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Práticas de trabalho no âmbito coletivo: profissionais da equipe Saúde da Família

Práticas de trabalho no âmbito coletivo: profissionais da equipe Saúde da Família

Autores:

Simone de Melo Costa,
Luís Paulo Souza e Souza,
Thaynara Rocha de Souza,
Ana Luíza Neves Cerqueira,
Bianca de Lima Botelho,
Eva Patrícia Pereira de Araújo,
Carlos Alberto Quintão Rodrigues

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X

Cad. saúde colet. vol.22 no.3 Rio de Janeiro jul./set. 2014

http://dx.doi.org/10.1590/1414-462X201400030011

ABSTRACT

This article aims to analyze the working practices within the collective of top-level professionals linked to the health of the family of Montes Claros (MG), Brazil. This is a cross-sectional study, nature quantitative and census. Data collection took place through a questionnaire self-administered. The data were analyzed in the Statistical Program SPSS. Participated 95 nursing professionals, medicine and dentistry. Most performs health education for pregnant women (86.8%), hypertensive (81.0%) and diabetic (79.0%). The professionals carry out home visits, being the most prominent criterion bedridden condition (33.0%). The majority (90%) for time in the schedule for managerial, administrative actions, for reflection in team and permanent education. It was concluded that work practices in family health incorporated in collective actions, suggesting reorientation of the health care model.

Key words: primary health care; family health; community dentistry; community health nursing; community medicine

INTRODUÇÃO

A implantação da Estratégia Saúde da Família (ESF) no Brasil representou mudanças nas práticas de trabalho dos profissionais de nível superior que nela atuam. A ESF é uma proposta do Ministério da Saúde brasileiro para a efetivação da Atenção Primária à Saúde (APS) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e foi apresentada como modelo de reorientação da forma tradicional de assistência, visando à promoção da saúde1,2.

Modelos assistenciais podem ser entendidos como combinações de saberes (conhecimentos) e técnicas (métodos e instrumentos) usadas para a resolução de problemas e atendimento de necessidades de saúde, tanto individuais como coletivas. Nesse sentido, um modelo de atenção à saúde não é somente uma forma de organização dos serviços ou um modo de administração do sistema de saúde, ele representa a forma de organizar as relações entre os sujeitos (profissionais de saúde e usuários) mediadas pelas tecnologias (materiais e não materiais), que são adotadas no processo de trabalho com o objetivo de intervir sobre os problemas (danos e riscos) e as necessidades sociais de saúde3.

O modelo tradicional de assistência à saúde tem enfoque biologicista, hospitalocêntrico e é centrado na doença, o que não proporciona uma atenção holística e humanizada ao usuário do serviço de saúde4, seja assistência por parte do cirurgião-dentista ou do médico.

O modelo hospitalocêntrico conceitua a saúde apenas como ausência de doença e enfatiza os procedimentos técnicos, sem analisar os determinantes sociais que podem influenciar nos processos de saúde5. O modelo de atenção tradicional vem sendo substituído pelo modelo da ESF, que envolve três dimensões: a dimensão gerencial (mecanismos de condução do processo de reorganização de ações e serviços); a organizativa (estabelecimento das relações entre as unidades de prestação de serviços); e a dimensão técnico-assistencial, ou também chamada de dimensão operativa, que trata das relações firmadas entre o(s) sujeito(s) das práticas em saúde e os objetos de trabalho e mediadas pelo saber e pela tecnologia, nos diferentes planos, como na promoção da saúde, na prevenção de riscos e agravos, e na recuperação e reabilitação6.

Nesse sentido, a Saúde da Família trata-se de uma reforma nos modos de trabalho, na assistência à saúde e nas relações entre os profissionais e a comunidade assistida. Tem como foco a família e vínculos pela equipe multiprofissional. Esses profissionais devem ser capazes de planejar, organizar, desenvolver e avaliar ações que respondam às necessidades da comunidade. Para isso, faz-se necessária a articulação com os diversos setores envolvidos na promoção da saúde, o que exige da equipe a reorganização dos processos de trabalho7. A ESF incorpora os princípios do SUS — universalização, descentralização, integralidade e controle social — e se alicerça sobre os pilares: família, território e responsabilização, tudo respaldado pelo trabalho em equipe8.

