al., 2008; CASTRO; MACHADO, 2010).
A consolidação do SUS foi respaldada pela compreensão da organização dos serviços de saúde mediante a articulação de uma rede de cuidados, com regulação e conhecimento do fluxo, tendo por objetivo acolher as necessidades dos usuários, gestores e sociedade determinadas por critérios econômicos, epidemiológicos e culturais. Além disso, a APS torna-se a reordenadora do sistema de atenção à saúde no Brasil (OLIVEIRA; PEREIRA, 2013).
Com a descentralização de recursos na saúde, alguns programas foram instituídos e regulamentados como parte da estratégia de consolidação e reorganização do SUS. Entre eles, está o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), que hoje é compreendido como uma transição para o Programa Saúde da Família (PSF) (BRASIL, 2010).
Criado pelo Ministério da Saúde em 1994, o PSF - posteriormente denominado Estratégia Saúde da Família (ESF) - pretendia ser um modelo específico de organização da Atenção Básica (AB). Trouxe como diretrizes a promoção e prevenção à saúde, o trabalho em equipe com base no território, a inclusão do agente comunitário em saúde, o perfil de um profissional com formação generalista, entre outras (CAMPOS et al., 2008).
Mais recentemente, os preceitos presentes nas políticas públicas destacam que a AB é desenvolvida com o mais alto grau de descentralização e capilaridade, ocorrendo no local mais próximo da vida das pessoas. Além disso, deve ser o contato preferencial dos usuários a principal porta de entrada e centro de comunicação com toda a Rede de Atenção à Saúde. Por isso, é fundamental que se oriente pelos princípios da universalidade, da acessibilidade, do vínculo, da continuidade do cuidado, da integralidade da atenção, da responsabilização, da humanização, da equidade e da participação social (BRASIL, 2012).
No que tange à saúde mental, observa-se nas últimas décadas um importante movimento político visando à transformação do modelo de atenção aos usuários em sofrimento psíquico, que prioriza ações voltadas a inclusão social, cidadania e autonomia das pessoas. Porém, há muitas barreiras que necessitam ser vencidas, dentre elas a superação do modelo biomédico e hospitalocêntrico no campo da saúde mental (CORREIA et al., 2011).
A Política de Saúde Mental atual, embasada pelas diretrizes da Reforma Psiquiátrica e do Movimento da Luta Antimanicomial, prevê o cuidado da pessoa com transtorno mental e sofrimento psíquico em seu território com base em diferentes equipamentos de atenção à saúde. Nesta direção, aponta-se que a AB é considerada a porta de entrada e ordenadora do acesso às Redes de Atenção à Saúde, compondo com os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) - principais serviços estratégicos na área - o papel de articulação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) (PINTO et al., 2012).
Ainda que as novas políticas de atenção psicossocial estejam focadas na inclusão da AB no cuidado à saúde mental, a trajetória de ambas - Saúde Mental e AB - teve seu percurso bastante distinto.
Atualmente, alguns estudos no campo da saúde mental têm sido realizados com enfoque na AB (CORREIA et al., 2011; VECCHIA; MARTINS, 2009; MARCOLINO et al., 2016; SILVA; CID; MATSUKURA, 2018) e sugerem maior visibilidade nos âmbitos político e assistencial no que tange à saúde mental na AB.
Em uma revisão integrativa de literatura que considerou o período de 2005 a 2009 e focalizou as ações realizadas pelos profissionais da equipe de saúde da família na atenção à saúde mental, Correia et al. (2011) identificaram 17 estudos que indicavam que as ações de saúde mental desenvolvidas na AB não apresentavam uniformidade em sua execução e dependiam do interesse de cada profissional ou da decisão política do gestor.
Já Silveira e Vieira (2009), com o objetivo de mapear as modalidades de atenção em saúde mental desenvolvidas numa unidade de saúde mista do município do Rio de Janeiro, verificaram que nas ações de saúde mental na AB ainda predominavam o modelo biomédico de organização da atenção à saúde, a psiquiatrização do cuidado em saúde mental, a burocratização do processo de trabalho e a centralização nas ações intramuros.
Há uma tendência relativa à inserção da AB como organizadora do cuidado nos sistemas de saúde tanto no Brasil como no cenário internacional. Porém, considera-se que a ênfase no Brasil ainda é recente, passando por ajustes e mudanças. Nesta direção, o Ministério da Saúde tem procurado expandir e reestruturar a AB principalmente por meio da Estratégia Saúde da Família (SOUZA, 2015).
