On-line version ISSN 1982-0194
Acta paul. enferm. vol.30 no.1 São Paulo Jan./Feb 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201700010
A população privada de liberdade (PPL) tem evidenciado maior vulnerabilidade às infecções sexualmente transmissíveis (IST), tendo em vista as condições existentes nas unidades prisionais, que aumentam as chances de transmissão de doenças infecciosas, como a hepatite B. Infraestrutura precária, superlotação das celas, baixo nível socioeconômico e práticas sexuais de risco, potencializam as possibilidades de infecção.1-3
Diante desta problemática, o tema saúde nas prisões vem sendo abordado constantemente pela comunidade científica que o encara como questão de saúde pública a ser enfrentada, destacando a necessidade da implantação de estratégias específicas para este segmento populacional.4
A assistência à saúde figura como elemento que contribui para o retorno à convivência em sociedade, sendo a atenção à saúde da população privada de liberdade, prevista e garantida legalmente, constando no elenco mínimo de procedimentos as atividades relativas à prevenção, o diagnóstico precoce e o tratamento oportuno às IST.5,6
Estudar a ocorrência, assim como os fatores associados, da hepatite B em instituições prisionais é relevante à saúde pública, uma vez que os comportamentos de risco de seus internos podem contribuir para a manutenção da cadeia de transmissão da infecção. Assim, o objetivo do presente estudo foi estimar a prevalência do marcador HBsAg, correlacionando-a a fatores associados em internos de sistema prisional de um estado do Nordeste brasileiro.
Trata-se de um inquérito epidemiológico, do tipo transversal, realizada em 12 unidades penais do Estado Piauí, distribuídas em nove municípios, com concentração na capital do Estado. Para a seleção da população do estudo, dentro de um universo de 2.955 internos, optou-se pelos de regime fechado e semiaberto (n=2.839). Foram excluídos os que não estavam em condições de responder as questões de interesse do estudo (n=73); e aqueles internos que, no período da coleta de dados, se encontravam em unidades com motins/rebeliões (n= 464). Além disso, 171 recusaram participação, redundando em 2.131 participantes.
Os dados foram coletados mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) da população estudada, no período de janeiro a julho de 2014, pelos pesquisadores e equipe de profissionais especificamente treinados em testagem e aconselhamento em IST/Aids/Hepatites virais.
A coleta ocorreu em duas etapas, nos pavilhões das unidades prisionais, de modo a garantir privacidade durante a entrevista, com o acompanhamento da equipe de segurança de cada instituição. Inicialmente, realizou-se entrevista por meio da utilização de formulário pré-testado, adaptado de outros estudos.7,8 A fase seguida, de testagem, foi feita por meio de testes rápidos pelo método da imunocromatografia lateral para detecção do HBsAg (Teste VIKIA HBsAg da empresa BioMérieux Brasil S/A). Os testes e os materiais de coleta foram fornecidos pela Secretaria de Estado da Saúde do Piauí.
O teste rápido para Hepatite B é de triagem, portanto, os casos positivos foram encaminhados pela Secretaria de Justiça aos serviços de referência estadual ou municipal, para realização de testes sorológicos confirmatórios e para a execução dos seguimentos necessários. Ao final, foram emitidos laudos relativos ao exame, em duas vias (uma para o pesquisador e outra que foi anexada ao prontuário do interno), com a interpretação final dos resultados das amostras: “Amostra Reagente para Hepatite B ou Amostra não reagente para Hepatite B”.
A variável dependente foi a positividade no teste rápido para HBsAg. As variáveis independentes foram: sociodemográficas (idade, sexo, cidade de origem, estado civil, cor da pele, escolaridade, renda pessoal); padrão do uso de álcool e outras drogas (tipo e frequência); exposição parenteral (compartilhamento de materiais perfurocortantes, ter tatuagem, ter piercing); comportamentos sexuais (prática sexual, número de parceiros, critério para seleção de parceria sexual, uso de camisinha, motivo do não uso da camisinha, uso de bebidas alcóolicas e de drogas antes das relações sexuais); informações sobre hepatite B (sobre a infecção e a vacina), existência de alguma IST na vida, informação sobre como prevenir IST; e situação vacinal.
Para análise da situação vacinal, foi considerado com esquema completo contra hepatite B, aqueles que haviam recebido as três doses da vacina. Esse dado foi levantado por meio de informação verbal, considerando-se a indisponibilidade de cartões de vacina nos ambientes prisionais investigados.