Considera-se importante verificar, na dimensão técnico-assistencial, se os profissionais atuantes no território Saúde da Família incorporaram no cotidiano ações no âmbito coletivo. Sabe-se que a odontologia, historicamente, representa uma profissão tecnicista e com ações individuais direcionadas para a recuperação da saúde, não diferente das outras profissões em saúde.

Tem-se como hipótese que a incorporação das práticas em saúde, no âmbito coletivo, ainda é um processo em construção na Saúde da Família. O objetivo deste estudo foi analisar as práticas de trabalho no âmbito coletivo dos profissionais de nível superior vinculados à equipe saúde da família.

METODOLOGIA

Este estudo foi conduzido, no período de 2010 a 2011, no âmbito do Programa de Educação para o Trabalho em Saúde (PET-Saúde) proposto pelo Ministério da Saúde. O PET-Saúde envolve professores universitários (tutor e coordenador), profissionais vinculados à Saúde da Família (preceptores) e acadêmicos de diferentes cursos de graduação em saúde.

O protocolo da pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), parecer n° 1966/2010, de acordo com a resolução n° 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. A proposta também foi aprovada pela Secretaria Municipal de Saúde de Montes Claros (MG), Brasil.

Trata-se de estudo transversal, quantitativo e de cunho censitário. A proposta foi desenvolvida com os profissionais de saúde de nível superior vinculados à Saúde da Família, cirurgiões-dentistas, enfermeiros e médicos. O potencial de participantes foi de 114 (50 da enfermagem, 27 da medicina e 37 da odontologia), que integravam as 63 equipes saúde da família, em 2010, no município estudado.

A coleta de dados foi realizada por meio de um questionário semiestruturado autoaplicado, entregue aos profissionais no local de trabalho com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para a participação no estudo. O questionário foi elaborado para atender aos objetivos do estudo, a partir da pesquisa bibliográfica sobre a temática. Foi realizado um estudo piloto com a participação de 10 profissionais para testar e adequar o instrumento de coleta de dados, sendo esses sujeitos não incluídos no estudo principal.

O tratamento estatístico foi realizado no programa SPSS, versão 18.0. Para a análise descritiva, foram utilizadas medidas de tendência central como: média aritmética, desvio-padrão, valores mínimos e máximos, bem como o cálculo de proporções. A associação entre as variáveis foi feita por meio do teste do χ2 de Pearson (o teste de Likelihood Ratio foi utilizado como substituto nos casos em que mais de 25% das caselas apresentaram unidades menores do que 5). Para a comparação entre as médias dos diferentes grupos de formação profissional, foram adotados a análise de variância (ANOVA) e o teste de Bonferroni. Os testes consideraram o nível de significância p<0,05 e o intervalo de confiança (IC95%)9.

RESULTADOS

De 114 profissionais de nível superior trabalhadores da ESF, participaram do estudo 95 (83,3%). Destes, 32,6% são graduados em odontologia, 47,4%, em enfermagem, e 20,0%, em medicina. A educação em saúde é uma atividade realizada pela maioria dos profissionais (97,8%) e direcionada a diferentes grupos populacionais. Desse modo, o trabalho educativo com gestantes foi destacado por 86,8% dos entrevistados, o grupo de hipertensos, por 81,3%, o grupo de diabéticos, por 79,1%, o grupo de crianças, por 27,4%, o grupo de adolescentes, por 16,4%, e a educação em saúde para o grupo de puérperas foi destacada por apenas 1,09% dos profissionais.

Os temas contemplados nas atividades de educação em saúde foram diversos, com destaque para o planejamento familiar (39,5%), a temática saúde mental (21,9%) e a abordagem sobre a saúde bucal (6,5%). Outros temas destacados, em menor percentual, foram o aconselhamento de hábitos saudáveis, ginástica, primeira consulta clínica na unidade de saúde. O desenvolvimento das atividades de educação em saúde ocorreu também em outros equipamentos sociais, como creches municipais.

