versão impressa ISSN 2359-4802versão On-line ISSN 2359-5647
Int. J. Cardiovasc. Sci. vol.31 no.2 Rio de Janeiro mar./abr. 2018
http://dx.doi.org/10.5935/2359-4802.20180013
O Edema Agudo de Pulmão (EAP) é a expressão máxima da insuficiência cardíaca (IC) aguda na sala de emergência, sendo classificado em EAP cardiogênico ou não cardiogênico (Síndrome da Angústia Respiratória Aguda – SARA). A etiologia e os mecanismos fisiopatológicos diferem um do outro. O primeiro decorre do aumento da pressão hidrostática dentro do capilar pulmonar, e o segundo tipo é consequência do aumento da permeabilidade da membrana alvéolo-capilar. Para se identificar cada um destes tipos, é importante considerar-se a história clínica, uma vez que as doenças relacionadas a cada tipo são bem reconhecidas, mas é possível ocorrer erro de diagnóstico, devido à coexistência de doenças em um mesmo cenário clínico. O EAP ocupou o segundo lugar em custo hospitalar entre as modalidades da IC aguda, sendo o primeiro o choque cardiogênico.1 A mortalidade do EAP em 30 dias é ainda considerada alta. No estudo de Figueras et al.,2 verificou-se que a mortalidade entre 216 pacientes consecutivos admitidos com EAP em um único centro foi de 14,1%.
Frequentemente, a Doença Arterial Coronariana (DAC) grave é o substrato anatômico nos portadores de EAP, como demonstrado por Graham et al.,3 em estudo com 119 pacientes com EAP, dos quais 71 (60%) tinham lesão coronariana significante; 35 (49%), lesão de três vasos epicárdicos e 7 (10%), lesão de tronco de coronária esquerda.
A doença isquêmica do coração é a etiologia mais frequente da IC crônica no mundo4 e no Brasil.5 O EAP é uma expressão clínica grave da IC aguda e a DAC obstrutiva (lúmen arterial ocupado em sua maioria) está frequentemente relacionada a esta síndrome clínica. O presente estudo se propôs a determinar os preditores da DAC obstrutiva nesta condição clínica extrema da IC. Acredita-se que, desta forma, pode-se contribuir com a tomada de decisão em relação aos pacientes que se apresentarem com esta síndrome e com suspeita de um substrato isquêmico para sua ocorrência.
Tratou-se de estudo observacional, transversal, de caráter diagnóstico e coleta de dados prospectiva, analisando 149 pacientes entre 40 e 80 anos, admitidos de forma consecutiva em EAP em uma emergência pública, especializada em atendimento cardiológico, após registro na ficha de autorização do internamento hospitalar e história revisada pela equipe de pesquisa. Se a etiologia do EAP não era claramente definida, como síndrome urêmica, valvulopatia previamente conhecida, miocardiopatia bem definida ao ecocardiograma, infarto com supradesnivelamento do ST, o paciente era convidado a participar do estudo. Disfunção renal com creatinina > 2 mg% foi critério de exclusão.
Valores de creatinina acima de 2 mg% entraram no estudo se a Angiografia Coronária (AC) tivesse sido solicitada pelo médico responsável pelo atendimento, antes da avaliação do protocolo de estudo. Após a assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido (CAAE 05503912.6.0000.5544), a AC era solicitada com o objetivo de definir o grau de obstrução coronária. Os pacientes que tinham realizado o exame 1 ano antes da pesquisa e tinham resultados normais ou tinham definição de DAC sem novas possibilidades terapêuticas não eram submetidos a um novo exame. A AC foi analisada por um único médico que conhecia apenas o motivo da internação, o EAP. A DAC obstrutiva foi considerada grave se mais que dois terços (70%) do lúmen arterial, incluindo oclusão total do vaso, estivessem ocupados e se acometesse um vaso epicárdico: coronária direita e seus ramos, circunflexa e seus ramos, descendente anterior, diagonal e 50% de oclusão se envolvesse o tronco de coronária esquerda. A AC fez parte do protocolo de pesquisa, porque, como parte do objetivo primário, era necessário determinar os preditores de doença coronariana obstrutiva grave, e este é o exame padrão-ouro da investigação desta patologia.