Os dados foram digitados e analisados com a utilização do Software Statistical Package for Social Science (SPSS) versão 20.0. Na estatística inferencial foram aplicados testes de hipóteses bivariados e multivariados. O teste bivariado de associação entre as variáveis qualitativas utilizado foi o de Regressão Logística Simples, referido aqui como odds não-ajustado, com o objetivo de selecionar os possíveis fatores que poderiam explicar a prevalência de hepatite B. Como critério de seleção para as categorias de referência adotou-se a importância clínica. As variáveis, que na análise bivariada apresentaram valor de p < 0,05, foram submetidas ao modelo multivariado de regressão logística, aqui denominado de odds ajustado.9
Para todas as demais análises foi mantido o nível de significância de 0,05 para rejeição da hipótese nula. Foram examinados a ausência de multicolinearidade entre as variáveis selecionadas pela análise bivariada, por meio do FIV (Variance-inflation factor) e o ponto de corte para a existência de multicolinearidade adotado foi um FIV≥ 4.9
Para a realização da pesquisa, foi solicitada a autorização da Secretaria de Justiça do Estado do Piauí e apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Piauí, sendo aprovado , sob o Parecer 345.469 e CAAE 17610613.4.0000.5214.
Dentre os participantes, 92,8% eram do sexo masculino, com residência predominante no interior do Estado (52,4%), 48,6% estavam na faixa etária de 23 a 32 anos, com idade média de 30,9 anos, máxima e mínima de 17 e 81 anos. Quanto à cor da pele autoreferida, 61,6% eram pardos e 58,8% se declararam solteiros, separados ou viúvos. A média de anos de estudo foi de 6,3 anos, sendo a escolaridade da maioria compatível com ensino fundamental incompleto (63,0%). Percentual expressivo não possuía renda (37,2%) e ganhava um salário mínimo (32,4%).
Com relação à situação vacinal, 58,0% dos internos referiram ter recebido alguma dose da vacina e 42,0% ou não receberam ou não sabiam informar. Somente 17,7% afirmaram ter recebido o esquema completo (Tabela 1).
Tabela 1 Situação vacinal dos internos do sistema prisional (n=2131)
Variáveis | n(%) | IC 95% |
---|---|---|
Já foi vacinado | ||
Sim | 1236(58,0) | 55,9-60,1 |
Não/não sabem | 895(42,0) | 39,9-44,1 |
Doses recebidas | ||
1 dose | 618(50,0) | 47,2-52,7 |
2 doses | 399(32,3) | 29,7-34,9 |
3 doses | 219(17,7) | 15,7-19,9 |
Do total de internos 11 (0,5%) foram reagentes na pesquisa por antígenos específicos para Hepatite B (Tabela 2).
Tabela 2 Prevalência do HBsAg em internos do sistema prisional (n=2131)
Variáveis | n(%) | IC95% | Erro padrão |
---|---|---|---|
Positivo | 11(0,5) | 0,2-0,8 | 0,2 |
Negativo | 2120(99,5) | 99,2-99,8 | 0,2 |
A positividade para o HBsAg na população ocorreu em sua totalidade no sexo masculino, sem predominância significativa para a cor de pele e situação conjugal. A média de idade foi de 33,36 anos, com 6,36 anos de estudo. Nenhuma das variáveis sóciodemográficas foi estatisticamente associada à positividade para o HBsAg, assim como as referentes ao uso de álcool e outras drogas, cujas frequências absolutas foram de 81,8% para uso de álcool e 72,7% para o uso de outras drogas, como crack, cocaína e maconha.
As variáveis relacionadas à exposição parenteral também não apresentaram associação estatisticamente significativa, porém vale destacar que dos casos reagentes, 54,5% afirmaram compartilhar material perfurocortante na prisão e ter tatuagem.
Quanto às práticas sexuais, destacou-se o não uso de preservativo, apenas 27,2% dos casos positivos afirmaram sempre utilizar camisinha nas relações. Dentre os motivos para não uso, a variável “Não gosta de usar camisinha nas relações” apresentou forte associação na análise bivariada com OR= 3,52 (IC95% 1,02-12,09) e valor de p=0,04. Mais da metade dos detentos reagentes ao HBsAg (63,3%) afirmaram utilizar bebida alcóolica e outras drogas antes das relações sexuais. Sobre o tipo de sexo praticado, vale ponderar que em análise bivariada, o sexo vaginal foi um fator marginalmente protetor de hepatite B nos internos estudados (OR=0,14 - IC 95% 0,01-1,19; p=0,07).