Dos profissionais que realizam a educação em saúde, a maioria (59,3%) relatou que cada grupo é composto por até 20 pessoas, enquanto 27,5% apontaram que esse número varia entre 21 a 30 participantes, 5,5% informaram variação entre 31 a 40 participantes, e 7,7% relataram composição de grupo maior do que 40 pessoas. A frequência mensal com que a educação em saúde é realizada variou entre uma a quatro vezes, sendo que 35,2% responderam fazer uma única vez a cada 30 dias, 24,2%, duas vezes, 12,1%, três vezes, 15,4%, quatro vezes, e 13,1% relataram frequência maior do que um mês.

A grande maioria (86,3%) afirmou conhecer a condição de saúde da população cadastrada. Dos profissionais (90) que receberam treinamento para a realização de levantamentos epidemiológicos, 65,5% afirmaram ter recebido treinamento na graduação, 16,7%, durante a pós-graduação, 10,0%, no próprio serviço, e 7,8% nunca receberam esse tipo de treinamento. Ainda no que diz respeito ao levantamento epidemiológico, a maioria (54,5%) não apresenta dificuldades para realizá-lo (Tabela 1), com diferença estatisticamente significativa entre os grupos profissionais.

Tabela 1 Distribuição dos profissionais conforme dificuldade em realizar o levantamento epidemiológico. Saúde da Família (2010) 

Formação profissional Total n (%)
Enfermagem n (%) Medicina n (%) Odontologia n (%)
Dificuldades no levantamento epidemiológico* Sim 23 (54,8) 13 (72,2) 5 (16,7) 41 (45,5)
Não 19 (45,2) 5 (27,8) 25 (83,3) 49 (54,5)
Total 42 (46,7) 18 (20,0) 30 (33,3) 90 (100,0)

*5 sem resposta.

Quanto às visitas e aos atendimentos domiciliares, todos os profissionais afirmaram que realizam tais atividades. Entre os critérios utilizados pelos entrevistados para a escolha do domicílio a ser visitado, destacaram-se: domicílios com pacientes acamados (32,9%), usuários que tenham limitações para caminhar (25,2%), conforme demanda oferecida pelos agentes comunitários de saúde (ACS) (26,3%) e diante de risco familiar (23,7%). Outros critérios para a priorização da visita domiciliar foram mencionados pelos profissionais, em menor parcela, como usuários portadores de doenças mentais, pacientes em pós-operatório, diabéticos, hipertensos, idosos e puérperas.

Para todos os profissionais, a média de visita domiciliar ao mês foi igual a 19,8 (±13,5), a moda igual a 20 e a mediana foi igual a 16 visitas ao mês. A Tabela 2 apresenta médias, desvio-padrão, intervalo de confiança da média e valores mínimos e máximos de visitas domiciliares realizadas semanalmente conforme a categoria profissional. A média dos cirurgiões-dentistas foi menor, mas não foi "diferente" da dos médicos. A diferença se deu com relação aos enfermeiros, cuja média foi bem maior do que a dos demais profissionais, quase o dobro.

Tabela 2 Visitas domiciliares semanais e horas semanais destinadas às visitas domiciliares. Saúde da Família (2010) 

Quantas visitas domiciliares você faz por semana?*
n Média (DP) IC95% Mín-Máx
Enfermagem 39 6,69 (3,994) 5,40–7,99 2–25
Medicina 16 3,63 (1,147) 3,01–4,24 1–5
Odontologia 23 3,52 (1,534) 2,86–4,18 1–7
Quanto tempo (em horas) da sua agenda mensal você destina à visita domiciliar?**
n Média (DP) IC95% Mín-Máx
Enfermagem 37 16,57 (10,815) 12,96–20,17 1–40
Medicina 17 10,29 (5,871) 7,28–13,31 3–20
Odontologia 28 10,68 (5,396) 8,59–12,77 1–25

*17 sem resposta;

**13 sem resposta;

IC95%: intervalo de confiança de 95%; DP: desvio padrão; Mín: mínimo; Máx: máximo.