O eletrocardiograma foi realizado no primeiro e segundo dia, tendo sido analisado por um arritmologista, expert no assunto. Todos os pacientes realizavam eco-Dopplercardiograma. A troponina ultrassensível (equipamento do laboratório Roche) era realizada no primeiro e segundo dias e foi solicitada a ser interpretada por dois cardiologistas se os valores obtidos eram compatíveis com um EAP precipitado ou associado a um evento coronariano agudo. As doenças consideradas presentes, como hipertensão arterial sistêmica, diabetes melito, passado de acidente vascular cerebral, valvulopatia, asma e doença pulmonar obstrutiva crônica, foram consideradas a partir da informação dada pelo doente. Tabagismo foi levado em conta se estivesse em uso, ou se o paciente tivesse deixado de usá-lo há menos de 2 anos.
Para compor o modelo explicativo da ocorrência de doença coronariana obstrutiva, foram coletadas as variáveis idade, sexo, presença de dor torácica na admissão sugestiva de isquemia miocárdica antecedendo a dispneia, presença de dispneia prévia, antecedente de doença coronariana (angina do peito clássica, antecedente de infarto agudo do miocárdio, revascularização miocárdica cirúrgica ou percutânea); alteração eletrocardiográfica sugestiva de isquemia miocárdica (infradesnivelamento do ST - ≥ 0,05 mV - ou onda T negativa ≥ 2 mm em derivações correlacionadas a uma oclusão arterial coronariana na admissão e/ou evolução eletrocardiográfica de um evento isquêmico agudo, como nova onda q e/ou alteração dinâmica de ST ou T); valor da troponina T de alta sensibilidade e sua evolução nas primeiras 48 horas, dosagem no primeiro e no segundo dia; fração de ejeção ao ecocardiograma e défice segmentar do miocárdio ao ecocardiograma; valor da pressão arterial na admissão e fatores de risco para doença aterosclerótica e doenças relacionadas à aterosclerose, como doença arterial obstrutiva periférica e acidente vascular cerebral, hipertensão arterial sistêmica, diabetes melito e tabagismo.
Para a caracterização da população de estudo e análise bivariada, as variáveis contínuas foram apresentadas por meio de médias e desvio padrão, se distribuídas normalmente, ou por meio de medianas e intervalos interquartílicos. A hipótese de normalidade foi verificada pelo teste de Kolmogorov-Smirnov. Na busca da associação das variáveis preditoras de doença coronariana obstrutiva, foi aplicado o teste qui quadrado de Pearson na comparação de proporções, o teste de Mann Whitney na comparação das medianas e teste t de Student na comparação das médias. As variáveis que apresentaram significância estatística de até 10% (p < 0,10) foram elegíveis para o modelo multivariado. O modelo aplicado foi o da regressão logística. Na avaliação do modelo foi utilizado o teste de Hosmer-Lemeshow, assim como avaliou-se o desempenho do modelo pela área sob a curva (ASC) característica de operação do receptor (COR). O software estatístico utilizado foi o Stata para Windows, versão 12.
Dos 149 pacientes, 89 (59%) apresentaram DAC obstrutiva grave. A maioria foi de idosos e do sexo feminino (Tabela 1).
