versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.17 no.1 São Paulo 2019 Epub 21-Jan-2019
http://dx.doi.org/10.31744/einstein_journal/2019ao4436
A deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD) é uma doença de caráter genético e afeta mais de 400 milhões de pessoas pelo mundo. (1-3) Os pacientes deficientes para G6PD são, em sua maioria, assintomáticos, podendo desenvolver crises ao serem expostos a agentes causadores de estresse oxidativo, como ingestão de feijão fava, infecções e ingestão de drogas. Estas crises são identificadas por meio do surgimento de sintomas como mal-estar, dor abdominal ou lombar, fraqueza, icterícia e urina escura, (2) que configuram quadros de hemólise oxidativa aguda, icterícia neonatal ou anemia hemolítica não esferocítica crônica. (2) Clinicamente, os fatores que influenciam na gravidade e na frequência dos episódios de expressão dessa deficiência estão estritamente associados à relação de fatores genéticos e ambientais com a propriedade molecular enzimática do paciente. (4)
A G6PD é uma enzima composta por 514 aminoácidos, com aproximadamente 59 kDa de peso molecular, presente em todas as células do organismo, participando do primeiro passo da via de hexose monofosfato, oxidando a glicose-6-fosfato a 6-fosfogluconolactona, reduzindo o NADP a NADPH, que é um importante mediador do estresse oxidativo na célula. (2,5,6) Esta via é a única via de obtenção de NADPH nos eritrócitos, a fim de proteger a hemácia do estresse oxidativo. (7) Outra função atribuída à enzima é a de obtenção de energia, pois a via das pentoses-fosfato cataboliza cerca de 10% da glicose existente na célula. Os outros 90% são catabolizados pela via Embden-Meyerhof . (8)
Existem cerca de 186 mutações com importância clínica descritas para o gene da G6PD, que codificam variantes deficientes da enzima fisiologicamente normal. As variantes de classe I, como, por exemplo, a G6PD volendam (C514T), caracterizam deficiência severa e estão associadas à anemia hemolítica não esferocítica crônica. Variantes de classe II possuem valores de atividade enzimática inferiores a 10%, acarretando sintomas e crises mais frequentes, tendo, como exemplo, a G6PD mediterrânea (C563T). As de classe III são as que possuem atividade enzimática entre 10 a 60% da atividade normal, como exemplo a G6PD A (A376G), A- (G202A/A376G), G6PD Asahi (G202A); geralmente os pacientes são assintomáticos, mas a importância clínica está associada ao aparecimento de crises hemolíticas induzidas pela ingestão de medicamentos. (6,9-11) As variantes de classe IV possuem de 60 a 150% da atividade normal, sem apresentar manifestações clínicas, tendo, como exemplo, a G6PD São Borja (G337A). Variantes de classe V possuem atividade enzimática aumentada (>150%), tendo sido descrita somente uma vez (G6PD Hektoen), no ano de 1969. (10-12) Os fenótipos mais comuns são a G6PD A (genótipo A376G), que possui atividade enzimática normal; a G6PD A- (genótipo G202A), que apresenta de 10 a 60% da atividade enzimática normal; e B- ou G6PD mediterrânea (genótipo C563T), com 7% da atividade normal. (4,13) O gene que codifica a G6PD está localizado na região telomérica do braço longo do cromossomo X (Xq28). Este gene é formado por 13 éxons e abrange cerca de 18,5kb. (2)
Avaliar a prevalência da deficiência de G6PD em recém-nascidos, considerando a atividade enzimática, e caracterizar os polimorfismos G202A, A376G e C563T em recém-nascidos identificados como deficientes.
O presente estudo foi desenvolvido no serviço de triagem neonatal da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) de Vitória (ES) e teve como base o estudo da prevalência da deficiência de G6PD na região metropolitana, Espírito Santo, no Sudeste do Brasil. O delineamento do estudo pode ser observado no fluxograma da figura 1 .
Hb: hemoglobina; PCR: reação em cadeia da polimerase.
Figura 1 Delineamento do estudo para triagem e identificação da deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD) nos recém-nascidos
Foram coletadas mil amostras de sangue para realização, em todas as amostras, do teste de quantificação atividade enzimática da G6PD. Após análise primária, os pacientes identificados como possíveis deficientes foram submetidos a teste para confirmação da deficiência por meio do sangue total. A análise molecular foi realizada nas amostras identificadas como deficientes após o teste confirmatório. As amostras foram coletadas em papel filtro de alta absorção para coleta de sangue seco Whatman ® 903, de acordo com a Portaria GM/MS 822, de 6 de junho de 2001, e em tubo de coleta para sangue contendo ácido etilenodiamino tetra-acético (EDTA). (14)
Foram selecionados, para este estudo, recém-nascidos da região metropolitana de Vitória, Estado do Espírito Santo, nascidos no período de 24 de maio de 2017 a 24 de agosto de 2017. As amostras foram selecionadas com base no tempo entre a coleta da amostra e a chegada na APAE, padronizando em no máximo 5 dias, tendo sido aceitas amostras de recém-nascidos com até 30 dias de vida e que atendessem ao tempo base entre a coleta e a chegada no laboratório.
