versão impressa ISSN 2595-0118versão On-line ISSN 2595-3192
BrJP vol.1 no.3 São Paulo jul./set. 2018
http://dx.doi.org/10.5935/2595-0118.20180045
A dor é um dos sintomas mais temidos para os pacientes portadores de câncer. Pode ser secundária ao tumor, às metástases e aos tratamentos executados1,2 e, do ponto de vista fisiopatológico, é classificada em nociceptiva, neuropática ou mista3. A dor neuropática (DN) é definida como uma dor que ocorre como consequência direta de uma lesão ou de doenças que afetam o sistema somatossensitivo4. A DN tem prevalência aproximada de 7 a 8% na população oncológica5,6. Entretanto, a falta de conhecimento médico sobre o tema e métodos apropriados para a avaliação da DN corroboram para o subdiagnóstico dessa entidade nosológica1,4. Em recente meta-análise, foram utilizados testes diagnósticos para identificação da DN, sendo encontrada prevalência em torno de 31%7.
Sobre as causas que podem induzir à DN nos portadores de câncer, pode-se incluir o tratamento cirúrgico, devido à lesão de fibras sensitivas da pele, concomitante à inflamação local, resultando em sensibilização neuronal8,9. A quimioterapia pode acarretar neuropatia periférica por alterações metabólicas, estruturais e autoimunes, que causam lesão axonal nos nervos periféricos, principalmente os mais distais9,10. Com relação à radioterapia, essa intervenção promove lesão neuronal devido a processos inflamatórios e fibrogênicos, acrescidos de alterações vasculares que propiciam isquemia8. Além disso, a DN pode resultar da invasão direta nas fibras nervosas pelo tumor7.
Com relação ao diagnóstico da DN, ele é baseado na história clínica e no exame físico detalhado, juntamente a métodos como, neuroimagem e eletroneuromiografia11. Como a dor é uma entidade individual, subjetiva, não havendo sinais e sintomas patognomônicos da DN, é indicada a associação de instrumentos auxiliares triadores, como o Douleur Neuropathique en 4 questions (DN-4), para diferenciar a dor nociceptiva da neuropática11,12.
O questionário DN-4 pode identificar a DN11-13, por meio de perguntas objetivas, relacionadas à característica da dor, sintomas associados e exame físico simplificado, direcionando o tratamento adequado dessa entidade nosológica10. Contudo, esses instrumentos de triagem não devem ser usados isoladamente como critério diagnóstico, uma vez que não podem substituir a avaliação clínica detalhada12.
Devido ao número crescente da população com doenças oncológicas, associado ao aumento da sobrevida desses pacientes, secundário aos avanços científicos e tecnológicos7, o presente estudo objetivou identificar a prevalência da DN e os seus fatores associados em pacientes oncológicos.
Foi realizado um estudo observacional prospectivo do tipo transversal no setor de Oncologia dos Hospitais Barão de Lucena e Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP), na cidade do Recife, no período de agosto de 2016 a julho de 2017. Todos os participantes assinaram do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Tendo em vista a falta de informações concordantes sobre a frequên cia da DN na população oncológica, o tamanho da amostra foi calculado utilizando-se a fórmula conservadora, correspondente a um nível de confiança de 95% (n=1,962 x 0,25/e2, onde e: margem de erro adotado). Nesse estudo foi escolhida uma margem de erro de 6%. Dessa forma, o tamanho da amostra foi de 267 pacientes. Foram incluídos no estudo portadores de doença oncológica maiores de 18 anos que apresentavam dor, e excluídos os pacientes diabéticos e portadores de dor crônica pregressa sem correlação à neoplasia atual.
A partir de informações obtidas no prontuário e diretamente com o paciente, inicialmente foi respondido um questionário para a avaliação dos dados demográficos e de informações acerca do tipo histológico do câncer e do seu tratamento. Em seguida, foi observado se a dor reclamada pelo paciente estava relacionava ou não ao local das intervenções realizadas, como procedimento cirúrgico e radioterapia, ou em extremidades associadas aos efeitos de quimioterápicos. A seguir, para cada resposta positiva de dor, foi aplicado o DN-4, com o objetivo de identificar a presença de DN. Por último, empregou-se a escala numérica da dor para avaliar a intensidade em cada região em que o paciente referia o sintoma. Solicitou-se que o participante quantificasse um valor de zero a 10. Para fins de análise estatística, a dor foi categorizada como leve (1-3), moderada (4-7) e intensa (8-10).