Tabela 1 Características basais dos pacientes com edema agudo de pulmão de origem não definida
Característica | Total (149) |
---|---|
Idade | 65,4 ± 10,2 |
Sexo masculino | 54 (36,2) |
Dispneia prévia | 118 (79,2) |
Dor isquêmica | 30 (20,1) |
Diabetes | 71 (47,6) |
Hipertensão | 121 (81,2) |
Tabagismo | 86 (57,7) |
História de DAC | 44 (29,5) |
História de DAOP | 16 (10,7) |
AVC prévio | 18 (12,1) |
PAS na admissão | 171,8 ± 42,7 |
PAD na admissão | 99,6 ± 23,3 |
Fração de ejeção | 46,4 ± 14,6 |
Fração de ejeção < 40% | 56 (37,6) |
Défice segmentar do miocárdio | 53 (35,6) |
Creatinina ≥ 1,2 mg% | 44 (29,5) |
Creatinina mg% (131 pacientes) | 1,0 (0,8; 1,31) |
BNP pg/mL (123 pacientes) | 3.856 (1.441; 6.634) |
Infradesnivelamento do ST*, em mm | 54 (53,5) |
Supradesnivelamento do ST*, em mm | 32 (31,7) |
Onda T negativa* ≥ 2 mm | 44 (43,6) |
Onda Q ≥ 0,03" | 53 (52,5) |
Troponina positiva ng/mL | 76 (51,0) |
Valor da Troponina ng/mL (1ª medida) | 0,087 (0,036; 0,201) |
ECG | |
Fibrilação atrial | 9 (6,0) |
BRD | 3 (2,0) |
BRE | 28 (18,8) |
SVE | 72 (48,3) |
Resutlados apresentados como n (%), média ± desvio padrão ou mediana (P25; P75).
*Entre os pacientes sem bloqueio de ramo esquerdo (101 pacientes). Este supradesnivelamento não foi considerado como infarto agudo com supradesnivelamento de ST, mas supradesnivelamento de outras etiologias, como hipertrofia ventricular esquerda e repolarização precoce. DAC: doença arterial coronariana; DAOP: doença da artéria obstrutiva periférica; AVC: acidente vascular cerebral; PAS: pressão arterial sistêmica; PAD: pressão arterial diastólica; BNP: peptídeo natriurético tipo B; ECG: eletrocardiograma; BRD: bloqueio de ramo direito; BRE: bloqueio de ramo esquerdo; SVE: sobrecarga de ventrículo esquerdo.
A lesão moderada se fez presente isoladamente apenas em 9 pacientes (6%) dos 149 angiogramas coronários avaliados. A maioria de acometimento das artérias coronárias esteve restrita a um vaso epicárdico, sendo a artéria coronária direita a mais envolvida. Verificou-se o tronco de coronária esquerda e o envolvimento de três vasos, respectivamente, em 11 (12%) e em 15 (17%) dos 89 pacientes, como descrito na Tabela 2.
Tabela 2 Angiografia coronariana nos portadores de edema agudo de pulmão de origem não definida
Presença de doença coronariana | % |
---|---|
Sem doença coronariana | 61 (41%) |
DAC moderada exclusiva | 9 (6%) |
DAC moderada e grave* | 30 (20%) |
DAC grave | 89 (59%) |
Lesão DA | 46 (52%) |
TCE | 11 (12%) |
Lesão CX | 47 (53%) |
Lesão CD | 55 (62%) |
*DAC grave ≥ 70% ou subocluída. DAC: doença arterial coronariana; DA: descendente anterior; TCE: tronco de coronária esquerda; CX: circunflexa; CD: coronária direita.
A Tabela 3 mostra o envolvimento detalhado dos vasos epicárdicos. Percebeu-se que a doença coronariana grave acometeu mais a população portadora de diabetes, doença arterial obstrutiva periférica, com antecedente de doença coronariana e acidente vascular encefálico.
Tabela 3 Topografia detalhada dos 89 pacientes com lesões obstrutivas graves nos pacientes com edema agudo de pulmão de origem não definida
Vasos arteriais coronários | n (%) |
---|---|
Com TCE | 11 (12) |
1 vaso com DAC obstrutiva | 37 (42) |
2 vasos com DAC obstrutiva | 26 (29) |
3 vasos com DAC obstrutiva | 15 (17) |
Topografia | |
Artéria CD (55 pacientes com lesão severa) | 55 (62) |
Proximal | 20 (36) |
Médio | 27 (49) |
Distal | 13 (24) |
Artéria DA (46 pacientes com lesão severa) | 46 (52) |
Proximal | 22 (48) |
Ostial | 9 (20) |
Distal | 11 (24) |
Artéria CX (47 pacientes com lesão severa) | 47 (53) |
Proximal | 13 (28) |
Distal | 23 (48) |
Marginal da CX | 34 (72) |
TCE: tronco de coronária esquerda; DAC: doença arterial coronariana; CD: coronária direita; DA: descendente anterior; CX: circunflexa.
