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Preditores da Síndrome de Burnout em profissionais da saúde na atenção básica de Porto Alegre/RS

Preditores da Síndrome de Burnout em profissionais da saúde na atenção básica de Porto Alegre/RS

Autores:

Stelyus Leônidas Mariano Silveira,
Sheila Gonçalves Câmara,
Mayte Raya Amazarray

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X

Cad. saúde colet. vol.22 no.4 Rio de Janeiro out./dez. 2014

http://dx.doi.org/10.1590/1414-462X201400040012

ABSTRACT

Burnout syndrome (BS) consists in a response to chronic labor problems that becomes from physical and mental illnesses of worker and it may result in absence from work. Health professionals would be a vulnerable category of BS due to the characteristics of care work and management models. An observational analytic cross section was conducted with 217 workers from two primary health districts of Porto Alegre/RS, Brazil, to determine the prevalence and predictors of BS. It was used: demographic and labor questionnaire, SBI (which assesses BS Profile 1 and BS Profile 2) and SRQ - 20 (which assesses common mental disorders - CMD). Data analysis consisted of descriptive statistics, chi-square analysis and simple/multiple linear regression. The results indicated that 18% of professionals present BS profile 1 and 11%, profile 2. Predictors for BS profile 1 were: CMD, fatigue, length of employment, having children, only work, living in Porto Alegre and work at an ordinary primary healthcare unit. For BS profile 2 were similiar, except for the variables: city and kind of local place. The high prevalence of BS in the sample shows the need of institutions of primary healthcare to conduct prevention and promotion health projects among their own workers.

Key words: burnout; professional; occupational health; primary health care

INTRODUÇÃO

A Síndrome de Burnout (SB) pressupõe exaustão física e mental do trabalhador, o qual tende a afastar-se do trabalho, pois já não se sente capaz de desempenhar suas funções1 , 2 , 3. Afeta profissionais prejudicados em desenvolver suas práticas com seus clientes, como profissionais de saúde, professores, policiais e assistentes sociais4. Comumente, a SB envolve profissionais que iniciam a carreira entusiasmados, na perspectiva de ajudar os outros. Entretanto, no desenvolvimento da SB, os trabalhadores tendem à inoperância na sua função, tornando o trabalho menos recompensador e gerando insatisfação quanto ao próprio desempenho1 , 5. O trabalhador deixa de envolver-se afetivamente com seus clientes, passando a considerar inútil seu empenho no trabalho4.

A sintomatologia da SB se apresenta mediante expressões físicas, comportamentais e psíquicas; não necessariamente, entretanto, todos os sintomas simultaneamente. Tais atitudes negativas podem afetar colegas e a instituição, resultando em absenteísmo, queda de produtividade e baixa qualidade no atendimento1 , 5 , 6.

A realidade brasileira da SB ainda não foi suficientemente estudada7 , 8. Considerando sua inclusão na CID-10 (Z73.0), os Ministérios da Saúde e da Previdência Social instituíram regulamentações incluindo-a no grupo dos "transtornos mentais e do comportamento relacionados ao trabalho", sendo o trabalho de caráter penoso o fator de risco9 - 11. O Manual de Procedimentos Relacionados a Doenças do Trabalho classificou a SB como um adoecimento a prevenir e assistir em todos os níveis de atenção4.

Os serviços públicos de saúde caracterizam-se por condições estruturais precárias, profissionais insatisfeitos com as condições laborais e desvalorização profissional, além de um conteúdo de trabalho constituído, primordialmente, pelo cuidado do outro - fatores de risco para o desenvolvimento da SB6 , 12. Na esfera pública de atendimento em saúde, os dois componentes considerados centrais para o aparecimento da SB se fazem presentes: a insuficiência de recursos para atender a demanda e o ceticismo dos profissionais quanto aos objetivos da instituição na qual estão inseridos13 , 14.

Nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs) e Unidades de Estratégia em Saúde da Família (ESFs), os trabalhadores tendem a defrontar-se com essa carência de recursos mencionada. A Política Nacional de Humanização constitui um exemplo da tentativa de fomentar o interesse dessas equipes em considerar os usuários enquanto sujeitos/cidadãos, não realizando apenas procedimentos técnicos15. Essa precária condição social dos territórios dessas unidades, a desarticulação da rede de saúde e a cobrança do profissional em relação a si mesmo, em conjunto, contribuem para o desenvolvimento da SB entre trabalhadores na atenção básica16.