O tempo destinado às visitas domiciliares foi, em média, 13 horas (±8,8) mensais, a moda foi 16 horas e a mediana foi igual a 12 horas ao mês. Foram detectadas diferenças significativas entre as médias das horas mensais destinadas às visitas domiciliares conforme a categoria profissional (p<0,01). Os profissionais de enfermagem apresentaram a maior média (Tabela 2).

Com relação ao fato de realizar ações de caráter administrativo, gerencial e/ou de educação permanente no serviço público, o maior percentual de participantes (90,1%) respondeu que destina uma parte do tempo para essas atividades. Apesar de os profissionais da enfermagem dedicarem mais tempo na agenda para as ações administrativas do que os outros profissionais, não foi detectada diferença estatisticamente significativa entre os grupos (p>0,05). Detectou-se que 79,1% destinam algum tempo na agenda para a reflexão (análise dos dados e planejamento) do trabalho em equipe.

DISCUSSÃO

Quanto à dimensão técnico-assistencial do modelo de atenção adotado na Saúde da Família, este estudo identificou e analisou as práticas de trabalho no âmbito coletivo dos profissionais de nível superior. Avaliaram-se as práticas de educação em saúde, levantamento epidemiológico, visita domiciliar, ações de reflexão entre a equipe saúde da família, entre outras.

Explica-se a maior participação de profissionais da enfermagem por estes integrarem as equipes da ESF e do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), ambas vinculadas à proposta Saúde da Família. A maior participação da enfermagem com equipe da Saúde da Família também foi o resultado encontrado em outro estudo que envolveu a participação de 123 entrevistados, sendo que 40,7% eram enfermeiros10.

A ESF fundamenta-se no trabalho de equipes multiprofissionais que, de acordo com o Ministério da Saúde, devem ser compostas, no mínimo, por 1 médico, 1 enfermeiro, 1 auxiliar de enfermagem e de 4 a 12 ACS; quando ampliada, inclui ainda 1 cirurgião-dentista, 1 auxiliar de consultório dentário e 1 técnico em higiene dental11,12.

A maioria dos profissionais relatou desenvolver educação em saúde. Tal achado está em conformidade com Alves13, quando afirma que, na APS, a educação em saúde figura como prática prevista e atribuída a todos os profissionais que atuam na proposta Saúde da Família. A educação em saúde constitui um conjunto de atitudes e práticas com intuito de orientar o educando para a prevenção de doenças e a promoção da saúde. A APS, pela ênfase nas ações preventivas e promocionais14, se configura como campo privilegiado para a realização de práticas educativas. Em adição, considera-se que todo profissional de saúde é um educador em potencial, sendo a educação em saúde uma condição essencial para a prática do profissional15.

A partir do redirecionamento das práticas de saúde para ações preventivas e de promoção da saúde, bem como a renovação dos vínculos de compromisso e de corresponsabilidade entre os serviços e a população assistida, o território Saúde da Família passou a constituir um campo privilegiado para o desenvolvimento de práticas educativas em saúde16. Destaca-se que a educação em saúde constitui ferramenta essencial na construção da assistência integral preconizada pela ESF17. Ademais, as práticas de educação em saúde podem contribuir para a formação de sujeitos responsáveis, prudentes, ativos, tendo como fim principal qualidade de vida, corpo saudável e saúde perfeita, além de se tornarem disseminadores dos conhecimentos construídos, transformando o meio em que vivem18,19.

Nesse sentido, a ação educativa não deve ser considerada apenas como uma atividade a mais realizada nos serviços de saúde mas como uma prática que alicerça e reorienta toda a atenção à saúde, sendo capaz de produzir resultados ótimos para a promoção de uma vida saudável. A educação em saúde deve ser voltada à melhoria do autocuidado dos indivíduos20.