Quanto à fração de ejeção ao ecocardiograma, o valor médio ficou acima de 45% e, na sua maioria, foi avaliada por Teichholz. A mediana da troponina I do primeiro dia foi de 0,086 ng/mL (valor normal de 0,014 ng/mL), e a variação do interquartil foi de 0,036 e 0,201 ng/mL nos pacientes com EAP. Considerou-se a troponina como positiva quando dois cardiologistas independentes classificaram-na como sugestiva de um evento coronariano agudo relacionado ao EAP – fato observado em 77 pacientes (51,3%) (Tabela 1).
As médias da pressão arterial sistólica e a da diastólica foram elevadas. A alteração de eletrocardiograma mais encontrado foi o infradesnivelamento de ST, verificado na maioria dos pacientes avaliados (53,5%).
O trombo intracoronário foi visualizado em 4 (3%) dos 122 pacientes em que a AC foi realizada durante a hospitalização. Um deles tinha elevação da CKMB massa e troponina, com valores muito elevados – respectivamente, 86 mg/mL (valor de referência de 4,54 mg/mL) e 1,29 ng/mL (valor de referência de 0,014 ng/mL) –, sugerindo valores compatíveis com oclusão da artéria coronária. O eletrocardiograma mostrou infradesnivelamento do ST de 1 mV na parede inferior, V4 a V6 e supradesnivelamento de 1 mV em aVR e V1. A AC mostrou um trombo na artéria descendente anterior e lesões graves na diagonal e coronária direita.
A análise univariada dos possíveis candidatos preditores de DAC obstrutiva está descrita na Tabela 4. Dor torácica isquêmica, diabetes melito, hipertensão arterial sistêmica, história de DAC, história de doença arterial obstrutiva periférica, acidente vascular cerebral, fração de ejeção, défice segmentar do miocárdio ao ecocardiograma, presença de onda Q e avaliação da medida absoluta da troponina do primeiro dia estiveram associados à DAC obstrutiva (p < 0,1).
Tabela 4 Preditores de doença coronariana obstrutiva (DAC) em edema agudo de pulmão de origem não definida
Preditores | DAC obstrutiva | OR (IC95%) | Valor de p | |
---|---|---|---|---|
Sim (n = 89) | Não (n = 60) | |||
Idadea | 65,9 ± 9,1 | 64,7 ± 11,7 | 1,01 (0,98-1,05) | 0,459 |
Sexo masculino | 31 (34,8) | 23 (37,7) | 0,88 (0,45-1,74) | 0,719 |
Dispneia prévia | 68 (76,4) | 51 (83,6) | 0,63 (0,28-1,46) | 0,287 |
Dor isquêmica | 25 (28,1) | 5 (8,2) | 3,18 (0,83-12,3) | 0,093 |
Diabetes | 53 (59,5) | 19 (31,1) | 3,25 (1,64-6,47) | 0,001b |
Hipertensão | 77 (86,5) | 45 (73,8) | 2,28 (1,00-5,25) | 0,053 |
Tabagismo | 54 (60,7) | 33 (54,1) | 1,38 (0,71-2,70) | 0,346 |