A compreensão da SB tem sido feita a partir de perspectivas multidimensionais, considerando-a como resposta crônica aos problemas laborais17. O Modelo de Maslach salienta os elementos do ambiente laboral8 , 18: aspectos da organização do trabalho (normas rígidas, comunicação difícil, sobrecarga, falta de apoio social no trabalho) e características da profissão (trabalhos com primazia de atenção a outros seres humanos, tipo de clientela, conflitos com interesses pessoais) são os principais fatores de risco para a SB6. Com base nesse Modelo, a maioria dos estudos tem optado pelo Maslach Burnout Inventory(MBI) para analisar a prevalência da SB, pois possibilita estudos comparativos.

Recentemente, surgiram outros instrumentos, como o Cuestionario para la Evaluación del Síndrome de Quemarse por el Trabajo (CESQT)8 , 19, já validado para a realidade brasileira e utilizado neste estudo, o qual permite identificar o estágio de adoecimento e supera algumas insuficiências psicométricas observadas na utilização do MBI adaptado para outros idiomas que não o inglês19. Segundo o modelo teórico no qual se baseia o CESQT, o indivíduo, primeiramente, desenvolve problemas cognitivos e afetivos em resposta ao estresse laboral crônico (baixa Ilusão pelo trabalho e alto Desgaste psíquico); posteriormente, desenvolve atitudes negativas em relação aos usuários (alta Indolência); a Culpa surgiria por último, afetando aqueles mais adoecidos. A ausência ou presença da culpa definirá, respectivamente, se o trabalhador apresenta o Perfil 1 ou 2 da SB, sendo este último o de maior gravidade20. Diante do exposto, este estudo teve como objetivo estudar a prevalência da SB (Perfil 1 e Perfil 2) e seus preditores entre profissionais da atenção básica de dois distritos sanitários de Porto Alegre/RS.

MÉTODO

Realizou-se um estudo observacional, analítico, de corte transversal. O contexto do estudo foram dois distritos sanitários de Porto Alegre (RS), cuja população é de aproximadamente 190 mil habitantes, em três bairros, dois dos quais estão dentre os vinte bairros da capital com o pior índice de vulnerabilidade social, e o terceiro dentre os quarenta pior avaliados21. Segundo a gerência distrital de saúde, atuam no território 275 profissionais lotados em nove UBSs e onze ESFs.

Participaram do estudo 217 profissionais de saúde (agentes comunitários de saúde, enfermeiros, médicos, nutricionistas, odontólogos, técnicos de enfermagem e técnicos em saúde bucal) de um universo de 275. A não participação de 50 trabalhadores ocorreu devido à ausência durante a coleta de dados por motivos de afastamentos por doença, acidente de trabalho e férias. Outros oito participantes foram excluídos devido a não pertencerem à categoria profissional da saúde, pois eram administrativos.

Utilizaram-se três instrumentos autoaplicáveis para coleta dos dados:

  • Questionário, elaborado pelos autores, de 30 questões sobre variáveis sociodemográficas (sexo, idade, cidade, cor, religião, estado civil, filhos, escolaridade), laborais (se estuda ou apenas trabalha, função, tempo na função, na profissão e na prefeitura, carga horária, usuários atendidos por dia) e de saúde (vezes em que esteve afastado por adoecimento e/ou acidente, horas de sono por noite, cansaço, tempo livre, horas de lazer, prática de atividade física).

  • "Cuestionario para la Evaluación del Síndrome de Quemarse por el Trabajo" (CESQT) - versão brasileira validada19: Vinte itens distribuídos em quatro dimensões - Ilusão pelo trabalho (α=0,83), Desgaste psíquico (α=0,80), Indolência (α=0,80) e Culpa (α=0,82). Avaliam a SB enquanto resposta ao estresse laboral crônico19. As respostas são apresentadas em escala tipo likert de 5 pontos. A SB estará caracterizada pela baixa pontuação na Ilusão pelo trabalho (<2) e altas pontuações em Desgaste psíquico, Indolência e Culpa (≥2). A ausência ou presença da culpa caracterizará, respectivamente, o Perfil 1 e o Perfil 2 da SB20.

  • Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20): desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde (α=0,86); 20 itens dicotômicos (sim/não) sobre sintomas físicos e psíquicos, avalia a ocorrência de Transtornos Mentais Comuns (TMC): ansiedade, depressão, reações psicossomáticas, irritação e cansaço mental. Cada resposta afirmativa equivale a um ponto; ao final, somam-se os itens, sendo que a pontuação ≥7 indica presença de TMC22.

Para a coleta de dados, realizou-se contato com a gerência distrital, solicitando autorização e auxílio na divulgação da pesquisa junto aos coordenadores das unidades de saúde. Posteriormente, agendou-se a ida dos pesquisadores às unidades. A coleta de dados foi realizada entre janeiro e março de 2013. Cada profissional recebeu um envelope contendo os instrumentos autoaplicáveis. Após o preenchimento, os envelopes eram lacrados pelos próprios participantes e depositados em uma caixa-urna, conforme orientação prévia pela equipe de pesquisa. O recolhimento das urnas ocorreu após sete dias da entrega dos envelopes. Foram utilizados envelopes e urnas idênticos, visando a manutenção do sigilo.

Os dados foram digitados e analisados no pacote estatístico SPSSTM (Pacote Estatístico para Ciências Sociais) versão 17.0. Para a caracterização da amostra em relação às variáveis sociodemográficas e laborais e análise da prevalência da SB, foi utilizado o método de estatística descritiva (frequências, porcentagens, médias e desvios-padrão). Para a análise das variáveis preditoras da SB, foi realizada, inicialmente, uma análise de regressão linear simples para ambos os perfis: SB Perfil 1 e SB Perfil 2. As variáveis testadas foram: sexo, idade, local de residência, estado civil, filhos, escolaridade, se estuda e trabalha ou apenas trabalha, tipo de unidade (UBS ou ESF), tempo de trabalho na função, na profissão e na prefeitura, horas extras, número de pacientes atendidos/dia, trabalho em outro local, histórico de acidente/doença relacionada ao trabalho, afastamento por acidente ou doença, horas de sono e horas livres nos dias úteis e nos finais de semana, frequência do cansaço, horas de lazer e prática de atividade física.

Em um segundo momento, foi feita uma análise de regressão linear múltipla (método stepwise) com as variáveis que mostraram associação com a variável principal, de significância ≤0,20 nas análises de regressão linear simples, realizada para avaliar ambos os perfis de adoecimento. Por último, verificou-se a associação entre SB e TMC através do teste de χ², utilizando-se as variáveis SB Perfil 1 e Perfil 2 na forma dicotomizada. Os participantes foram divididos conforme ausência e presença da SB.

Este estudo teve aprovação dos Comitês de Ética em Pesquisa da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, sendo que a participação no estudo não lhes trouxe nenhum risco.

RESULTADOS

Quanto à atuação, 48,4% dos indivíduos trabalhava em UBS e 51,6% deles em ESF (Tabela 1). Em média, estes estavam na profissão há 7,60 anos (DP=9,76), há 3,85 anos (DP=4,09) na prefeitura e 4,99 anos (DP=4,90) na função atual. Atendiam, em média, 39 usuários por dia (DP=42,87) e 79,9% deles não realizava horas extraordinárias.

Tabela 1. Perfil sociodemográfico dos participantes (n=217) 

Variáveis n %
Sexo 216 100,0
Feminino 192 88,9
Masculino 24 11,1
Idade 214 100,0
Até 30 anos 37 17,3
31 a 40 anos 68 31,8
41 a 50 anos 50 23,4
51 anos ou mais 59 27,6
Função 213 100,0
Agentes Comunitários de Saúde 47 22,1
Coordenadores de equipe 3 1,4
Enfermeiros 34 15,9
Médicos 31 14,6
Nutricionistas 2 0,9
Odontologistas 6 2,8
Téc. de Enfermagem 82 38,5
Téc. em Saúde Bucal 8 3,8
Escolaridade 217 100,0
Até Ensino Médio Incompleto 6 2,8
Ensino Médio Completo 125 57,6
Ensino Superior Completo 28 12,9
Ensino Superior com especialização 58 26,7
Local de residência 216 100,0
Porto Alegre 157 72,7
Região Metropolitana 59 27,3