Das variáveis referentes às informações sobre hepatite B, apenas 18,1% dos casos possuíam alguma informação sobre a infecção, sendo que apenas um dos casos tinha conhecimento sobre a vacina. Dentre os questionamentos sobre a prevenção de IST, a variável “Não sabe como prevenir IST” foi estatisticamente associada à presença de HBsAg em análise bivariada com (OR=4,90 IC95% 1,48-16,13; p= <0,01). Sobre a existência de IST, 90,9% afirmaram não ter tido infecção sexual na vida, sendo que 81,8% relataram o medo de contrair qualquer que seja a IST.
No modelo de regressão logística múltipla, as variáveis que apresentaram associação significativa nas análises bivariadas, mantiveram a forte relação (Tabela 3).
Tabela 3 Regressão Logística múltipla dos fatores relacionados à prevalência de positividade do HBsAg (n=11)
Variáveis | Odds (Ajustado) | p-value | IC95% |
---|---|---|---|
Não gosta de usar camisinha nas relações | 3,63 | 0,04 | 1,05-12,48 |
Não sabe como prevenir IST | 5,02 | <0,01 | 1,52-16,59 |
A significância estatística foi fixada em p ≤ 0,05
O estudo apresentou algumas limitações, tendo em vista que as respostas foram autodeclaradas. O levantamento da situação vacinal considerou apenas os relatos dos internos, já que não possuíam o cartão vacinal em mãos, nem as unidades prisionais dispunham dos registros de vacinação nos prontuários, o que pode ter subestimado ou superestimado o dado. Além disso, a diversidade de organização das instituições visitadas, a logística de segurança do sistema penal e o próprio ambiente prisional foram fatores que trouxeram dificuldades ao desenvolvimento da pesquisa, já que durante o aconselhamento e aplicação do questionário a presença do agente penitenciário era constante, o que pode ter ocasionado mudanças de respostas, em especial daquelas relativas ao uso de drogas e de comportamentos sexuais.
Os resultados evidenciam a necessidade de ações públicas de saúde, incluindo articulação entre esferas governamentais e entre a gestão das áreas da saúde e da justiça, para elaborar estratégias que contemplem a demanda de saúde dos internos do sistema prisional. A pesquisa trouxe como contribuição para o fortalecimento do Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP) a ampliação da oferta de testes rápidos permitindo diagnóstico precoce da infecção à população prisional, ao ponto que sugere testagem para as IST na admissão e rotina das unidades penais, atividades contínuas de educação em saúde para os internos, bem como capacitação dos profissionais de saúde que atuam nesses ambientes e fortalecimento da vigilância por meio da busca ativa e notificação de agravos.
A partir dos relatos dos internos do sistema prisional estudado, observou-se que eles apresentam baixa cobertura vacinal e prevalência de HBsAg positivo alinhada à tendência da região. Esses achados possuem relação com características demográficas, sociais e comportamentais.3,10-15
A baixa frequência de relato de vacinação contra hepatite B foi aquém do esperado, tendo em vista que a implantação de programa de vacinação é meta do PNSSP, além de ser uma recomendação internacional.1,6,16 A baixa cobertura vacinal em presídios, e, por conseguinte, o elevado número de indivíduos suscetíveis à infecção, são comuns e confirmam a necessidade de garantir o acesso aos serviços de saúde, programas de educação e implementação de programas de vacinação para prevenir a infecção pelo VHB nas prisões.17,18 Cabe ressaltar que havia uma certa desvalorização dos registros vacinais por parte de alguns serviços de saúde, hoje minimizada pela informatização e sistematização do registro de doses nas unidades de saúde. Também é comum muitos usuários que não atendem aos aprazamentos de doses ou que não mantêm a guarda de seus cartões. Essas práticas redundam em desconhecimento do estado vacinal da população e, por conseguinte, em possível administração de doses desnecessárias.19 Nessa perspectiva, muitos internos poderiam ter recebido as três doses da vacina em momento anterior à prisão, já que se trata de uma população predominantemente jovem.