Quanto à inserção da saúde mental, Souza (2015) aponta que o cuidado aos indivíduos em sofrimento psíquico deve sempre estar inserido na AB, uma vez que já em 1978, na Conferência de Alma-Ata, propôs-se que a atenção primária seria o ponto de atenção responsável pela solução dos principais problemas de saúde da população. O autor ressalta ainda que os problemas de saúde mental estão ganhando mais visibilidade no âmbito mundial, sendo um tema debatido com frequência na última década, reforçando a necessidade de expansão do cuidado a essa população por meio de dispositivos na AB (SOUZA, 2015).
Assim, compreende-se a importância de identificar o que tem sido produzido sobre as práticas de saúde mental na AB nos anos recentes, visando contribuir para essa discussão, assim como fornecer elementos para reflexões e debates no âmbito da assistência e das políticas públicas nacionais.
O presente estudo tem o objetivo de identificar e analisar o que tem sido produzido na literatura científica nacional sobre as práticas de cuidado em saúde mental na AB por meio de revisão integrativa da literatura.
Trata-se de um estudo de revisão integrativa da literatura científica nacional que possibilita resumir o passado da literatura empírica ou teórica, por meio da realização de uma análise ampla. Desta forma, visa contribuir para uma compreensão mais abrangente sobre um fenômeno e realização de estudos futuros (MENDES et al., 2008; BROOME, 2000).
A partir da escolha pela revisão integrativa, foram adotadas as seguintes etapas: identificação da questão norteadora; definição do objetivo específico; coleta de dados dentro dos critérios de inclusão e exclusão previamente estabelecidos; categorização; avaliação dos estudos incluídos; análise dos resultados; síntese do conhecimento (MENDES et al., 2008). Para tanto, formulou-se a seguinte questão: o que a literatura vem produzindo a respeito das práticas de cuidado em saúde mental na AB?
A busca foi realizada na base de dados Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), no período de setembro a outubro de 2015. Os descritores foram selecionados a partir dos Descritores em Ciências da Saúde (DECS), sendo utilizados na busca - saúde mental and atenção primária; saúde mental and atenção básica.
Utilizaram-se como critérios de inclusão estudos completos, disponíveis em meio eletrônico, em português, publicados entre 2010 e 2015, que abordassem no título, no resumo ou no corpo do texto práticas de cuidado no campo da saúde mental na AB.
Inicialmente foram identificados 318 artigos, dos quais 108 eram repetidos nos dois cruzamentos e outros 78 abordavam assuntos que se distanciavam da temática do estudo, como artigos sobre deficiências físicas, cognitivas e com enfoque em serviços especializados. Restaram 132 artigos dos quais, a partir da leitura do título e do resumo, foram selecionados 19, sendo, então, realizada uma leitura criteriosa e na íntegra, visando identificar achados e discussões que tratavam do assunto buscado.
Os artigos selecionados foram analisados e categorizados em planilhas do programa Excel.
Primeiramente são apresentados os dados relativos aos 19 artigos encontrados, sistematizados na Tabela 1 e Tabela 2 a seguir. Na sequência, na Tabela 3, constam os resultados e a discussão de seis categorias temáticas, identificadas após leitura aprofundada, relativas às práticas de cuidado em saúde mental na AB.
Tabela 1 Artigos selecionados no presente estudo.