A respeito dos agravos à saúde relacionados ao trabalho, 41,5% dos indivíduos afirmaram ter sofrido algum acidente ou doença. Dentre os que sofreram acidente, 74,4% deles relataram ter sido com material biológico; e 47,7% dos adoecimentos ocorreram por distúrbios osteomusculares (pescoço, membros superiores e/ou inferiores e coluna). Dentre os que tiveram algum acidente ou adoecimento, respectivamente, 15,2% e 37,0% deles estiveram afastados do trabalho em algum momento. Sobre a sensação de cansaço durante a semana, 45,1% (n=97) responderam sentir cansaço em três ou mais dias da semana.

Quanto à prevalência da SB, 18% (n=32) dos participantes apresentaram Perfil 1 e 11,0% (n=23), Perfil 2 (com presença de culpa). A análise de regressão linear simples para SB Perfil 1 apresentou as seguintes variáveis independentes como explicativas: sexo, local de residência, filhos, trabalho/estudo, tipo de unidade, tempo de profissão, tempo na prefeitura, tempo na função, histórico de acidente/doença do trabalho, afastamento por doença, horas de sono nos dias úteis, cansaço, horas livres em dias úteis, horas de lazer, prática de atividade física e presença de TMC. Sete delas foram preditoras no modelo de regressão linear múltipla (Tabela 2) e, em conjunto, apresentaram alta correlação com a SB Perfil 1 (R=0,73), explicando 53,7% desse perfil de adoecimento.

Tabela 2. Modelo de Regressão Linear Múltipla e Preditores da Síndrome de Burnout Perfil 1 

Variáveis R2 B DP β t Valor p
TMC 0,372 0,077 0,013 0,487 6,065 0,000
Tipo de unidade 0,409 -0,208 0,089 -0,163 -2,324 0,022
Cansaço 0,433 0,142 0,053 0,219 2,705 0,008
Filhos 0,455 -0,342 0,093 -0,255 -3,674 0,000
Tempo de profissão 0,487 0,000 0,000 0,174 2,517 0,013
Trabalho/estudo 0,515 0,265 0,095 0,196 2,788 0,006
Local de residência 0,537 -0,235 0,101 -0,154 -2,336 0,021
R=0,733 R2=0,537 R2 ajustado=0,509

Regressão linear múltipla pelo método Stepwise.

Com a análise dos coeficientes de regressão padronizados (β), na Tabela 2, constatou-se que as variáveis preditoras para SB no Perfil 1 foram: presença de TMC, não possuir filhos, maior frequência de cansaço, apenas trabalhar (ao contrário de estudar e trabalhar), maior tempo de profissão, trabalhar em UBS e residir em Porto Alegre.

Na análise de regressão linear simples para SB Perfil 2, por sua vez, entraram como explicativas as mesmas variáveis independentes da SB Perfil 1, acrescidas da variável horas extras. No modelo de regressão linear múltipla (Tabela 3), cinco variáveis aparecem como preditoras, apresentando, em conjunto, alta correlação com a SB Perfil 2 (R=0,71) e variância explicada de 51,0%. Analisando-se os coeficientes de regressão padronizados (β), os preditores para SB Perfil 2 (Tabela 3) foram: presença de TMC, não possuir filhos, apenas trabalhar, maior frequência de cansaço e maior tempo de profissão. Essa repetição de variáveis preditoras no Perfil 1 e Perfil 2 indica similaridade no adoecimento nos dois perfis e uma evolução da SB para um modo mais grave de adoecimento.

Tabela 3. Modelo de Regressão Linear Múltipla e Preditores da Síndrome de Burnout Perfil 2 

Variáveis R2 B DP β t Valor p
TMC 0,389 0,068 0,011 0,497 6,078 0,000
Trabalho/estudo 0,422 0,281 0,083 0,239 3,385 0,001
Filhos 0,463 -0,286 0,082 -0,247 -3,474 0,001
Tempo de profissão 0,487 0,000 0,000 0,186 2,750 0,007
Cansaço 0,510 0,107 0,047 0,189 2,285 0,024
R=0,714 R2=0,510 R2 ajustado=0,488

Regressão linear múltipla pelo método Stepwise.