A quantificação da atividade enzimática de G6PD foi realizada pelo método enzimático colorimétrico utilizando kit comercial (INTERCIENTÍFICA ® NeoLISA G6PD, São José dos Campos, SP, Brasil), conforme instruções do fabricante. As amostras coletadas em papel-filtro foram picotadas em picotes únicos de 1/8’’ ou 3,2mm, utilizando picotador automatizado, tendo sido depostas em microplaca de 96 poços, para realização da análise por absorbância pelo leitor de microplacas DIAS ® , com interpretação dos resultados por meio do software TMS ® . O cálculo da atividade enzimática baseado nas três leituras realizadas foi feito pelo software para cálculo de G6PD fornecido pela INTERCIENTÍFICA ® . Para a quantificação da atividade enzimática de G6PD em sangue total, foi utilizado o mesmo kit comercial (INTERCIENTÍFICA ® NeoLISA G6PD), seguindo instruções do fabricante. O valor de corte adotado no teste em papel-filtro para resultados normais foi >2,5U/G Hb. Para teste confirmatório em sangue total, o valor de corte indicativo de normalidade foi >6,7U/G Hb; valores intermediários foram entre 2,2 e 6,6U/G Hb; e deficientes se <2,1U/G Hb.
As mutações A376G, G202A e C563T foram genotipadas por ensaios TaqMan ™ (Life Technologies) usando sistema de reação em cadeia da polimerase (PCR) em tempo real (qPCR) ABI 7500 (Applied Biosystems, Califórnia, EUA). As curvas de fluorescência foram analisadas com a versão 7500 FAST Sequence Detection Software , versão 2.1 (Applied Biosystems, Califórnia, EUA), para discriminação alélica.
Os dados demográficos dos pacientes e a atividade da enzima G6PD foram processados com auxílio da planilha eletrônica do Microsoft Excel , versão 2016. A comparação estatística da deficiência da enzima G6PD com os dados demográficos dos pacientes foi realizada pelo teste do χ 2 com nível de significância de 5% com auxílio do programa estatístico Stata 11.0 (Stata Corp., College Station, EUA).
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Meridional, conforme parecer 2.362.064/2017, CAAE: 79236317.7.0000.5070.
Dos mil pacientes triados no serviço de triagem neonatal da APAE em Vitória (ES), 48 (4,8%) recém-nascidos foram identificados como possíveis portadores da doença e encaminhados para a realização do teste confirmatório pelo método enzimático colorimétrico em amostras de sangue total. A prevalência da deficiência de G6PD confirmada no presente estudo foi de 25 pacientes (2,5%).
Na tabela 1 estão descritas as características clínicas e sociais da população de estudo. Eram do sexo masculino 508 pacientes (50,8%). Dentre os portadores da deficiência de G6PD, todos (n=25) eram do sexo masculino. A cor declarada dos neonatos arrolados neste estudo obteve três categorias e uma não declarada: 153 (15,3%) pacientes foram declarados brancos pelos pais ou responsáveis; 454 (45,4%) pardos; 92 (9,2%) negros; e 301 (30,1%) não tiveram cor declarada. A cor declarada para os pacientes portadores da deficiência de G6PD não apresentou diferença estatística (p=0,8938).
Tabela 1 Características clínicas e sociais da população de estudo
Características | G6PD normal (n=975) | G6PD deficiente (n=25) | Total (n=1.000) | Valor de p |
---|---|---|---|---|
Sexo | 975 (100) | 25 (100) | 1.000 (100) | <0,0001 |
Feminino | 492 (50,5) | 0 (0) | 492 (49,2) | |
Masculino | 483 (49,5) | 25 (100) | 508 (50,8) | |
Idade, meses | Recém-nascidos | Recém-nascidos | - | - |
Cor declarada | 0,8938 | |||
Branca | 149 (15,3) | 4 (16) | 153 (15,3) | |
Parda | 441 (45,2) | 13 (52) | 454 (45,4) | |
Negra | 90 (9,2) | 2 (8) | 92 (9,2) | |
Não declarada | 295 (30,3) | 6 (24) | 301 (30,1) | |
Massa corpórea, g | 3094,3±846,8 | 3285,1±492,7 | - | - |
Prematuridade | 0,9193 | |||
A termo | 953 (97,7) | 24 (96) | 977 (97,7) | |
Pré-termo | 22 (2,3) | 1 (4) | 23 (2,3) | |
Ingestão materna de corticoide* | 0,0062 | |||
Sim | 7 (0,7) | 2 (8) | 9 (0,9) | |
Não | 968 (99,3) | 23 (92) | 991 (99,1) |
Resultados expressos como n (%). * Nos últimos 15 dias antes do parto. G6PD: glicose-6-fosfato desidrogenase.