Quanto aos grupos populacionais para as atividades de educação em saúde, os resultados estão em consonância com o estudo de Silva et al.21, que em pesquisa com profissionais que atuavam na ESF de Cuiabá destacaram a predominância da realização de grupos conforme os recortes programáticos vigentes na prática da Saúde Pública tradicional: grupos de gestantes, hipertensos e diabéticos.

Entre os participantes desta pesquisa, observou-se que a constituição de grupos de educação em saúde foi em decorrência da condição patológica (diabéticos e hipertensos), do sexo (mulheres/puérperas) e da fase de desenvolvimento individual e da família (crianças, gestantes), conforme orientações dos programas ministeriais7. Vale ressaltar que a educação em saúde direcionada para os adolescentes e os assuntos sobre a saúde mental também estiveram presentes nas respostas dos pesquisados, em menor proporção. Assim, os resultados deste estudo retratam mudanças na prática tradicional da Saúde Pública.

O espaço de atuação dos profissionais da APS se consolida em trabalho com grupos populacionais13. No Brasil, a Saúde da Mulher e a Saúde da Criança apresentaram prioridades nas políticas públicas de saúde. Contudo, a saúde mental contribuiu para a diferenciação dos cenários de prática, a partir da desinstitucionalização, pelo estímulo à rede de cuidados interligando a ESF, as unidades básicas de saúde e os Centros de Apoio Psicossocial (CAPS)22.

O desenvolvimento de práticas educativas no âmbito da Saúde da Família pode ser feito em espaços convencionais, a exemplo dos grupos populacionais formados para a educação em saúde, ou em espaços informais, como durante a visita domiciliar.

No entanto, cabe salientar que a educação em saúde para grupos populacionais possibilita a disponibilização de informações a um maior número de pessoas23.

Em relação ao número de participantes em cada grupo formado para a educação em saúde, encontrou-se que uma importante parte dos entrevistados afirmou que os grupos tinham uma composição de até 20 pessoas. Segundo Munari e Furegato24, o tamanho do grupo deve permitir que todos se manifestem e se sintam assistidos; sendo assim, o grupo menor seria o mais adequado, por permitir uma maior atenção aos componentes.

As reuniões comunitárias tornam-se espaços de diálogo entre as pessoas, com oportunidades de reflexão coletiva acerca dos problemas comuns. Quando as pessoas refletem e dialogam sobre determinado tema, tais como saúde ou ambiente, as suas ideias são fruto da reflexão acerca da própria realidade. Sendo esse também o caminho para constituir cidadãos participativos, críticos e ativos diante de sua realidade25.

Quanto ao treinamento para o levantamento epidemiológico, observou-se que a maioria dos profissionais recebeu treinamento na graduação, o que pode explicar, em parte, por que uma grande parte relatou ter dificuldades para realizá-lo. O treinamento na graduação pode não ter sido o suficiente para habilitar o profissional à execução de um levantamento comunitário. Apesar da dificuldade no levantamento, a maioria afirmou conhecer a condição de saúde da população sob sua responsabilidade. Não se pode desconsiderar que a experiência do dia a dia contribui para um conhecimento geral e empírico sobre a situação de saúde da população; contudo, a epidemiologia é essencial na Saúde Púbica por fornecer relevantes instrumentos para identificação de problemas, planejamento de ações e avaliação dos serviços de saúde. Diante da pequena parcela de profissionais com treinamento em epidemiologia, sugere-se aos gestores de saúde planejar atividades de educação nessa área do conhecimento.

Segundo acordado na IX Conferência Nacional de Saúde de 1992, é indispensável para a implementação do SUS uma política nacional de recursos humanos efetiva, que incorpore ações como a qualificação e formação permanente de seus trabalhadores, cuja evolução na carreira conte com o suporte de escolas de formação nas Secretarias de Saúde ou mediante articulação com Secretarias de Educação, universidades e outras instituições públicas de ensino superior26. A formação dos profissionais para a abordagem do processo saúde-doença com enfoque na ESF é um importante desafio para o modelo sanitário; assim, faz-se necessário reaproximar os trabalhadores do resultado de seu trabalho. Ações isoladas, sem articulação, não permitem o alcance da eficácia dos serviços na atenção à saúde. É preciso pensar e propor formas de organização do trabalho que tenham impacto na qualidade da assistência. Os profissionais de saúde da atenção primária devem ser capazes de planejar, organizar, desenvolver e avaliar as ações que respondam às necessidades da comunidade.