Considerando a variável TMC como a de maior variância explicada para ambos os perfis da SB (37,2% para o Perfil 1 e 38,9% para o Perfil 2), verificou-se a associação entre as variáveis em sua forma dicotômica (Tabela 4). Constatou-se que, no grupo de trabalhadores com SB em ambos os perfis houve maior percentual de pessoas com TMC do que na amostra em geral (40,7%), sendo 74,2% para o Perfil 1 e 89,5% para o Perfil 2.

Tabela 4. Associação entre Síndrome de Burnout e Transtornos Mentais Comuns 

TMC Síndrome de Burnout
Não possui
% (f)
Possui
% (f)
Total Valor p
SB Perfil 1
Ausência de TMC 66,2 (100)+ 25,8 (8)- 59,3 (108) 0,00
Presença de TMC 33,8 (51)- 74,2 (23)+ 40,7 (74)
SB Perfil 2
Ausência de TMC 65,0 (106)+ 10,5 (2)- 59,3 (108) 0,00
Presença de TMC 35,0 (57)- 89,5 (17)+ 40,7 (74)

% de coluna (f); ?²: os símbolos + e - significam respectivamente um percentual de casos significativamente maior e menor que o esperado, deslocados para a categoria (+: resíduo padronizado ajustado >1,96; - : resíduo padronizado ajustado <-1,96).

DISCUSSÃO

Estudos de prevalência da SB entre profissionais da saúde, entre 2002 e 2010, apresentam variação entre 6,9 e 35,0%, de modo que o valor encontrado no presente estudo vai ao encontro dessa realidade. Considera-se a prevalência encontrada elevada, especialmente porque os participantes eram trabalhadores na ativa7 , 23. Estima-se uma maior prevalência da SB na categoria estudada, afinal foi expressivo o número de trabalhadores afastados ou com atestado médico durante a coleta de dados.

A importante contribuição dos TMC como preditores da SB sem/com culpa (Tabelas 2 e 3) incita a análise da íntima relação entre esses dois modos de adoecimento. Considerando-se a prevalência de TMC na amostra (40,7%) e sua associação com SB em ambos os perfis (Tabela 4), observa-se o TMC como preditor de SB, apontando para um deterioro da saúde desses profissionais22 , 24 , 25. Percebe-se ser difícil distinguir fadiga crônica e transtorno mental comum, pois estar cansado se manifesta tanto pela insônia e irritabilidade, quanto pelo desânimo. Esse último fator aparenta estar associado aos processos de desilusão pelo trabalho e indolência. Na presença da SB, considera-se que esse profissional já não apresenta condições emocionais (exaustão e desânimo) e fisiológicas (sono) para desempenhar sua função26. Esses profissionais com SB e/ou TMC poderão afastar-se do trabalho em algum momento, pois a sintomatologia tende a agravar-se, afetando os colegas de equipe, que passam a ter sobrecarga de trabalho. Para o trabalhador, adoecer e/ou afastar-se pode significar uma limitação enquanto profissional capaz de promover cuidado aos usuários, resultando num decréscimo de sua eficácia profissional, além de desconfiança, desrespeito e menosprezo por parte de outros profissionais27. Nesse sentido, faz-se necessário investir em ações destinadas à Saúde do Trabalhador entre profissionais de saúde da atenção básica, para além de ações assistencialistas/diagnósticas, focando-se a promoção de saúde e a vigilância28.

O tempo de serviço apresentou-se como preditor da SB, indicando que aqueles com mais tempo de serviço apresentam maior índice de adoecimento por estarem há mais tempo expostos aos elementos laborais desfavoráveis13. Estar por mais tempo submetido a exigências organizacionais de atendimento universal/integral e qualificado (princípios norteadores do Sistema Único de Saúde) impõe aos trabalhadores uma condição conflituosa, já que a população atendida apresenta uma situação socioeconômica desfavorável e a ausência de suporte técnico impossibilitaria tal objetivo, resultando em frustração: característica central do esgotamento profissional4 , 16. A partir deste resultado, as instituições de saúde no âmbito da atenção básica necessitam revisar sua capacidade de desenvolver a saúde de seu corpo funcional, estabelecendo uma cultura organizacional que promova ações continuadas, a fim de reduzir as condições estressoras crônicas29.