História de DAC | 40 (44,9) | 4 (6,6) | 11,4 (3,81-34,2) | 0,000† |
História de DAOP | 15 (16,8) | 1 (1,6) | 12,2 (1,56-94,7) | 0,017† |
AVC prévio | 16 (18,0) | 2 (3,3) | 6,56 (1,44-29,7) | 0,015† |
PAS na admissãoa | 170,6 ± 37,7 | 175,6 ± 51,8 | 1,00 (0,99-1,01) | 0,496 |
PAD na admissãoa | 100,9 ± 24,0 | 99,4 ± 25,8 | 1,00 (0,99-1,02) | 0,714 |
Fração de ejeçãoa | 44,1 ± 13,6 | 50,1 ± 15,6 | 0,97 (0,95-0,99) | 0,018† |
Défice segmentar do miocárdio | 46 (51,7) | 7 (11,5) | 8,33 (3,41-20,4) | 0,000† |
Creatinina ≥ 1,2 mg% | 32 (36,0) | 12 (19,7) | 2,12 (0,97-4,66) | 0,060 |
Infradesnivelamento do ST mmd | 34 (38,2) | 20 (32,8) | 1,13 (0,50-2,55) | 0,763 |
Infradesnivelamento do ST dinâmico mmd | 27 (30,3) | 16 (26,2) | 1,17 (0,53-2,57) | 0,699 |
Supradesnivelamento do ST mmd | 22 (24,7) | 10 (31,2) | 1,52 (0,40-1,79) | 0,356 |
Onda Q > 0,03"d | 38 (42,7) | 15 (24,6) | 2,53 (1,11-5,77) | 0,027† |
Onda T negativa mmd | 30 (33,7) | 14 (23,0) | 1,73 (0,75-3,94) | 0,194 |
Onda T dinâmicod | 18 (20,2) | 10 (16,4) | 1,24 (0,50-3,07) | 0,638 |
BRE | 17 (19,1) | 12 (19,7) | 0,89 (0,38-2,07) | 0,788 |
SVE | 34 (38,2) | 24 (39,3) | 0,84 (0,37-1,89) | 0,672 |
Troponina positiva ng/mL | 48 (53,9) | 29 (47,5) | 1,29 (0,67-2,48) | 0,442 |
Troponina (1ª dia) ng/m | 0,11 (0,056; 0,35) | 0,054 (0,025; 0,13) | 2,69 (1,30-5,58) ‡ | 0,008† |
BNP | 4.586 (1.862; 9.064) | 2.223 (965; 4.960) | 1,07 (1,01-1,15) // | 0,047 |
aMédia ± desvio padrão;
bassociação estatisticamente significante (p < 0,05);
c mediana como referência;
dentre os pacientes sem bloqueio de ramo esquerdo (101 pacientes); este supradesnivelamento não foi considerado como infarto agudo com supradesnivelamento de ST, mas supradesnivelamento de outras etiologias, como hipertrofia ventricular esquerda e repolarização precoce; f aumento da chance de doença coronariana obstrutiva a cada aumento de 1.000 unidades de BNP. Resultados expressos como n (%), média ± desvio padrão e mediana - P25; P75. OR: odds ratio; IC95%: intervalo de confiança de 95%; DAOP: doença arterial obstrutiva periférica; AVC: acidente vascular cerebral; PAS: pressão arterial sistêmica; PAD: pressão arterial diastólica; BRE: bloqueio de ramo esquerdo; SVE: sobrecarga de ventrículo esquerdo; BNP: peptídeo natriurético tipo B.
As variáveis que participaram do modelo multivariado e as variáveis independentes de DAC obstrutiva foram história de DAC (p < 0,000) e défice segmentar do miocárdio (p < 0,02), conforme descritas na Tabela 5.