O DN-4 é um instrumento auxiliar para distinguir a DN da não neuropática. É validado para a língua portuguesa e apresenta alta sensibilidade, especificidade e precisão preditiva positiva. Esse questionário é constituído por 10 itens relacionados às caraterísticas da dor não nociceptiva. Contempla 7 questões sobre os sintomas e características da dor, e 3 relacionadas ao exame físico. Uma pontuação ≥4 pontos corroboram o diagnóstico de DN.
Em relação aos sintomas, foi questionada a presença de queimação, sensação dolorosa de frio, choque térmico, formigamento, alfinetada, agulhada, adormecimento e coceira. No que se refere ao exame físico, a sensibilidade tátil foi avaliada por algodão e a sensibilidade dolorosa com um instrumento pontiagudo. A presença de dor também foi avaliada realizando a escovação da área dolorosa. A cada resposta positiva foi atribuído um ponto, e não foi contabilizado nenhum valor para a resposta negativa.
O estudo teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade Pernambucana de Saúde (CAEE: 57436116.2.0000.5569).
Foram construídas tabelas de distribuição de frequência das variáveis, que foram categorizadas e codificadas. Os dados categóricos foram resumidos através de frequências absolutas e relativas; os dados numéricos (idade), através de média e desvio padrão. As comparações de proporção entre grupos foram avaliadas com o teste de Qui-quadrado de Pearson ou teste Qui-quadrado de tendência. A comparação das médias de idade entre os grupos de pacientes com e sem DN foi realizada através do teste t de Student para amostras independentes. Em todos os testes adotou-se o nível de significância de 0,05. A análise estatística foi realizada com o software Stata 12.1SE.
A prevalência da DN na população estudada foi 53,3% (IC95%: 46,6% a 59,65%). A amostra avaliada apresentou média de idade de 55,3±12,6 anos. Ao se analisar os pacientes identificados com sintomas de DN, não houve associação dessa dor com o sexo, a idade e o tipo histológico do câncer (Tabela 1).
Tabela 1 Relação entre o tipo de câncer, sexo e idade com a presença de dor neuropática
Dor neuropática | Valor de p | |||
---|---|---|---|---|
Tipos de câncer | Sim n (%) |
Não n (%) |
||
Mama | 60 (61,9) | 37 (38,1) | ||
Próstata | 5 (38,5) | 8 (61,5) | ||
Trato gastrointestinal | 32 (50,8) | 31 (49,2) | ||
Ovário | 6 (42,9) | 8 (57,1) | 0,158 | |
Útero | 8 (53,3) | 7 (46,7) | ||
Neoplasia hematológica | 8 (61,5) | 5 (38,5) | ||
Pulmão | 3 (23,1) | 10 (76,9) | ||
Outros | 4 (40,0) | 6 (60,0) | ||
Sexo | ||||
Masculino | 28 (49,1) | 29 (50,9) | 0,560 | |
Feminino | 98 (54,1) | 83 (45,9) | ||
Idade (anos) | DN | n | Média (DP) | |
Sim | 44 | 53,3 (12,0) | 0,91 | |
Não | 50 | 55,4 (12,3) |
Com relação aos tratamentos instituídos, dos 238 pacientes da amostra, 228 realizaram quimioterapia, 77 radioterapias e 145 cirurgias. Importante detalhar que muitos pacientes se submeteram a mais de um tratamento para a doença oncológica. Estudando a DN e a associação com os tratamentos realizados, não houve associação entre o tipo de tratamento (quimioterápico, radioterápico e cirúrgico) com a presença e a intensidade da DN (Tabela 2).