Quanto à variável tipo de unidade, o preditor trabalhar em UBS, para o Perfil 1 da SB (Tabela 2), pode estar relacionado a um maior tempo de atuação desses profissionais em comparação aos que atuam nas ESFs. A maior parte (66,7%) está há dez anos na profissão, enquanto nas ESFs essa faixa de tempo corresponde a apenas 18,0%. Além disso, existe a diferença de atuação preconizada pela Política Nacional de Atenção Básica, a qual pressupõe que nas ESFs exista territorialização, equipe mínima por número de habitantes, e presença de agentes comunitários de saúde30 , 31, fatores que podem trazer melhores condições de trabalho.

As variáveis com/sem filhos e trabalho/estudo, preditoras de ambos os perfis da SB, surgem como elementos de proteção para os profissionais. Esses dois fatores levam a pensar em dimensões da vida que exigem dos trabalhadores investimentos afetivos e tempo de dedicação para além das exigências laborais. Assim como o adoecimento dos profissionais pode resultar em prejuízo não apenas no ambiente laboral, mas também nas dimensões familiar e social6 , 26 , 29 , 32, entende-se tais dimensões como protetivas, para compensar o sofrimento vivido no trabalho. A interface trabalho/família impeliria os trabalhadores a destinarem tempo para situações de caráter pessoal, fazendo-os desenvolver outras habilidades e relações afetivas/sociais que gerem satisfação e bem-estar33. Aparentemente, aqueles que assim procedem estariam mais protegidos do processo de adoecimento pela SB, pois teriam maior equilíbrio entre as frustrações profissionais e as satisfações obtidas em outras esferas de vida, como estudo e família34.

Quanto à variável cidade, infere-se que estar exposto a um maior tempo de deslocamento representa um elemento de estresse adicional. Não foram encontrados estudos prévios sobre SB que tenham mensurado essa variável. Os distritos sanitários estudados situam-se mais próximos de algumas cidades da região metropolitana do que da própria região central de Porto Alegre, sugerindo que os trabalhadores que residem na capital enfrentam maior tempo no trânsito. O estudo dessa questão, entretanto, necessita ser aprofundado.

CONCLUSÃO

A partir da análise dessas variáveis de tempo de profissão, presença dos TMC, filhos, cidade e frequência de cansaço, percebe-se que as dimensões da SB estão associadas a diferentes elementos da vida pessoal e profissional, resultando num adoecimento de caráter multi etiológico. Ao pensar, portanto, em estratégias de minimização do adoecimento, é preciso considerar a instituição de saúde de forma integral, por meio dos aspectos estruturais, funcionais e relacionais, propondo ações que qualifiquem a relação do trabalhador com seus colegas e ambiente de serviço35.

Deve-se estabelecer um equilíbrio entre interesses, expectativas e recursos que o profissional pode oferecer e aquilo que é solicitado pela instituição. Os sintomas de adoecimento, assim como o burnout, são consequência do desgaste cognitivo e emocional resultante desse embate entre elementos individuais e organizacionais6 , 26. A instituição promotora de ações em saúde para a comunidade deve, por conseguinte, desenvolver propostas para o não-adoecimento de seus trabalhadores. A inexistência dessas ações institucionais contribuiria para o adoecimento, pois o trabalhador não possui espaços para repensar a lógica de indolência, tendendo a reproduzi-la com usuários e colegas29. A culpa, dessa forma, enquanto elemento de maior gravidade na SB, dentro do modelo teórico utilizado, deverá ser um dos assuntos primeiramente abordados com as equipes pois, além dos profissionais que já apresentam o tipo mais grave, existem muitos outros apresentando o Perfil 1.

O fato deste estudo ter incluído apenas dois distritos sanitários da cidade de Porto Alegre impede que os resultados sejam generalizados para todos os profissionais da saúde na atenção básica; no entanto, vão ao encontro da literatura4 , 6 , 13. Os resultados apontam a necessidade de serem realizadas ações destinadas à promoção da saúde desses trabalhadores, uma vez que já foi assinalado o risco para o seu adoecimento34.

Esse, portanto, é um campo em construção, que precisa considerar as especificidades da saúde pública no Brasil. A organização do trabalho na saúde cria um contexto de adoecimento dos próprios cuidadores, fazendo-se necessário, portanto, contextualizar o fenômeno para que as propostas de humanização da saúde sejam concretizadas.

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