Artigo | Título | Autores | Ano |
---|---|---|---|
1 | Saúde Mental: como as equipes de Saúde da Família podem integrar esse cuidado na AB? | GRYSCHEK, G.; PINTO, A. A. M. | 2015 |
2 | Práticas assistenciais em saúde mental na atenção primária à saúde: análise a partir de experiências desenvolvidas em Florianópolis, Brasil | FROSI, R. V.; TESSER, C. D. | 2015 |
3 | Práticas em saúde mental na estratégia saúde da família: um estudo exploratório | MARTINS, V. K. L. et al. | 2015 |
4 | Estratégias de cuidado e suporte em saúde mental entre mulheres assentadas | COSTA, M. A.; DIMENSTEIN, M.; LEITE, J. | 2015 |
5 | Apoio territorial e equipe multirreferencial: cartografias do encontro entre o apoio institucional e a redução de danos nas ruas e redes de Campinas, SP, Brasil | SOUZA, T. P.; CARVALHO, S. R. | 2014 |
6 | “Fui lá no posto e o doutor me mandou foi pra cá”: processo de medicamentalização e (des)caminhos para o cuidado em saúde mental na Atenção Primaria | BEZERRA, I. C. | 2014 |
7 | A articulação da rede de proteção à criança e a aplicação intersetorial do círculo de segurança como alternativas à medicalização | BECKER, A. L. N. M. M. et al. | 2014 |
8 | Saúde mental na AB: possibilidades para uma prática voltada para a ampliação e integralidade da saúde mental | MOLINER, J.; LOPES, S. M. B. | 2013 |
9 | O desafio da construção do cuidado integral em saúde mental no âmbito da atenção primária | LIMA, A. I. O. et al. | 2013 |
10 | Saúde-Doença Mental na atenção primária: uma prática assistencial em construção | COSTA, G. M. C.; CELINO, S. M.; COURA, A. S. | 2012 |
11 | Grupos de saúde mental na atenção primária à saúde | MINOZZO, F. et al. | 2012 |
12 | Fatores interferentes nas ações da equipe da Estratégia Saúde da Família ao portador de transtorno mental | PINI, J. S.; WAIDMAN, M. A. P. | 2012 |
13 | “Grupo” de artesanato: espaço favorável à promoção da saúde mental | SCARDOELLI, M. G. C.; WAIDMAN, M. A. P. | 2011 |
14 | Um estudo sobre a itinerância como estratégia de cuidado no contexto das políticas públicas de saúde no Brasil | LEMKE, R. A.; SILVA, R. A. N. | 2011 |
15 | A práxis da Saúde Mental no âmbito da Estratégia Saúde da Família: contribuições para a construção de um cuidado integrado | ARCE, V. A. R.; SOUSA, M. F.; LIMA, M. G. | 2011 |
16 | Saúde mental na AB: prática da equipe de saúde da família | CORREIA, V. R.; BARROS, S.; COLVERO, L. A. | 2011 |
17 | Desafios do cuidado em saúde mental na estratégia saúde da família | CAVALCANTE, C. M. et al. | 2011 |
18 | Processos de trabalho em saúde: práticas de cuidado em saúde mental na estratégia saúde da família | CAMURI, D. D.; DIMENSTEIN, M. | 2010 |
19 | Construção de um projeto de cuidado em saúde mental na AB | RAMOS, P. F.; PIO, D. A. M. | 2010 |
Tabela 2 Abordagem e natureza do estudo.
Abordagem do estudo | Número |
---|---|
Abordagem qualiquantitativa | 1 |
Abordagem qualitativa | 18 |
Natureza do estudo | |
Artigo original | 13 |
Artigo teórico | 1 |
Estudo de caso | 1 |
Pesquisa de intervenção/ação | 2 |
Revisão de literatura/pesquisa documental | 2 |
Participantes | |
Profissionais | 9 |
Usuários da AB | 4 |
Profissionais e usuários | 2 |
Profissionais, usuários, familiares | 1 |
Tabela 3 Categorias temáticas presentes nos estudos.
Categoria temática | Artigos |
---|---|
Temática 1: formação e capacitação profissional | Gryschek e Pinto, 2015; Bezerra et al., 2014; Pini e Waidman, 2012; Minozzo et al., 2012; Cavalcante et al., 2011. |
Temática 2: modelo biomédico, medicalizante e excludente | Gryschek e Pinto, 2015; Frosi e Tesser, 2015; Bezerra et al., 2014; Arce et al., 2011; Moliner e Lopes, 2013; Costa et al., 2015. |
Temática 3: a especialidade do cuidado | Martins et al., 2015; Gryschek e Pinto, 2015; Lima et al., 2013; Camuri e Dimenstein, 2010. |
Temática 4: usuário, família e a rede de apoio | Pini e Waidman, 2012; Arce, Sousa e Lima, 2011. |
Temática 5: potências - Práticas no território | Scardoelli e Waidman, 2011; Minozzo et al., 2012; Cavalcante et al., 2011; Souza e Carvalho, 2014. |
Tema 6: possibilidades e desafios | Correia et al., 2011; Gryschek e Pinto, 2015; Bezerra et al., 2014; Pini e Waidman, 2012; Ramos e Pio, 2010; Lemke e Silva, 2011; Costa et al., 2012; Moliner e Lopes, 2013; Souza e Carvalho, 2014. |
Quanto à abordagem utilizada nos estudos, verificou-se que, do total de artigos selecionados, 18 caracterizavam-se como estudos qualitativos e apenas um tinha abordagem qualiquantitativa.