Os valores da atividade enzimática para os pacientes portadores da deficiência foram de 1,56 a 5,29U/G Hb com valor médio de 3,01U/G Hb. Foram realizados em 21 dos 25 pacientes ensaios moleculares por PCR em tempo real para caracterização dos polimorfismos genéticos. As variantes G202A e A376G foram encontradas em hemizigose em todos os 21 (100%) pacientes. A percentagem da atividade enzimática encontrada nos 21 pacientes foi, em média, de 49,25%, baseada nos valores de corte para atividade enzimática normal.
Foi verificada significância estatística (p=0,0062) entre o grupo de indivíduos portadores da deficiência enzimática com ingestão materna de corticoide e o de indivíduos portadores da deficiência sem administração materna do hormônio nos últimos 15 dias antes do parto.
O valor de prevalência descrito em 2,5% encontra-se dentro dos padrões brasileiros para estudos em prevalência da deficiência de G6PD. Estudos envolvendo recém-nascidos nos Estados do Mato Grosso, Rio Grande do Sul e Paraíba, com populações de estudo variando de 147 a 3.573 indivíduos testados obtiveram resultados de prevalência média de 4,75%. (15-17) Outros estudos que avaliaram a prevalência populacional para deficiência de G6PD pelo Brasil entre adultos e crianças obtiveram média de prevalência de 3,59%, variando entre 1,70 e 4,96% de deficientes de G6PD. (18-26)
Todos os pacientes identificados como portadores da doença no presente estudo são do sexo masculino, corroborando a afirmação de que esta enzimopatia é mais comum em indivíduos do sexo masculino, considerando que estes possuem apenas um gene para G6PD, localizado no único cromossomo X, sendo hemizigotos para este gene. (2) Esta característica confere a possibilidade destes indivíduos serem deficientes ou não para G6PD. Sob outra perspectiva, indivíduos do sexo feminino possuem dois genes para G6PD, localizados um em cada cromossomo X, podendo ser deficientes, caracterizando homozigose, ou intermediários, quando apresenta mutação em apenas um dos dois genes presentes, denotando heterozigose. (2) Todavia, diferente das deficiências enzimáticas comuns, indivíduos heterozigotos podem desenvolver sintomatologia característica para deficiência de G6PD. (2)
A análise molecular foi realizada em somente 21 dos 25 pacientes deficientes pelo fato de os quatro pacientes restantes terem comparecido ao laboratório para o teste de confirmação após o início das análises para os ensaios moleculares. Dos 21 testados, 100% apresentaram os polimorfismos A376G e G202A em hemizigose, caracterizando o fenótipo G6PD A-, descrito como G6PD africana. (7) Este genótipo é resultante de vários pontos de superposição, sendo encontradas as mutações A376G, característica do fenótipo G6PD A+, e G202A. (7) A mutação G202A ocorrendo de forma homogênea não é suficiente para causar a deficiência enzimática, necessitando estar associada com a mutação A376G. (27) Em contrapartida, estudo de caso realizado no Japão identificou um indivíduo do sexo masculino com 3 anos de idade apresentando sintomatologia compatível para deficiência de G6PD. Após a análise da atividade enzimática apresentar valores compatíveis com a deficiência de G6PD, estudo molecular por PCR-SSCP identificou a presença da mutação G202A, porém não foi identificada a presença de mutação associada, sendo considerada a deficiência da enzima neste paciente como causada pelo padrão de mutação G202A de forma homogênea. (28) Todavia, a técnica utilizada para a pesquisa de mutação neste estudo (PCR-SSCP) é eficiente, porém sua sensibilidade pode ser alterada diante de alguns fatores cruciais, como o tamanho do fragmento de DNA utilizado, tornando resultados pouco confiáveis. (29)
A atividade enzimática para G6PD nos indivíduos no presente estudo foi, em média, 48,71% da atividade enzimática normal, estando dentro dos valores propostos para a variante G6PD A, que vão de 10 a 60% da atividade enzimática normal para esta variante. (4) Os pacientes se encontram em portadores de variante de classe III, com 10 a 60% da atividade normal. (6) O fenótipo G6PD A-, encontrado no estudo, é comumente encontrado em estudos realizados pelo Brasil. Em um estudo de grande porte realizado no ano de 1993, com o objetivo de fazer a caracterização molecular dos deficientes para G6PD em todo o território brasileiro, utilizando uma amostra de 7.794 pacientes, foi encontrada prevalência significativa do fenótipo G6PD A- entre indivíduos declarados brancos e pretos, porém não foi encontrada este padrão mutacional em indivíduos indígenas testados. (30) Um estudo no Mato Grosso encontrou o fenótipo G6PD africana em 58 dos 63 neonatos testados. (11) A observação dos resultados destes e de outros estudos (8,14,30) corrobora a hipótese de que os padrões mutacionais ou os polimorfismos encontrados no presente estudo estão dentro do padrão encontrado para o território brasileiro.