A visita domiciliar é efetuada por todos os profissionais, em consonância com o estudo de Drulla et al.27. O teste estatístico detectou que a média de visita domiciliar semanal realizada pela enfermagem foi maior do que pelos grupos da medicina e da odontologia. A hipótese para esse resultado é de que as ações dos profissionais da medicina e da odontologia têm como base a assistência clínica, justificada, em parte, pela alta demanda da população para os serviços de saúde odontológicos e médicos. Dentro de outra óptica, a hipótese é de que os profissionais médicos e cirurgiões-dentistas não incorporaram a visita domiciliar no cotidiano do trabalho com a Saúde da Família.

O trabalho no âmbito da Saúde da Família tem como desafios não apenas a ampliação do acesso às ações de saúde mas dar forma concreta a uma interpretação de saúde e às ideias de integralidade, promoção da saúde, enfoque familiar, desenvolvimento de corresponsabilidades, humanização da assistência, e formação de laços entre os profissionais e a comunidade28. Desse modo, a visita domiciliar é vista como importante meio de aproximação entre a equipe de saúde e as famílias, favorecendo o acesso aos serviços, a construção de novas relações entre os usuários e a equipe, e a formação de vínculo entre profissionais e usuários29.

Ao adotarem critérios para a definição dos domicílios a visitar, os profissionais de saúde demonstram organização do processo de trabalho em equipe. Os resultados deste estudo estão em consonância com o proposto no estudo de Mandú et al.29, no qual os autores enfatizam que a visita domiciliar é importante para o usuário impossibilitado de se locomover até a unidade de saúde. A impossibilidade de deslocamento pode ser por doença, falta de tempo, uma deficiência, casos considerados de urgência, entre outros.

Determinados grupos de pessoas, como idosos, diabéticos e hipertensos, tornam-se cada vez mais dependentes de cuidados domiciliares, na perspectiva da vigilância, da manutenção e da restauração de sua saúde30. A presença de sinais de demência também é um importante marcador de recebimento de assistência domiciliar31.

Prestar assistência à saúde no domicílio é bem mais do que somente levar a equipe de saúde ao paciente com dificuldade de locomoção ou realizar orientações com relação à higiene e à alimentação. É necessário que o tempo e as atenções sejam voltados para tal prática. É avançar na compreensão do contexto no qual as pessoas se inserem, comprometer-se, abarcando suas necessidades, tendo em vista não só a prevenção da saúde e recuperação e reabilitação de doenças mas também a promoção da saúde32. Para a Política Nacional direcionada à Saúde da Família, é de responsabilidade de todos os profissionais da equipe o cuidado em saúde da população, tanto no âmbito dos serviços como no domicílio e demais espaços comunitários7.

Em estudo realizado por Giacomozzi e Lacerda32, destacou-se que os profissionais realizam visitas domiciliares semanalmente, quinzenalmente ou mensalmente, de acordo com as necessidades de cada paciente e de sua família, o que se assemelha com os achados do presente estudo.

O tempo destinado na agenda do profissional de saúde para as ações de visita domiciliar foi, em média, de 13,26 horas por mês. Na análise pormenorizada por categoria profissional, foi constatado que a enfermagem destina um maior tempo para as visitas, quando comparada aos grupos da medicina e da odontologia. Além da educação em saúde e da visita domiciliar, neste estudo observou-se que a maior parte dos profissionais destina algum tempo para as ações de caráter administrativo, gerencial e/ou de educação permanente.

