On-line version ISSN 1982-0194
Acta paul. enferm. vol.27 no.3 São Paulo May/June 2014
http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201400044
O termo inglês Burnout significa “queimar-se” ou “consumir-se”, sendo empregado para caracterizar um conjunto de sintomas predominantemente evidenciados em profissionais que lidam com pessoas – professores, enfermeiros e médicos, por exemplo –, que se queixam de esgotamento físico e mental, irritabilidade, perda do interesse pelo trabalho e sentimento de autodesvalorização.
Constata-se que esse trabalhador perde o sentido de sua relação com o trabalho; as atividades laborais deixam de ser importantes; e qualquer esforço lhe parece inútil, indicando um colapso, que sobrevém após a utilização de toda a energia disponível.(1) Nessa perspectiva, verifica-se que a síndrome de Burnout decorre de uma cronificação do estresse ocupacional, o qual tem consequências negativas relacionadas às esferas individuais, profissional, familiar, social e institucional, perdendo o trabalhador a capacidade de se (re)adaptar às demandas existentes no contexto laboral.(1-3)
Sabe-se que a residência insere o recém-graduado no contexto do trabalho, proporcionando-lhe a oportunidade de adquirir experiência profissional e título de especialista na área escolhida.(3,4) No entanto, há de se considerar que esse profissional pode apresentar fatores predisponentes para o desenvolvimento de desgaste físico e emocional, ao qual também podem se somar algumas características, como, por exemplo, as relacionadas à idade, ao estado civil, ao idealismo, ao tempo de profissão, ao tempo na instituição, aos conflitos de papel e ao suporte familiar, que poderão potencializar a vulnerabilidade à síndrome de Burnout.(4)
Esse sujeito exerce uma profissão voltada para o cuidado/ajuda ao outro, o que também se caracteriza como elemento de intenso sofrimento psíquico, por lidar com a dor, o sofrimento, a morte e a miséria, além de preocupações e problemas de outros seres humanos.(2,4)
Diante da contextualização apresentada, evidenciou-se uma multiplicidade de fatores que podem resultar na síndrome de Burnout em residentes. Nessa perspectiva, selecionou-se, como problemática desta pesquisa, a seguinte questão: Qual a ocorrência da síndrome de Burnout em enfermeiros residentes? Desse modo, o objetivo foi identificar a ocorrência da síndrome de Burnout em residentes de enfermagem.
Estudo transversal realizado em um hospital universitário do Rio de Janeiro, cidade localizada no Estado do Rio de Janeiro, na Região Sudeste do Brasil. A coleta de dados ocorreu no período de julho e setembro de 2012.
A população da pesquisa foi constituída por 48 residentes de enfermagem do segundo ano, lotados nos programas de: clínica médica (9), terapia intensiva (7), clínica cirúrgica (6), cardiovascular (5), nefrologia (5), obstetrícia (4), pediatria (3), saúde do adolescente (3), centro cirúrgico (2), psiquiatria e saúde mental (2), neonatologia (1) e enfermagem do trabalhador (1). A escolha por residentes de enfermagem do segundo ano foi para que não ocorresse indução de resultados positivos para síndrome de Burnout, pois indivíduos com menor tempo de aproximação com a realidade laboral estão propensos ao desenvolvimento da síndrome.
Foram utilizados, como instrumento de coleta de dados, o inventário de Maslach Burnout Inventory−General Survey e um questionário para levantamento das características sociodemográficas e ocupacionais.
Os dados foram tabulados com o aplicativo Excel, utilizando-se funções estatísticas e lógicas, que permitiram criar tabelas, para qualificar e quantificar características sociodemográficas e ocupacionais e as três dimensões da síndrome. Posteriormente, analisaram-se os resultados à luz da revisão de literatura, destacando-se aspectos ligados à organização do trabalho hospitalar, à síndrome de Burnout e ao conteúdo relativo à residência de Enfermagem.
Os pontos de corte utilizados foram calculados por meio de percentil e coeficientes de variação para cada dimensão em analogia ao estudo do grupo de estudos mencionado anteriormente, obtendo-se, para Exaustão Emocional, percentis de corte ≥0,68 e ≤0,29, equivalentes a 27 e 20 pontos, respectivamente; sobre Despersonalização, obtiveram-se percentis ≥0,69 e ≤0,21, representados por 11 e 3 pontos, respectivamente; e sobre Realização Profissional, percentis ≥0,76 e ≤0,28, que equivalem a 32 e 24, respectivamente.
