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Presbiacusia: será que temos uma terceira orelha?

Presbiacusia: será que temos uma terceira orelha?

Autores:

Luis Roque Reis,
Pedro Escada

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Otorhinolaryngology

versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686

Braz. j. otorhinolaryngol. vol.82 no.6 São Paulo out./dez. 2016

http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2015.12.006

Introdução

As alterações auditivas relacionadas à idade são a causa mais frequente de perda auditiva neurossensorial em adultos.1 A presbiacusia é uma perda gradual e bilateral da audição associada ao envelhecimento, causada pela degeneração progressiva das estruturas cocleares e vias auditivas centrais. Essa perda auditiva geralmente se inicia nas altas frequências e depois gradualmente progride para os sons de frequências médias e baixas.2 O início da presbiacusia e sua evolução estão relacionados com a variabilidade interindividual, com o envolvimento de fatores genéticos e ambientais.3

Devido às dificuldades auditivas enfrentadas pelos indivíduos com presbiacusia, a leitura orofacial é uma estratégia usada com o objetivo de ajudar no reconhecimento da mensagem falada, proporcionando uma comunicação mais eficaz.4 Trata-se de um processo no qual um observador compreende o discurso, ao observar os movimentos dos lábios do orador, sem ouvir a sua voz.5 Esse reconhecimento do discurso por meio de pistas visuais inclui não apenas o movimento articulatório durante a fala, mas também uma observação cuidadosa do orador e de seus comportamentos associados, como entonação, expressão facial e movimentos corporais.6 Neste estudo, escolhemos o termo leitura orofacial, embora na literatura outros termos sejam usados.7

Todos os indivíduos usam a leitura orofacial. De fato, mesmo os indivíduos com visão e audição normais usam a leitura orofacial inconscientemente, e o seu uso permite aumentar a inteligibilidade na presença de ruído. Estudos mostram que a leitura orofacial ativa o córtex auditivo em indivíduos com audição normal, na ausência de estimulação auditiva.8,9

Não há estudos na literatura que avaliem a importância da leitura orofacial em indivíduos com presbiacusia e, considerando as particularidades de cada língua, que abordem esse assunto em português de Portugal (PPt).

A nossa hipótese foi que, na presbiacusia, a inteligibilidade das palavras é auxiliada e complementada pela leitura orofacial, de tal modo que a visualização do rosto do interlocutor articulando as palavras funciona como uma terceira orelha. Esse estudo tem como objetivo avaliar como a leitura orofacial aumenta a inteligibilidade na presbiacusia e determinar a significância estatística dessa melhora.

Método

Este estudo foi analisado e aprovado pelo Comitê de Ética em Saúde (CES) do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental (CHLO), Lisboa, em 16 de março de 2015. Os indivíduos concordaram em participar da pesquisa e assinaram o termo de consentimento informado.

Participantes

A amostra incluiu pacientes do Departamento de Otorrinolaringologia do Hospital Egas Moniz, no CHLO, enviados ao Departamento de Audiologia para exames audiológicos. É um estudo analítico e transversal, com uma amostra de conveniência composta por 11 indivíduos (22 orelhas) que preencheram os seguintes critérios de inclusão: idade de 55 anos ou mais, perda auditiva neurossensorial bilateral e simétrica compatível com presbiacusia, timpanograma do tipo A (classificação de Jerger), audiograma vocal com limiar de recepção da fala (LRF) ≥ 40 dB, capacidade de comunicação oral, PPt como primeira língua e aceitação do termo de consentimento informado, após esclarecimentos dos procedimentos a serem realizados. Os indivíduos com os seguintes critérios foram excluídos: presença de zumbido que pudesse interferir na audiometria, doença da orelha externa ou média, distúrbios psiquiátricos e/ou neurológicos que pudessem interferir na linguagem, alterações visuais graves ou não uso de lentes corretivas durante a avaliação.