A prevalência do HBsAg na população do estudo foi um pouco superior à encontrada na população urbana geral da Região Nordeste do Brasil (0,42%, IC 95% 0,16-0,67), fato que pode ser explicado pela elevada frequência dos comportamentos de riscos apresentados.3 O achado foi semelhante ao encontrado em outros complexos prisionais brasileiros, como o de Goiânia (0,7%, IC95% 0,0-4,3)20e Mato Grosso do Sul (0,5%, IC95% 0,08–1,9).21 Levantamento sorológico realizado no presídio de Ribeirão Preto, região sudeste do Brasil, apresentou taxa superior (2,4%) pois, diferentemente dos achados deste estudo, comportamentos como utilização de drogas injetáveis e compartilhamento de seringas foram evidenciados e fortemente associados.22 Em comparação com outros países, a taxa também se mostrou baixa, como por exemplo no Iran (3,3%) e Espanha (2,6% IC95% 0,2-4,9) .23, 24
Estudos evidenciam que a condição de estar preso por si só aumenta o risco para infecção por hepatite B e em especial quando associada à qualidade estrutural do confinamento e à marginal posição social predominantemente ocupada pela PPL, que por sua vez desencadeia um processo de más condições de vida correlacionadas ao crime e ao uso abusivo de drogas, favorecendo a ocorrência de diversos agravos à saúde.4,21,23 Podem acentuar esse quadro ainda a alta vulnerabilidade social, programática e individual sofrida por este contingente populacional. Ressalta-se os vínculos afetivos rompidos, a instabilidade emocional, a pouca motivação, a baixa autoestima e, de uma forma geral, a exclusão vivida pelo apenado.25
Destacou-se neste estudo a baixa frequência de uso do preservativo, assim como os motivos para o não uso: não gostar, não ter disponível no momento, confiar no parceiro, acreditar na proteção divina, ter relações apenas com pessoas limpas, alergia ao material do preservativo, tempo insuficiente para colocação do mesmo e menor sensibilidade durante o ato sexual. Levantamentos internacionais têm mostrado que pequena parcela da população carcerária mundial tem acesso consistente às medidas de prevenção às IST, destacando a baixa frequência do uso do preservativo no ambiente prisional, que entre outros fatores tem como determinantes a existência de relações sexuais impostas.26,27
O uso do preservativo se constitui em importante medida de prevenção para a ocorrência de novos casos de hepatite B, pois é comprovada a sua eficácia enquanto barreira física na transmissão de partículas com tamanho semelhante à de pequenos vírus causadores de IST. Além disso, se utilizado corretamente, há redução dos riscos de deslizamentos ou rupturas. Nessa perspectiva, o seu uso é imprescindível nessa população, sendo a principal medida de prevenção para as IST.23,28
É recomendado que os preservativos e lubrificantes sejam de fácil, discreto e livre acesso nas instituições prisionais, sendo disponibilizados de acordo com os espaços físicos e movimentação dos detentos.1,2 Ressalta-se que a simples entrega do método não traz garantia de bons resultados. A instituição de programas educativos em saúde nas prisões deve induzir a mudança de comportamentos e atitudes dos detentos. Neste caso, as orientações quanto ao uso adequado devem preceder a ação.
As informações sobre a hepatite B mostraram-se insuficientes. A chance de quem não sabia prevenir IST adquirir hepatite B foi de aproximadamente cinco vezes maior quando comparada aos que sabiam. O resultado confirma a importância da instituição dos programas educativos no ambiente prisional que aborde as medidas de prevenção dessas infecções dentro das unidades do sistema penal. O baixo conhecimento acerca das IST tem sido tem sido observado em alguns estudos.29,30
O fato de a maior parte dos internos participantes deste estudo afirmar não possuir informações sobre hepatite B pode ser explicado pelos poucos anos de estudo referidos. Entretanto a baixa escolaridade não apresentou associação com a prevalência de positividade do antígeno HBsAb, contrariando alguns estudos.21,29 Ter poucos anos de estudo remete a uma menor compreensão e apreensão de informações de maneira geral, o que provavelmente dificulta a assimilação de estratégias de prevenção quanto aos modos de transmissão dessa infecção.
A prevalência encontrada esteve igual ou menor que a encontrada na população geral do país (0,5%), no entanto dentro do esperado para essa população. Comprovou-se que existem fatores estatisticamente associados à prevalência de positividade do HBsAg na população estudada, quais sejam: não gostar de utilizar preservativo nas relações sexuais e não saber como prevenir IST.