Dos 16 estudos que envolveram participantes, nove apresentaram resultados exclusivamente segundo a perspectiva de profissionais. Do restante, quatro abrangeram apenas usuários da AB, dois abarcaram profissionais e usuários e somente um contou com a participação de profissionais, usuários e familiares.
De acordo com esse resultado, é necessário dar ênfase à participação dos usuários em pesquisas de Saúde Pública. Presotto et al. (2013) defendem uma mudança de paradigma na atenção psiquiátrica, de modo a afirmar a autonomia do usuário como um norte ético, o território e o cotidiano como lugares e tempos privilegiados para o cuidado e a construção de formas autônomas de superação das limitações impostas pelo sofrimento mental. Considera-se que a experiência de vida dos usuários e familiares e sua autonomia são direções éticas e metodológicas, de forma que a temática da participação em pesquisa passa a assumir relevância, tornando-se um desafio essencial nesse campo.
Observa-se que há uma discussão atual na literatura sobre a participação de usuários em pesquisa, sendo uma experiência recente. Apesar de a participação do usuário ser uma das marcas importantes e valiosas da constituição do SUS, este, assim como o meio acadêmico da saúde pública, pouco tem incorporado o usuário como coprotagonista da produção do conhecimento em saúde (PRESOTTO et al., 2013).
Verificou-se que apenas um estudo abordou a saúde mental infanto juvenil. Da mesma forma, apenas um estudo focalizou a problemática referente a álcool e outras drogas e usuários adultos.
O fato de apenas um estudo ter abordado o cenário da infância e adolescência e também um, a questão do álcool e drogas pode ser justificado pelo cenário ainda de dificuldades que permeia a atenção a esses grupos, havendo um histórico de desassistência e negligência no âmbito do cuidado e das políticas públicas a essas populações. Consequentemente, ainda que avanços recentes sejam reconhecidos, há uma escassez de espaços nas agendas de importantes atores quando a discussão se pauta no investimento nesse campo.
A seguir, são apresentados os resultados e a discussão das seis categorias temáticas identificadas. Conforme já mencionado, as categorias foram identificadas por meio da leitura dos artigos que compõem esta revisão, tendo sido utilizadas outras referências para aprofundar as discussões e reflexões.
A Tabela 3 apresenta as categorias temáticas identificadas nos 19 estudos da revisão.
Em relação à formação e à capacitação profissional das equipes da AB, revela-se que as práticas de cuidado em Saúde Mental (SM) estão limitadas pela falta de conhecimento e aproximação dos profissionais com o campo da SM (GRYSCHEK; PINTO, 2015; BEZERRA et al., 2014). Nessa direção, estudos indicam estratégias utilizadas diante dessa situação e a importância de se pensar na formação e capacitação das equipes (PINI; WAIDMAN, 2012; MINOZZO et al., 2012).
Os resultados da revisão de literatura realizada por Gryschek e Pinto (2015) apontam que na maioria das vezes as equipes não sabem como lidar com as demandas de saúde mental ou não reconhecem suas práticas cotidianas como parte do cuidado em SM em razão da formação profissional.
Pini e Waidman (2012), em um estudo realizado com equipes da Estratégia Saúde da Família do município de Maringá, que visou conhecer os fatores que interferem nas ações ao portador de transtorno mental, discutem que a dificuldade no desenvolvimento de práticas de cuidado em SM se origina na falta de atualização após a graduação e também pelas modificações na assistência à saúde mental. Os autores também enfatizam a necessidade de mais investimentos na formação das equipes, sendo uma das alternativas a educação permanente.
Minozzo et al. (2012) realizaram uma pesquisa-intervenção com duas equipes de Atenção Primária à Saúde que objetivou analisar as práticas de cuidado desenvolvidas nos grupos de saúde mental e a sua correspondência com os processos de desinstitucionalização da loucura, inscritos na reforma psiquiátrica brasileira. Os autores discutem a necessidade de criar e fortalecer espaços de educação permanente, como capacitações e trocas de experiências entre os profissionais das equipes da AB para a discussão de casos clínicos, construção de projetos terapêuticos singulares e de propostas de cuidado em saúde mental ampliadas, para além da medicação e internação.
Tem-se reconhecido que a capacitação na área da saúde mental é determinante para a superação de práticas excludentes e centradas no modelo biomédico, sendo este um dos caminhos a serem alcançados na AB (BEZERRA et al., 2014).