Tabela 5 Preditores de Doença Coronária obstrutiva nos pacientes com Edema Agudo de Pulmão de origem claramente não definida
Preditores | ORajustada (IC 95%) | p-valor |
---|---|---|
Dor isquêmica | 2,48 (0,38 – 15,9) | 0,339 |
Diabetes | 2,37 (0,85 – 6,58) | 0,098 |
Hipertensão | 1,70 (0,50 – 5,75) | 0,392 |
História de DAC | 13,4 (2,81 – .63,6) | 0,001 |
História de DAOP | 6,76 (0,63 - 72,5) | 0,114 |
AVC prévio | 5,62 (0,86 - 36,7) | 0,071 |
Fração de ejeção | 0,97 (0,93 - 1,01) | 0,100 |
Déficit segmentar do miocárdio | 6,21 (1,92 - 20,1) | 0,002 |
Creatinina ≥ 1,2 mg% | 2,08 (0,65 – 6,62) | 0,214 |
Onda Q | 1,53 (0,45 - 5,21) | 0,497 |
Troponina ultrassensível (1ª medida) ng/ml | 2,76 (0,41 – 18,8) | 0,299 |
BNP | 1,01 (0,99 - 1,03) | 0,417 |
* Bondade do ajuste do modelo: teste de Hosmer-Lemeshow - p: 0,320; * Área sob a curva = 0,9089 (IC 95%: 0,863-0,955). AVC: acidente vascular cerebral; DAC: doença da artéria coronária; DAOP: doença arterial obstrutiva periférica; BNP: peptídeo natriurético tipo B
O desempenho do modelo foi avaliado pela ASC curva COR, conforme se pode observar na Figura 1. A ASC se mostrou como um bom poder discriminatório com a estatística-C de 0,905 (Intervalo de confiança de 95% - IC95%: 0,862-0,954).
O EAP é uma expressão grave da Insuficiência Cardíaca Aguda (ICA) na sala de emergência. Tem sido comum interpretá-lo na presença de um marcador de necrose positivo, como uma expressão de doença coronariana instável, como foi definido por Figueras et al., 2 e Pena-Gil et al.,6 No entanto, sabe-se que a ICA, isoladamente, altera marcador – seja CKMB, seja troponina – e, portanto, não é um marcador confiável para o diagnóstico de síndrome coronariana aguda.7 Dessa forma, torna-se difícil este diagnóstico na ausência de alterações eletrocardiográficas claras e evidentes de uma oclusão arterial coronária, como o supradesnivelamento do ST com sua respectiva evolução clássica ao eletrocardiograma.
A média da pressão arterial sistólica e diastólica foi elevada na população com EAP, assim como a maioria apresentou fração de ejeção acima de 45% (método Teichholz). Quanto aos valores da troponina, indicadores de um provável infarto agudo do miocárdio, quando julgados por dois cardiologistas independentes associado ao EAP, os valores da troponina não foram capazes de diferenciar a DAC obstrutiva da não obstrutiva; a elevação da troponina ocorreu, respectivamente, em 63% e 48% dos casos. Isso remete à seguinte questão: será que mais metade dos pacientes com EAP estavam no curso de um infarto agudo do miocárdio? Provavelmente não, uma vez que era de se esperar que a associação EAP e infarto agudo do miocárdio fosse mais encontrada no curso de um infarto do miocárdio com supradesnivelamento do ST pela extensão maior do envolvimento miocárdio. No estudo em questão, de uma população alvo de 256 pacientes admitidos consecutivamente em EAP, 3 (1%) se apresentaram como infarto agudo do miocárdio com supradesnivelamento do ST e EAP na sala de emergência, mas eles foram excluídos porque a etiologia do EAP, neste contexto clínico, é bem definida.
No estudo de Figueras et al.,2 o infarto agudo do miocárdio com supradesnivelamento do ST se fez presente em 30% dos pacientes admitidos com esta patologia.
Classificar as dosagens seriadas da troponina aumentadas no EAP como secundárias a um evento coronariano agudo não é razoável pelo exposto neste modelo e traz consequências onerosas ao sistema de saúde,8 uma vez que a presença de DAC no quadro de IC aguda aumenta o tempo e o custo de internação, como apontado por Purek et al., 9
Digno de nota é o fato de que alterações de eletrocardiograma, que podem sugerir isquemia como mudança do ST (infra) e onda T, não fizeram parte do modelo preditor, sugerindo que tais alterações podem ser encontradas com ou sem DAC obstrutiva.10 Isso foi verificado na série de nove casos de Littmann,11 em que ondas T negativas e profundas e o aumento do QT não estiveram associados à doença coronariana no eletrocardiograma, após 24 horas do EAP. Deve-se sempre considerar que outras causas de infradesnivelamento do ST podem ocorrer, como hipertrofia ventricular esquerda e droga (como a digoxina) e, talvez, a própria isquemia relativa, que pode ocorrer durante um episódio de EAP, em que a hipóxia é invariavelmente presente e, quando estiver associada a um aumento da troponina, pode ser considerado um infarto agudo do miocárdio do tipo 2.10 O exato mecanismo das alterações encontradas é pouco definido, atribuindo-se as respostas eletrofisiológicas das células miocárdicas à estimulação adrenérgica e à hipóxia no miocárdio que, habitualmente, acompanham a condição clínica do EAP. Nesta série, apenas quatro doentes se submeteram à investigação invasiva.