A alta prevalência deste fenótipo em território brasileiro está relacionada com os processos de colonização e utilização de povos de origem africana como mão de obra no período colonial, provocando alta miscigenação e, por consequência, alta propagação de suas características genéticas.
Todavia, o presente estudo identificou dificuldade de comunicação com os pacientes para retorno ao ambulatório para confirmação da deficiência da enzima por meio de teste complementar. Este problema pode ter sido atribuído ao fato de que a deficiência de G6PD, apesar de uma enzimopatia consideravelmente comum, é pouco conhecida pelos leigos, principalmente devido aos portadores desta deficiência serem, em sua maioria, assintomáticos. O percentual de resultados falso-positivos neste estudo após o teste confirmativo foi 47,91%. Este dado pode estar relacionado aos fatores de conservação, que interferem na qualidade da amostra em papel-filtro por parte dos pontos de coleta, como local, temperatura e forma de deposição dos cartões de coleta, alterando a atividade enzimática identificada no teste inicial, sendo necessário o teste confirmativo para descrever a presença ou não da deficiência.
Os pacientes que obtiveram resultado do teste confirmatório positivo para deficiência da G6PD foram encaminhados ao médico geneticista da APAE, a fim de dar início ao tratamento e ao acompanhamento da evolução dos sintomas.
No período das consultas com o médico, foi verificado se houve administração de corticoides às gestantes durante a gravidez. Quando administrados no período antenatal para gestantes que apresentam risco de gravidez e nascimento prematuro, os corticoides possuem poucas chances de atravessar a barreira placentária e entrar em contato direto com o feto. (31) No presente estudo, foram comparados os grupos de deficientes, em que a ingestão materna de corticoide foi ou não realizada, mostrando significância estatística. Todavia, esta ingestão foi realizada nos últimos 15 dias antes do parto, com o intuito de diminuir os riscos em um nascimento prematuro, não podendo estar diretamente relacionada com o desenvolvimento da deficiência de G6PD. Todos os pacientes portadores da deficiência enzimática, de ambos os grupos com administração materna de corticoide ou não, foram caracterizados geneticamente, apresentando o mesmo padrão genético característico para deficiência de G6PD.
Os efeitos colaterais da administração prolongada e do contato direto do feto com corticoides estão relacionados com alterações hepáticas, deficiências no crescimento e alterações a longo prazo durante o crescimento da criança exposta. (31)
Estudos como este são necessários para que a deficiência de G6PD seja inserida no programa de triagem neonatal do Estado em que o estudo é realizado. A falta de diagnóstico da deficiência nas fases iniciais da vida pode levar ao desenvolvimento de sintomas graves quando expostos a fatores de risco, como crise hemolítica após ingestão de alguns medicamentos.
O presente estudo é de extrema importância para o sistema público de saúde do Estado do Espírito Santo, considerando que é o primeiro a caracterizar uma população deficiente para G6PD, abrindo portas para a inserção desta doença no programa de triagem neonatal, a fim de disponibilizar no sistema público o diagnóstico, atualmente presente no Estado somente na rede particular e por valores pouco acessíveis para as grandes massas populacionais.
O presente estudo identificou prevalência dentro da população estudada, estando dentro dos padrões epidemiológicos brasileiros para esta doença. A análise molecular dos pacientes deficientes para caracterização dos polimorfismos causadores da deficiência utilizou o painel das três mutações mais comuns, sendo elas a A376G, G202A, C563T. O resultado da caracterização molecular indicou que todos os pacientes deficientes apresentaram o fenótipo G6PD A-, caracterizando genótipo G202A A376G, comum para a população brasileira.
A ingestão materna de corticoide entre os deficientes apresentou diferença significativa, porém não foi possível relacionar esta variável com o desenvolvimento da deficiência de G6PD de caráter genético.