Não obstante, há que se considerar que as possibilidades de incorporar ou aprimorar competências em saúde mental não ocorrem sem ferramentas e investimentos concretos. Os resultados deste estudo reforçam a relevância da sensibilização para a disposição em efetivar o cuidado, para a identificação de necessidades e orientação aos profissionais justamente sobre o fato de que as ações para os sujeitos em sofrimento psíquico devem se pautar nos mesmos princípios do cuidado à saúde em geral, porém agregando ferramentas para o exercício do cuidado psicossocial. Assim, compreende-se que o desafio é capacitar os profissionais para enfrentar barreiras relativas aos receios profissionais e pessoais, além da compreensão de um cuidado ampliado, qualificado, integral e interdisciplinar.
Ainda que em um estudo realizado somente com enfermeiros, Neves et al. (2012) constataram uma fragilidade na formação profissional, o que relacionam à escassez na oferta de disciplinas de saúde mental durante a graduação, que, quando existentes, têm como foco ações centradas no modelo hospitalocêntrico. Os autores verificaram, ainda, que as ações de educação continuada promovidas pelo Ministério da Saúde apresentam enfoque em determinadas áreas, como saúde da mulher, imunização, hipertensão e diabetes, o que negligencia a saúde mental, impossibilitando a elaboração de saberes significativos à atenção psicossocial.
Importa também destacar que o conhecimento das políticas públicas de SM pela equipe das Unidades de Saúde é de extrema importância, pois auxiliam no diálogo e na compreensão sobre o cuidado em SM, na efetivação de práticas que possam ir além daquelas realizadas no interior dos equipamentos de atenção estratégica e também se concretizam no cotidiano das ações realizadas no território em que o indivíduo está inserido.
Parte dos estudos considerados nesta revisão (GRYSCHEK; PINTO, 2015; FROSI; TESSER, 2015; BEZERRA et al., 2014; ARCE et al., 2011) indica que as práticas de cuidado desenvolvidas na AB continuam voltadas para o modelo biomédico, medicalizante e extremamente excludente, de forma que poucos avanços foram identificados desde o estudo realizado por Correia et al. (2011).
No estudo de Moliner e Lopes (2013), a concepção de saúde mental dos profissionais da equipe perpassa a compreensão de saúde como oposto à doença, sendo fortemente presente um conceito biologista, negando as questões subjetivas, assim como a dimensão social que envolve os usuários.
Em um estudo que contou com a participação de profissionais da Estratégia Saúde da Família (ESF), Arce et al. (2011) revelaram que há demanda reprimida relativa à saúde mental, com casos de usuários que chegam a esperar mais de um ano por uma consulta médica, evidenciando uma priorização do cuidado no âmbito médico ambulatorial, com frágil rede de apoio, sobretudo pela própria equipe de saúde da família.
Com base nos discursos dos profissionais no estudo de Bezerra et al. (2014), a resolubilidade do cuidado esteve associada unicamente com a disponibilização de medicamentos pelos serviços de saúde, ou seja, segundo os profissionais, o fato de terem disponível, de forma gratuita, uma ampla variedade de medicações seria um indicador de resolubilidade e continuidade do cuidado. Observa-se que o atendimento de saúde mental na unidade de saúde estava restrito à consulta médica e à prescrição de medicamentos.
Evidencia-se que os resultados dos estudos não estabelecem similaridades com as propostas políticas, os princípios nem as diretrizes de cuidado aos usuários em sofrimento psíquico no âmbito da AB.
Mais uma vez, é necessário retomar a questão da formação profissional direcionada a esse tipo de cuidado. Pereira et al. (2015) apresentam uma discussão sobre o dilema pelo qual passam as profissões de saúde em relação a suas formações e afirmam que tal situação se apresenta por uma mudança na lógica do tratamento e da assistência em saúde mental decorrente da Reforma Psiquiátrica. Os autores afirmam que, na academia, esse processo encontra-se em construção e que os atores desse cenário ainda não alcançaram um equilíbrio plausível entre as questões biológicas e psicossociais dos transtornos mentais, o que torna o meio-termo bastante complexo, influenciando a formação dos profissionais do campo da saúde mental.
Há pertinência nas justificativas sobre tais dificuldades pelo fato de o Brasil, à época, estar vivendo um momento de ampliação do acesso aos serviços de saúde e implantação da ESF, o que exigiria recursos humanos e profissionais que não se encontravam preparados para esse tipo de trabalho e modalidade de cuidado. Ou, ainda, como apontam Tanaka e Ribeiro (2009), a proximidade da equipe com a comunidade fez emergir demandas de saúde mental quando os profissionais, sem sustentação, acabavam por se ancorar em modelos biomédicos e voltados a aspectos biológicos dos problemas de saúde. Importa alertar e problematizar se a continuidade de práticas médico-centradas não está se expandindo e se firmando, caracterizando, de modo mais amplo, as práticas desenvolvidas na AB, em contraposição às premissas presentes nas políticas.