O estudo em questão não tinha como objetivo avaliar a mortalidade, mas esta foi observada 15% ao longo de 1 ano - ressaltando que apenas se estabeleu contato em 48% da população do estudo. No estudo de Figueras et al.,2 a mortalidade em 30 dias foi de 14%. Isso indica a gravidade da doença mesmo nos dias atuais.
A doença valvular grave ocorreu em 15 casos (10%). Vale lembrar que não se conhecia valvuloptia prévia e que 11 casos (73%) eram estenose aórtica grave, o que é próprio do perfil da população estudada, cuja idade média foi de 65,4 ± 10,2.
Este estudo mostra que a doença coronariana obstrutiva grave esteve presente na maioria dos pacientes com edema agudo do pulmão, mas que variáveis habitualmente empregadas na sala da emergência para identificar sua presença falharam, como a interpretação da troponina e a dor torácica antecedendo o quadro clínico. Naturalmente, esperam-se encontrar os preditores relacionados a esta condição – como o antecedente de doença coronariana e o défice segmentar ao ecocardiograma – nesta patologia.
O presente estudo mostrou que a doença coronariana obstrutiva é prevalente nos pacientes com EAP: 59% dos pacientes tinham alguma artéria com lesão obstrutiva grave provada por estudo hemodinâmico invasivo. A intervenção percutânea não foi realizada na maior parte dos indivíduos com esta condição, troponina aumentada e DAC obstrutiva; lembra-se que a pesquisa não foi delineada para responder esta questão.
Levando-se em conta também a alta frequência de positividade da troponina em todas as condições agudas que acometem o coração e a interseção dos sintomas nas diversas etiologias, é de se esperar a confusão diagnóstica quando não existe um marcador específico para uma dada doença, como o eletrocardiograma no infarto agudo do miocárdio com elevação do ST e no bloqueio atrioventricular total. Este fato tem ocorrido na prática clínica, em que sintomas correlatos a isquemia miocárdica e troponina positiva têm suscitado a solicitação da AC, interpretando o conjunto como uma síndrome isquêmica aguda.
Outra limitação seria a progressão da DAC nos pacientes que realizaram a AC em menos de 1 ano e a doença ter surgido neste período.
Assume-se, entretanto, que todo processo de investigação restrito a um único centro de pesquisa resulta em limitações, considerando-se as diferenças de condutas e interpretações clínicas que existem nas unidades de saúde.
Em indivíduos internados com edema agudo de pulmão de origem claramente não definida, a história prévia de coronariopatia e défice de contratilidade miocárdica segmentar foram os preditores independentes de doença coronariana obstrutiva. Destes dois preditores, a história prévia de coronariopatia é o maior determinante probabilístico, praticamente garantindo a presença de doença coronariana obstrutiva. Entretanto, na ausência de história prévia de doença arterial coronariana ou acidente vascular cerebral, a probabilidade de doença coronariana obstrutiva é intermediária, sendo modulada por dois preditores independentes: a fração de ejeção e o défice de contratilidade miocárdica. O valor da troponina não predisse de forma independente a presença de doença coronariana obstrutiva em um cenário de insuficiência cardíaca aguda, e a identificação da presença de doença coronariana obstrutiva implicou poucos procedimentos de revascularização. Isto suscita questionamento quanto à utilidade de perseguir-se o diagnóstico de doença coronariana neste cenário clínico.