Preconiza-se a utilização de um planejamento local participativo como ação reguladora da resolutividade, da eficiência e da eficácia do serviço, envolvendo toda a equipe de trabalho1,33. Para isso, é importante que os profissionais conheçam a sua área de atuação e seus papéis dentro da equipe, para que possam elaborar o diagnóstico local, a fim de realizar as intervenções de acordo com as necessidades da comunidade4.

O planejamento baseado na realidade local viabiliza a programação de atividades orientadas segundo os critérios de risco à saúde e prioriza a solução dos problemas em articulação permanente com os indivíduos, famílias e comunidades34. Desse modo, as ações de caráter administrativo contribuem para planejar as práticas em saúde no território Saúde da Família.

Ademais, os investimentos no gerenciamento em unidades de saúde fazem com que a Saúde Pública obtenha avanços importantes35. As práticas em saúde no âmbito coletivo exigem um planejamento administrativo e gerencial, de modo a organizar a agenda dos profissionais de saúde para as ações no espaço da unidade de saúde ou em outros equipamentos sociais da comunidade.

A educação permanente em saúde caracteriza-se pelo trabalho com a formação e o desenvolvimento de trabalhadores da saúde, ou seja, a educação em serviço36. A participação em práticas de educação permanente se faz necessária para que haja atualização dos conhecimentos e capacitação para uma melhor assistência ao usuário37. É importante que a educação permanente seja direcionada para atender às necessidades dos profissionais de saúde, não somente para a prática assistencial individual mas também para as práticas em saúde no âmbito coletivo, como, por exemplo, capacitação para o levantamento epidemiológico, para a educação em saúde, para a visita domiciliar, para o relacionamento interpessoal, entre outros.

O estudo de Stroschein e Zocche38, ao refletir sobre experiências de educação permanente nos serviços de saúde brasileiro, concluiu que debruçar-se sobre as problemáticas da realidade, no serviço, fortalece a percepção de que a educação permanente é estratégia de formação e de possibilidade para superar as práticas tradicionais e consolidar o projeto ético-político dos profissionais, em consonância com o SUS. Discutir as vivências de educação permanente oportuniza refletir sobre o processo de trabalho, possibilidades e dificuldades e as demandas do serviço.

CONCLUSÃO

O trabalho analisou, na dimensão técnico-assistencial do modelo de atenção proposto na Saúde da Família, as práticas de trabalho no âmbito coletivo dos profissionais de nível superior. As práticas de trabalho incorporaram ações no âmbito coletivo direcionadas para visita domiciliar, educação em saúde, ações de caráter administrativo, gerencial e/ou de educação permanente, e ações de reflexão do trabalho em equipe.

A visita domiciliar é efetuada por todos os profissionais; no entanto, a categoria da enfermagem demonstrou ter incorporado um maior número de visitas em suas práticas de trabalho. A adoção de critérios para a priorização das visitas, como os acamados, demonstra avanço nas práticas em saúde, ampliando o acesso à saúde para aqueles em estado de vulnerabilidade.

Quanto à educação em saúde, detectou-se a necessidade de avanços na constituição de grupos populacionais por ciclo de vida, uma vez que o trabalho educativo com grupos de idosos não foi citado, e com os adolescentes e as crianças foi citado por uma pequena parcela dos profissionais de saúde. Contudo, avanços foram observados nas práticas de educação em saúde, como o desenvolvimento de atividades extramuros das unidades de saúde, incorporando novos equipamentos sociais, como, por exemplo, as creches municipais.

Em relação às ações de educação permanente, dado o valor relevante da epidemiologia para a Saúde Pública, sugere-se a capacitação dos profissionais para o levantamento epidemiológico, uma vez que o mesmo foi considerado, para uma importante parcela de profissionais, como de difícil execução, sendo o seu conhecimento prévio advindo da graduação em saúde.

No âmbito da saúde da família, os resultados demonstram superação do modelo tradicional de atenção à saúde e efetivação do novo paradigma de promoção de saúde em profissões como odontologia e medicina, consolidadas em quatro paredes, com assistência individual e ênfase no biologicismo e tecnicismo.

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