Cabe ressaltar que no modelo atual da AB, a ESF propõe uma abordagem que difere do paradigma tradicional biologizante, ou seja, uma abordagem que esteja centrada no sujeito, sua família e sua comunidade, segundo a compreensão de todo o seu contexto, entendendo que as ações de cuidado devem ir além das práticas curativas (CAMPOS et al., 2008; OLIVEIRA; PEREIRA, 2013).
Os resultados do presente estudo indicam que, a despeito do período de experimentação e demandas implicadas na ampliação dos serviços da AB, ao longo do tempo, essa realidade não se modificou. Assim, verifica-se que a ampliação do cuidado à saúde mental em dispositivos extra-hospitalares, comunitários e territoriais pouco tem se efetivado ou, quando é abordada, ainda está impregnada de preceitos puramente biomédicos e retrógrados.
Assim, importa problematizar sobre o fato de nos encontrarmos em um momento posterior à expansão da AB e ainda existirem lacunas e/ou práticas que não respondem às premissas colocadas pelas políticas públicas quando se focaliza a saúde mental. Para além, é necessário refletir sobre como avançaremos em possibilidades de cuidado voltadas à população em geral e, especificamente, no campo da saúde mental.
Alguns estudos identificam que o encaminhamento a serviços especializados tem sido uma das práticas adotadas quando da chegada do usuário em sofrimento psíquico à Unidade de Saúde (MARTINS et al., 2015; GRYSCHEK; PINTO, 2015; LIMA et al., 2013). Em outros casos, quando este permanece na AB, o cuidado ao usuário é realizado por alguns profissionais, segundo a lógica da especialidade (GRYSCHEK; PINTO, 2015).
No estudo de Arce et al. (2011), verificam-se ações da equipe do serviço que buscam amenizar, de alguma forma, o sofrimento dos sujeitos que apresentam algum transtorno mental, como conversas e orientações para usuários e familiares, possibilitadas pelo vínculo estabelecido e por meio das visitas domiciliares. Entretanto, tais ações são limitadas a partir do momento que quase sempre são seguidas de encaminhamento a profissionais especializados, como a marcação de consulta psiquiátrica.
Neste sentido, Correia et al. (2011) discutem em seu estudo que os profissionais do PSF encaminham os usuários em sofrimento psíquico para diferentes locais, de médico clínico (atendimento de queixas físicas e aquisição de receitas para psicotrópicos) a consultas especializadas em ambulatórios, não responsabilizando a AB pelo cuidado a esses usuários.
Em um estudo realizado no CAPS e na AB, os autores encontraram dificuldade dos usuários em obter atendimento na unidade de saúde, por duas razões principais: não acolhimento da demanda trazida para o serviço e dificuldade em conseguir atendimento. Tais resultados evidenciam a dificuldade do trabalho em rede e a desarticulação dos fluxos entre AB e atenção especializada, apontando, então, para uma falha na responsabilização dos profissionais envolvidos no processo de cuidado integral (BEZERRA et al., 2014).
Os resultados obtidos nos estudos selecionados se distanciam das políticas públicas do setor, uma vez que o Ministério da Saúde preconiza que as práticas de cuidado em saúde mental devem ser realizadas na própria AB, assim como por todos os profissionais da saúde e não de acordo com as especialidades. Há ações que podem ser realizadas por todos os profissionais da AB, como acolhimento ao usuário em sofrimento, oferta de suporte, escuta e construção do vínculo (BRASIL, 2013).
Wetzel et al. (2014) afirmam que os serviços de AB continuam apoiados na ideia de que a especialidade é a melhor maneira de direcionar e resolver os casos de saúde mental que chegam ao serviço. Essa concepção com a carência de uma rede de serviços caracteriza-se hoje como um dos grandes desafios da Reforma Psiquiátrica, que direciona para um cuidado descentralizado e territorial.
Ressalta-se que essa lógica de cuidado por especialidade e, consequentemente, fragmentado, conforme colocado anteriormente, possui em suas raízes concepções instauradas pelo paradigma do modelo médico-centrado, conforme já discutido em outra temática.