Foi avaliada a confiabilidade interna do instrumento por meio do coeficiente alfa de Cronbach, obtendo um valor >0,70, ou seja, o Maslach Burnout Inventory totalizou coeficiente igual a 0,7694, caracterizando como confiável e com boa consistência interna. Assim, o coeficiente de confiabilidade na dimensão Exaustão Emocional foi de 0,8050, em Despersonalização 0,8287 e em Realização Profissional 0,8227.
O desenvolvimento do estudo atendeu as normas nacionais e internacionais de ética em pesquisa envolvendo seres humanos.
O grupo estudado apresentou como características sociodemográficas: indivíduos predominantes do gênero feminino (91,66%), idade média de 26 anos (desvio padrão ±2,9), solteiros (83,33%), sem filhos (87,50%), procedentes do Rio de Janeiro (52,33%), residindo com a família (77,08%), formação acadêmica média entre um e dois anos (70,83%).
Identificou-se que dez residentes (20,83%) apresentaram alterações nas três dimensões (Exaustão Emocional, Despersonalização e Realização Profissional) alertando para o desenvolvimento da síndrome. Esse quantitativo encontrado foi classificado a partir da somação dos pontos atribuídos às questões propostas aos 48 residentes – pontos de corte sem considerar as variáveis particulares do perfil sociodemográfico e ocupacional.
Foram descritos como dados relativos às características sociodemográficas dos residentes que apresentaram alterações nas dimensões Exaustão Emocional, Despersonalização e Realização Profissional: indivíduos com média de idade de 26 anos, no intervalo etário de 23 a 33 anos, todos do gênero feminino, solteiros (90%) e sem filhos (70%). Em relação à procedência e à moradia, 80% dos indivíduos eram do Estado do Rio de Janeiro e 77,77% moravam com familiares.
Ressalta-se, ainda, que os residentes de enfermagem com alterações nas três dimensões levavam, em média, 1 hora e 12 minutos para chegar ao trabalho e 90% possuíam formação acadêmica inferior a 3 anos, ou seja, eram recém-formados.
Em relação aos participantes que apresentaram tais alterações, 60% atuavam em unidades destinadas a cuidados especializados – 20% do programa cardiovascular e 40% de terapia intensiva; os demais residentes estavam distribuídos nos programas de centro cirúrgico (10%), clínica médica (10%), nefrologia (10%) e obstetrícia (10%).
Quanto aos dados relacionados às características laborais, 60% dos indivíduos afastaram-se temporariamente do trabalho (até 15 dias) por doenças osteomusculares, estresse, ansiedade, herpes e labirintite, dentre outras patologias. Vale destacar que alguns indivíduos apresentaram afastamento das atividades laborais por mais de uma doença e em mais de uma vez ao longo da atuação como residentes de enfermagem, até o período da coleta dos dados.
Apesar do quantitativo de residentes com alterações nas dimensões que caracterizam o Burnout não ser representativo, observou-se que houve um número de indivíduos com pontos de corte próximo da classificação de alterações nas respectivas dimensões, ou seja, 43,75% apresentaram médio valor de Exaustão Emocional, 37,50% apresentaram médio valor em Despersonalização e 66,66%, baixo valor em Realização Profissional (Tabela 1), o que levou a considerá-los como propensos ao desenvolvimento da síndrome.
Tabela 1 Distribuição dos resultados das dimensões de Maslach Burnout Inventory (MBI)
Dimensões do MBI | n (%) | Média pontos (DP) | Coeficiente de variação | Ponto de corte | Alfa de Cronbach | Alfa de Cronbach (MBI) | ||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Mínimo | Máximo | |||||||
EE | Alto | 16(33,33) | 24(±7) | 0,303 | 0,29 | 0,68 | 0,805 | 0,7694 |
Médio | 21(43,75) | |||||||
Baixo | 11(22,91) | |||||||
DE | Alto | 16(33,33) | 8(±6) | 0,746 | 0,21 | 0,69 | 0,8287 | |
Médio | 18(37,50) | |||||||
Baixo | 14(29,16) | |||||||
RP | Alto | 16(33,33) | 28(±6) | 0,223 | 0,28 | 0,76 | 0,8227 | |
Médio | - | |||||||
Baixo | 32(66,66) | |||||||
Síndrome de Burnout | 10(20,83) |
Partindo para a análise individualizada dos pontos de cortes por variáveis, encontraram-se, além dos dez residentes anteriores, outros quatro (8,33%) indivíduos com alterações nas dimensões características da síndrome, sendo classificados como propensos a ela. Esses indivíduos possuem características similares aos que apresentaram alterações para o Burnout: moravam sozinhos ou com terceiros; residiam em outros municípios; levavam em média 1 hora e 23 minutos para chegar ao trabalho; e estavam lotados nos programas de enfermagem cirúrgica e enfermagem de saúde do adolescente.