Instrumentos de pesquisa

Todos os pacientes foram submetidos ao protocolo de avaliação, constando de um perfil médico e auditivo completo. Um estudo audiológico (imitanciometria, audiograma tonal e vocal) foi realizado, após o qual os pacientes foram reavaliados no consultório. Se os critérios de inclusão fossem atendidos, duas novas audiometrias vocais seriam feitas sequencialmente, após várias semanas, sem e com a visualização do rosto do fonoaudiólogo para quantificar a melhora do LRF quando associado à leitura orofacial. Todos os audiogramas vocais sem e com leitura orofacial foram realizados pela mesma fonoaudióloga, e sequência desse procedimento foi realizada com o conhecimento do paciente. Os exames foram conduzidos em uma sala de teste à prova de som, de acordo com a ISO 8253 e 389, com um audiômetro Madsen Electronics, modelo Orbiter 922 e fones de ouvido TDH39, fones de exclusão de ruído ME70 e condutor ósseo B-71. Na audiometria vocal, o estímulo consistiu em fonemas dissílabos com equilíbrio fonético para PPt. A sequência de fonemas foi usada de forma randômica, com análise dos seguintes parâmetros: detecção, recepção e discriminação máxima dos limiares da fala. Os resultados foram apresentados na forma de gráfico x-y (curva de inteligibilidade), comparando a intensidade do estímulo com a porcentagem das palavras percebidas. O gênero não foi estudado como uma variável.

Procedimentos estatísticos

Os dados foram coletados em um banco de dados e o estudo estatístico feito com o Programa Estatístico para Ciências Sociais (SPSS), versão 20.0 para Windows. Na primeira fase, testamos as condições para aplicação dos testes estatísticos (normalidade e homocedasticidade), o que nos possibilitou escolher os testes paramétricos ou não paramétricos. Para avaliar o efeito da leitura orofacial sobre a discriminação, inicialmente planejamos usar, no caso dos testes paramétricos, o teste t de Student para as amostras pareadas e, no caso de não paramétrico, o teste de Wilcoxon. Consideramos um nível de significância de 0,05 (5%), com intervalo de 95%. Verificamos se houve diferença estatisticamente significante do LRF e do limiar de discriminação.

Resultados

A idade dos participantes avaliados variou de 57 a 82 anos, com média de idade de 70 ± 11,51 anos e mediana de 69,5 anos. Os valores do LRF foram registrados com e sem leitura orofacial. Obtiveram-se assim duas amostras com dados quantitativos e pareados, ou seja, a mesma pessoa foi avaliada antes e depois (respectivamente sem e com leitura orofacial). Os principais dados referentes à caracterização do grupo estudado são apresentados na tabela 1. A partir da análise descritiva, verificou-se que o resultado da diferença é, em média, 23,3 dB, com mediana de 25 dB, desvio padrão de 7,9 e valores mínimos e máximos de 10 e 35 dB, respectivamente.

Tabela 1 Análise descritiva dos resultados (valores do LRF com e sem RF: leitura orofacial) 

Estatística Erro padrão
Sem RF
Média 57,22 5,34
Intervalo de confiança de 95% para a média
Limite inferior 44,90
Limite superior 69,54
Mediana 45,00
Variância 256,94
Desvio padrão 16,03
Mínimo 40,00
Máximo 80,00
Com RF
Média 33,89 4,39
Intervalo de confiança de 95% para a média
Limite inferior 23,76
Limite superior 44,02
Mediana 35,00
Variância 173,61
Desvio padrão 13,18
Mínimo 15,00
Máximo 50,00
Diferença
Média 23,33 2,64
Intervalo de confiança de 95% para a média
Limite inferior 17,26
Limite superior 29,41
Mediana 25,00
Variância 62,50
Desvio padrão 7,91
Mínimo 10,00
Máximo 35,00

Comparando as médias do desempenho, os indivíduos com leitura orofacial apresentaram melhores resultados. Houve uma correlação positiva entre a melhora do LRF e a leitura orofacial, com uma redução média de 23,3 dB. Para aplicar o teste t pareado, os dados da diferença (entre as duas amostras) precisavam apresentar uma distribuição normal (condição de aplicabilidade). Assim, como o tamanho da amostra foi inferior a 50, usámos o teste de Shapiro-Wilk (tabela 2) para verificar a normalidade da amostra.

Tabela 2 Resultados dos testes da normalidade da amostra 

Kolmogorov-Smirnov Shapiro-Wilk
Estatística df Sig. Estatística df Sig.
Sem RF 0,333 9 0,005 0.802 9 0,022
Com RF 0,194 9 0,200 0.919 9 0,382
Diferença 0,139 9 0,200 0.971 9 0,906

O valor p no teste de Shapiro-Wilk foi de 0,906 (superior a 0,05); então, a hipótese nula não foi rejeitada. Portanto, concluímos que os dados da diferença apresentaram uma distribuição normal e o teste t pareado pôde ser usado. Conclusão igual foi extraída da análise do diagrama de blocos (fig. 1). Estabelecemos uma hipótese nula para os pares no teste t (µ0 igual a zero); ou seja, que não haveria diferença com e sem leitura orofacial.

Figura 1 Diagrama de blocos dos dados que exibem a variação na amostra. 