Nessa direção, investir em ações de cuidado possíveis de se desenvolver na própria AB e no território é de extrema importância também para que a lógica do encaminhamento e da especialidade como única opção possa ser superada.
Os estudos também identificam algumas dificuldades na realização das práticas de cuidado, relacionando a rede de apoio do usuário, como a família, com o envolvimento dele em questões relacionadas ao seu cuidado. Ressalta-se que as principais dificuldades se referem à baixa adesão terapêutica em razão da falta de rede de apoio ao usuário e, consequentemente, à baixa resolubilidade dos casos atendidos (PINI; WAIDMAN, 2012; ARCE et al., 2011).
Destaca-se no estudo de Pini e Waidman (2012) que os discursos dos profissionais revelam a não obrigatoriedade do familiar em comparecer a alguns serviços, o que dificulta a compreensão do caso atendido, assim como a responsabilização da família pelo cuidado ao usuário em sofrimento psíquico. Além disso, os profissionais relatam dificuldade de adesão do usuário às propostas de cuidado, em razão da cronicidade do quadro e da não aceitação das orientações dadas pelos profissionais.
Cabe apontar que muitas vezes os profissionais de saúde esperam que a família aceite e cuide da pessoa em sofrimento psíquico intenso sem ao menos ter realizado qualquer tipo de orientação. Observa-se que responsabilizar a família e colocá-la como protagonista desse cuidado é uma tarefa difícil e deve ser feita com muito cuidado e orientação (BRASIL, 2013).
O acolhimento, o envolvimento e a participação da família no cuidado em saúde mental têm sido apontados como alguns dos grandes desafios para o avanço no campo e parecem estar presentes em todos os níveis de atenção (TAÑO, 2014; GALHARDI, 2016). Ainda que se considere a participação familiar como fundamental nas ações de saúde de modo geral, importa destacar que ao considerar a saúde mental, tal perspectiva torna-se ainda mais complexa.
Destaca-se a relevância de se pensar e implementar práticas de cuidado que se distanciem do binômio culpabilização-individualização e se ampliem para o envolvimento dos familiares como demandantes e protagonistas do cuidado, para ações de empoderamento e controle social.
Em contrapartida às dificuldades, aspectos positivos foram identificados em relação às práticas de cuidado em saúde mental na AB.
Dois artigos abordam especificamente grupos e oficinas terapêuticas (SCARDOELLI; WAIDMAN, 2011; MINOZZO et al., 2012), onde os autores apontam para a potência desses espaços como dispositivo de desinstitucionalização, promotores da saúde mental e de melhoria da qualidade de vida, favorecendo o desenvolvimento psicossocial desses usuários.
Além dos artigos mencionados anteriormente, outros artigos evidenciam a importância do grupo terapêutico para usuários em sofrimento psíquico. O estudo de Moliner e Lopes (2013) aponta que os grupos se configuram como uma alternativa para uma nova forma de fazer em saúde mental no âmbito da AB, e, para tanto, é necessário um olhar integral e ampliado acerca do sofrimento psíquico.
Tanto a Política Nacional de Atenção Básica (BRASIL, 2012) como o Ministério da Saúde (BRASIL, 2013) reafirmam a importância de espaços coletivos de cuidado, visando deslocar o olhar da doença e cura para a ressignificação do sofrimento e potencialização de novos modos individuais e grupais de estar no mundo, por meio de novos modelos de grupalidade, ou seja, estimular a participação das pessoas nas decisões de um grupo e na produção de benefícios coletivos.
Segundo Minozzo et al. (2012), o grupo caracteriza-se como dispositivo de desinstitucionalização, por meio da oferta de um cuidado psicossocial no território, articulando a rede de cuidados, visando ampliar os laços sociais e permitindo que os participantes se vejam como protagonistas da própria vida.
Além disso, nos estudos de Minozzo et al. (2012) e de Scardoelli e Waidman (2011), os grupos são entendidos como espaços propícios e promotores da fala, escuta, partilha e também de ensino e aprendizado. Nessa direção, os autores enfatizam o quanto tais espaços são promotores da saúde mental e de melhoria da qualidade de vida, favorecendo o desenvolvimento psicossocial desses sujeitos.