A limitação do estudo está relacionada ao delineamento transversal, que não possibilitou o estabelecimento de relações causais. A saúde dos residentes de enfermagem merece atenção devido ao perfil apontado e aos dados obtidos, que confirmam haver uma vulnerabilidade ao adoecimento psíquico, pois os participantes apresentaram características de suscetibilidade.
Os resultados encontrados podem subsidiar o desenvolvimento de pontos relevantes de reflexão, como prevenção, detecção e condutas minimizadoras da síndrome de Burnout em residentes de enfermagem pelos serviços de treinamento das instituições promotoras desse tipo de especialidade de ensino-aprendizado, bem como pelos serviços de saúde dos trabalhadores de instituições, que contam com tal modalidade de ensino.
Diante dos resultados descritos, nota-se que há similaridade com aqueles encontrados na literatura, o que evidencia que os indivíduos com alterações sugestivas para o desenvolvimento do Burnout possuem características semelhantes de suscetibilidade. Em estudos realizados com residentes de enfermagem e profissionais de fisioterapia, foram encontrados indivíduos jovens, do gênero feminino, solteiros, sem filhos e no início de sua carreira profissional.(4,5) Outra característica que merece destaque é a de que o residente, além de desenvolver atividades laborais, acumula também atividades acadêmicas, que podem favorecer ao estresse e ao desgaste físico e mental, como trabalhos acadêmicos, provas, trabalho de conclusão de curso, aulas teóricas, dentre outras.(5)
Os resultados levantados acerca da idade (faixa etária de 23 a 33 anos) demonstraram que o grupo de residentes possuía características bastante peculiares, ou seja, eram, em sua maioria, recém-formados – com cerca de 1 ou 2 anos de graduados – e inserindo-se no mundo do trabalho. Nesse sentido, podiam apresentar pouca habilidade e experiência prática, tornando-os ainda mais inseguros e vulneráveis à síndrome de Burnout. Nessa perspectiva, o pouco tempo de atuação profissional, adicionado à pouca idade, pode influenciar a saúde dos residentes, pois a finalização da graduação e a inserção no mercado de trabalho, no geral, podem gerar estresse, uma vez que se trata de uma vivência nova e, na maior parte das vezes, o novo causa estranhamento e medo.(1) Dessa forma, é frequente que o recém-formado tenha pouca habilidade para lidar com as tensões do mundo do trabalho. Assim, esta é uma relevante variável para o entendimento da problemática pontuada.
Corroborando essa análise, infere-se que, à medida que os profissionais adquirem habilidade, competência e segurança em sua prática profissional, decorrente do exercício da função, aumenta a possibilidade de enfrentamento das situações que causam estresse e, por sua vez, diminui a possibilidade de desenvolvimento de estresse crônico e da síndrome de Burnout.(6)
Outra variável que merece destaque é o gênero. Os resultados apreendidos não se distanciam dos de outras pesquisas realizadas com profissionais de Enfermagem, os quais demonstram que as mulheres possuem uma propensão ao desenvolvimento da síndrome. Sabe-se que a profissão é representada por uma força de trabalho eminentemente feminina e, em se tratando de questões de gênero feminino, em um mundo androcêntrico, as mulheres ainda sofrem desvantagens, como a responsabilidade de ter que assumir as tarefas domésticas e de educação dos filhos, que caracterizam uma outra jornada de trabalho − esta, porém, sem remuneração, mas que desgasta e estressa as mulheres.(2,7,8)
Em relação ao estado civil e à quantidade de filhos, estudos demonstram que esses fatores podem ser considerados como de proteção para a síndrome(3) e os resultados encontrados mostram que os residentes de enfermagem que apresentaram o desenvolvimento do Burnout são predominantemente solteiros e sem filhos, corroborando, assim, a suscetibilidade para a síndrome. Estudos inferem que ter com quem dividir os problemas da vida e do mundo do trabalho com alguém escolhido para participar das experiências vivenciais caracteriza-se como uma importante proteção contra o sofrimento psíquico e, portanto, contra as doenças mentais.(2,3)