Como o valor p no teste t pareado (tabela 3) foi zero (< 0,05), a hipótese nula foi rejeitada e H1 aceite. Portanto, conclui-se que houve uma diferença estatisticamente significante na discriminação entre os indivíduos com e sem leitura orofacial. Conclusão igual foi extraída da análise dos intervalos de confiança (a não inclusão de zero é equivalente a dizer RH0).

Tabela 3 Verificação da significância dos resultados usando o teste t pareado. 

Par Diferença pareada t df Sig. (bicaudal)
Média Desvio padrão Erro padrão médio IC de 95% da diferença
Inferior Superior
Sem-com 23,33 7,91 2,64 17,26 29,41 8,85 8 0.000

Discussão

A produção de cada fonema desencadeia uma posição característica das estruturas faciais, permitindo a um conhecedor da língua deduzir, até certo ponto, qual foi o fonema produzido. A informação visual da articulação da fala aumenta o processamento auditivo, quando associada à informação direta sobre o conteúdo do sinal, aumentando a discriminação dos fonemas.

Esse fenômeno pode ser constatado na prática clínica diária, quando falamos com as pessoas que possuem deficiência auditiva em decorrência de presbiacusia. Se falarmos primeiro com a boca coberta e depois com a boca descoberta, a uma intensidade próxima do nível de discriminação do paciente, a visualização de nossos rostos melhora a inteligibilidade.

Não há estudos na literatura que abordam a importância da leitura orofacial na inteligibilidade em pacientes com perda auditiva devido à presbiacusia e, particularmente, na língua portuguesa (PPt). Este estudo demonstra que esses indivíduos apresentam melhor desempenho na inteligibilidade das palavras faladas quando a audição das mesmas é associada à leitura orofacial. A importância desse estímulo para reforçar a discriminação foi tão notória, que a visualização do rosto do interlocutor funciona como uma "terceira orelha".

Dada a relevância dos resultados obtidos, a publicação do estudo foi considerada importante, embora ele apresente limitações quanto ao tamanho da amostra, principalmente devido ao número de recusas. Uma melhora da significância estatística dos resultados seria possível com uma amostra mais adequada, avaliando se uma perda maior da discriminação (aumento do LRF) estaria correlacionada com o aumento da importância da leitura orofacial e se existe uma variabilidade com o gênero e/ou idade dos pacientes, apesar de o grau da perda auditiva na presbiacusia apresentar variabilidade devido a fatores genéticos e ambientais.

Os resultados deste estudo estão de acordo com os de outros realizados em perda auditiva neurossensorial, mas cuja causa não foi a presbiacusia. Eles demonstraram que indivíduos com este tipo de perda auditiva apresentaram melhor capacidade de leitura orofacial10-15 e discordam apenas com os resultados de um estudo.16 Esse achado pode ser explicado pelo uso rotineiro desta capacidade nos indivíduos portadores de deficiência auditiva, que é desenvolvida com o propósito de superar a perda auditiva, proporcionando uma comunicação mais eficaz e, consequentemente, melhorar a autoestima e a sociabilidade.17,18 O nível de escolaridade também parece ser relevante para leitura orofacial em deficiência auditiva.19

Um outro ponto importante levantado por este estudo, é que o entendimento da importância da leitura orofacial facilita a compreensão desses pacientes sobre o papel da reabilitação auditiva (incluindo terapia para leitura labial, e ensinamentos de estratégias comportamentais e situacionais) e adaptação do aparelho de amplificação sonora (AAS). Esta reabilitação pode permitir uma melhoria na capacidade de leitura orofacial, com um impacto positivo na vida do paciente.15 Seria importante incluir reabilitação antes e durante adaptação do AAS permitindo o uso máximo da informação auditiva e visual, permitindo uma comunicação mais eficaz na vida social e familiar4,20 e prevenindo a falta de adesão às AAS, por não preencherem, isoladamente e totalmente, as dificuldades auditivas vivenciadas por idosos.21

Conclusão

Concluímos que os indivíduos deste estudo, cuja língua nativa é PPt e que são portadores de deficiência auditiva causada por presbiacusia, apresentaram melhor desempenho na inteligibilidade com a leitura orofacial. Estudos mais abrangentes são necessários, especialmente aqueles que correlacionem a importância da leitura orofacial com a idade e o grau de perda auditiva. Também seria importante ampliar a compreensão da comunicação na presbiacusia e extrapolar a importância da reabilitação auditiva e do ajuste aos aparelhos auditivos nesses pacientes, proporcionando uma melhor integração social e uma melhor qualidade de vida.

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