Quanto aos aspectos positivos, outros estudos abordam a importância da busca ativa no território e das visitas domiciliares e o quanto estas ainda estão permeadas por receios dos profissionais. No artigo de Correia et al. (2011), os autores identificam que os profissionais das equipes de ESF não atendem ou desconhecem a existência de doentes mentais em sua área de abrangência, o que levanta a discussão sobre a importância das visitas domiciliares. Os profissionais relatam que apesar de as visitas domiciliares serem consideradas uma das práticas de cuidado mais realizadas, as dificuldades perpassam sobre qual seria a melhor forma de trabalhar, abordar e cuidar dos usuários em sofrimento psíquico e suas famílias.
Os estudos também discutem sobre como deveriam ser realizadas as práticas de cuidado em SM desenvolvidas na AB e em quais princípios estas deveriam se respaldar. Nesse âmbito, reforçam a importância do vínculo, acolhimento, trabalho intersetorial e em rede e formação profissional (CORREIA et al., 2011; GRYSCHEK; PINTO, 2015; BEZERRA et al., 2014; PINI; WAIDMAN, 2012).
No estudo de Correia et al. (2011), o vínculo e o acolhimento são considerados fundamentais para a assistência ao usuário em sofrimento psíquico e seus familiares na AB. Os profissionais das equipes da ESF têm potencial para oferecer cuidados em SM, em especial pelo vínculo que estabelecem com as famílias (GRYSCHEK; PINTO, 2015).
Nessa direção, Souza e Rivera (2010) discutem sobre eixos comuns entre AB e saúde mental, abordando os princípios norteadores desses dois âmbitos, sendo estes a articulação e a responsabilização.
Quanto à articulação, os autores afirmam que no cuidado à saúde mental é preciso haver articulação dos saberes com outras áreas de conhecimento e outras práticas, pois a possibilidade de interlocução entre os campos viabilizaria transformações sociais em busca de uma efetiva Reforma Psiquiátrica (SOUZA; RIVERA, 2010).
No que tange à responsabilização, os autores afirmam que os serviços, os profissionais e demais atores sociais devem se responsabilizar pelos usuários e pela população da área de abrangência, pois, se houver essa responsabilização, certamente promoverão melhorias das condições de saúde e de vida das pessoas, desenvolvendo papel ativo na promoção da saúde mental (SOUZA; RIVERA, 2010).
Como preconizado, as intervenções em saúde mental devem ser construídas no cotidiano dos encontros entre os profissionais e os usuários, para que, juntos, possam construir o cuidado em saúde (BRASIL, 2013). Para isso, é preciso contar com a participação real dos usuários, seja no dia a dia no trabalho, no cuidado oferecido, seja nas pesquisas, sendo possível torná-los protagonistas da própria vida. Ressalta-se que poucos foram os estudos identificados nessa pesquisa em que os participantes foram os próprios usuários ou até mesmo os familiares. Em sua maioria, os estudos contaram com a participação apenas de profissionais.
Ainda, observa-se que neste estudo não foram encontrados resultados que se referem a ações de prevenção e promoção da saúde mental na AB, o que indica a necessidade de ampliar ações e estudos nesse campo.
No Brasil, o momento é de ampliação do cuidado oferecido aos usuários em sofrimento psíquico, em diferentes equipamentos da rede de atenção psicossocial, visando garantir um cuidado efetivo e integral a essa população.
Os resultados deste estudo apontam para a necessidade de qualificação dos profissionais da AB no campo da saúde mental. Também, verificam-se uma lógica de cuidado pautada principalmente no modelo biomédico, medicalizante e excludente e muitas dificuldades no trabalho em equipe, intersetorial e no território.
Não obstante, reflexões implicadas em um avanço no modo de cuidado também são apresentadas, como o fato de oficinas e grupos terapêuticos serem desenvolvidos no contexto da AB, possibilitando um novo modo de pensar o cuidado aos indivíduos em sua comunidade. A proximidade territorial possibilitada pela prática da AB e as visitas domiciliares realizadas pela equipe das unidades são estratégias importantes nas ações de prevenção e promoção de saúde mental.
Assim, apesar dos muitos desafios a serem vencidos, espera-se que este estudo possa dar visibilidade à realidade e contribua para avanços de ações na área, no conhecimento e na construção de políticas públicas, favorecendo o cuidado ao usuário em sofrimento psíquico na AB.
Porém, outros estudos devem buscar compreender como as novas formas de cuidar propostas pelas políticas de saúde mental brasileiras estão sendo implementadas em diferentes regiões do país. O Poder Executivo em todos os seus níveis - Federal, Estadual e Municipal - deve estar envolvido nas questões relacionadas à saúde mental, assim como ocorre seu envolvimento em todas as questões de saúde atuais.