A variável procedência representa relevante dado de análise, pois, no geral, a maioria dos residentes provenientes de outros estados saiu de suas cidades para cursarem a especialização na modalidade residência. Dessa forma, no período do curso, muitas vezes, encontra-se morando sozinha ou com terceiros, sendo este um fator determinante para redução dos vínculos afetivos, corroborando a possibilidade de sofrimento psíquico. Além disso, ter que se adaptar a outros costumes e, muitas vezes, a culturas diferenciadas (presentes no nosso país considerando a extensão territorial e os diferentes povos colonizadores) pode resultar em estresse e vulnerabilidade ao Burnout.(3)
Outro dado importante foi o contexto laboral do cuidado especializado – a Terapia Intensiva e a Enfermagem Cardiovascular – que apresentou maior ocorrência da síndrome, conforme outros estudos.(4,5) Sabe-se que os programas de residência, que englobam as unidades de cuidados intensivos, diferenciam-se porque a assistência prestada volta-se para o paciente crônico e/ou gravemente enfermo, o que demanda técnicas especializadas e diferentes procedimentos, além de maior disponibilidade de tempo para atender às necessidades dos pacientes. Por outro lado, os residentes, muitas vezes, assumem as demandas de assistência direta ao paciente mais grave, as quais requerem elevadas habilidades (psicocognitiva e motora) que, frequentemente, traduzem-se em sofrimento psíquico, pela pouca experiência profissional.(4)
Entretanto, os residentes inseridos nos demais contextos de trabalho possuem características não menos importantes para o desencadeamento do Burnout. Isso porque esses profissionais estão inseridos em um hospital universitário de alta complexidade, considerado centro de formação de recursos humanos e de desenvolvimento de tecnologia para a área de saúde, o que acarreta o desenvolvimento de múltiplas e refinadas atividades, e faz com que o profissional tenha que se adaptar continuamente às características desse meio laboral, num processo desgastante de organização e reorganização interna.(9) Esta também caracteriza-se como uma importante variável que pode favorecer ao adoecimento psicofísico e acarretar a ocorrência da síndrome de Burnout.
Quanto aos dados relativos ao afastamento do trabalho por motivo de doença, essa variável obteve uma grande porcentagem de indivíduos que relataram afastamento laboral. As causas dessas licenças médicas eram enfermidades que tinham nexo com o estresse e o sofrimento psíquico.(6) Verifica-se que as doenças osteomusculares são entendida como doença de sobrecarga física e mental; o herpes labial frequentemente aparece em situações de estresse, assim como a labirintite, aproximando-se, desse modo, dos dados da literatura.(8)
Outro dado importante está relacionado aos indivíduos caracterizados como propensos ao desenvolvimento do Burnout, os quais apresentaram elevada Exaustão Emocional e Despersonalização, e baixos pontos para Realização Profissional, mas não se encontraram no limite de corte caracterizado para a síndrome. Contudo, vale ressaltar que essas variações tomam relevância expressiva, pois tais indivíduos, por diversas circunstâncias, podem manter, reduzir ou aumentar a pontuação em cada dimensão. Tal variância ocorre porque o desenvolvimento do Burnout envolve uma multiplicidade de fatores, dinâmicos e multifacetado,(2,9) assim, caso o indivíduo propenso à síndrome, por exemplo, mude de setor ou encontre um parceiro pessoal que o acolha em seus momentos de sofrimento, esses podem ser considerados fatores de proteção contra o desenvolvimento da síndrome, reduzindo as pontuações no MBI.
Todavia, o aumento do índice na dimensão Exaustão Emocional pode sugerir a existência de um processo da síndrome em curso, por se tratar do traço inicial do Burnout, o qual decorre, principalmente, da sobrecarga e do conflito pessoal nas relações interpessoais.(3,5) Aponta-se também que a Exaustão Emocional é um preditor da Despersonalização que, por sua vez, é uma dimensão preditora da redução da Realização Profissional. Assim, esse residente pode passar da condição de propenso para a de alterações significativas para o desenvolvimento da síndrome.
Os resultados apontaram para o desenvolvimento da síndrome de Burnout em um grupo de residentes de enfermagem e revelaram alguns indivíduos propensos a ela. Ser jovem, do gênero feminino, solteiro, sem filhos, e estar em início da carreira profissional e alocado em programas de residência de alta complexidade (cardiovascular e terapia intensiva) foram fatores predisponentes à síndrome de Burnout em um grupo de residentes de enfermagem.