Tabela 2 Associação entre tratamentos realizados com presença e intensidade da dor neuropática
Tratamento | Queixa de dor | DN | Valor p | Intensidade da dor | Valor de p | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Sim | Não | Leve | Moderada | Intensa | ||||||
n | n (%) | n (%) | n (%) | n (%) | n (%) | n (%) | ||||
Radioterapia | 77 | 40(52) | 24(31,1) | 16(20,7) | DN no local da radiação | 5 (20,8) | 13(54,2) | 6 (25,0) | ||
Cirurgia | 145 | 63(43) | 36(24,8) | 27(18,6) | 0,389 | DN no local da cirurgia | 10 (27,8) | 18(50,0) | 8 (22,2) | 0,831 |
Quimioterapia | 228 | 121(53,07) | 81(35,5) | 40(17,5) | DN em membros | 15 (18,5) | 48(59,3) | 18 (22,2) | ||
Apenas superiores | 0(-) | 12(75,0) | 4 (25,0) | |||||||
Apenas inferiores | 9 (37,5) | 9(37,5) | 6 (25,0) | |||||||
Ambos | 6 (14,6) | 27(65,9) | 8 (19,5) |
DN = dor neuropática.
Dos 228 pacientes que realizaram tratamento quimioterápico, 121 (53,7%) relatavam dor nas extremidades. Essa dor foi identificada como DN em 81 pacientes com dor nas extremidades, dos quais 50,62% apresentavam DN em membros superiores e inferiores simultaneamente. Importante frisar que 29,73% (24) dos pacientes identificados com DN exibiam dor apenas em membros inferiores e 19,75% (16) unicamente nos superiores. A intensidade da DN nas extremidades foi referida pelos participantes como leve por 18,5%, moderada por 59,3% e intensa por 22,2% (Tabela 2). No que se refere à associação do tipo de quimioterapia realizado e à presença de neuropatia periférica, não houve diferença estatística (Tabela 3).
Tabela 3 Associação entre o tipo de quimioterapia e a ocorrência de dor neuropática
Dor neuropática | Valor de p | ||
---|---|---|---|
Tipo de quimioterapia | Sim | Não | |
n (%) | n (%) | ||
Neoadjuvante | 11(25) | 33(75) | |
Adjuvante | 38(41,3) | 54(58,7) | 0,174 |
Paliativa | 32(34,8) | 60(65,2) |
Dos 77 pacientes que referiam dor no local do tratamento radioterápico, 24 (31,1%) apresentaram sintomas de DN. Essa dor foi classificada por mais de dois terços dos pacientes como de intensidade moderada a intensa (Tabela 2). É importante destacar que 13 desses pacientes também realizaram cirurgia na mesma região.
Com relação ao procedimento cirúrgico, dos 145 pacientes que realizaram cirurgia, 63 (43%) apresentaram queixa álgica. Ao se aplicar o DN-4 nesses pacientes, identificou-se a dor como neuropática em 36 dos participantes, correspondendo a 24,8% do total dos pacientes submetidos a tratamento cirúrgico. Analisando a intensidade da dor caracterizada como neuropática, observou-se que a maioria dos pacientes relatou esse sintoma como de moderado a intenso na região avaliada (Tabela 2).
Quando foram observados os indivíduos que realizaram um único tratamento para a doença de base, observou-se que dos dois pacientes que receberam exclusivamente radioterapia, apenas um foi identificado como portador de DN no local da radiação. No que se refere ao procedimento cirúrgico, quatro participantes foram submetidos somente a esse tipo de tratamento, e três deles apresentaram sintomas de DN ao se aplicar o DN-4. Do total de pacientes estudados, apenas 68 se submeteram unicamente à quimioterapia, dos quais 20 obtiveram pontuação superior a quatro quando foi aplicado o DN-4, identificando, dessa forma, a presença de dor com característica neuropática.
À medida que os tratamentos para o câncer foram associados (quimioterapia, radioterapia e cirurgia), houve aumento significativo no percentual de pacientes com sintomas de DN (Tabela 4).
Tabela 4 Associação entre número de tratamentos realizados e presença de dor neuropática
Número de tratamentos realizados | Dor neuropática | Valor de p | |
---|---|---|---|
Sim n (%) |
Não n (%) |
||
1 | 24 (32,4) | 50 (67,6) | |
2 | 64 (55,7) | 51 (44,3) | <0,001 |
3 | 38 (77,6) | 11 (22,4) | |
Total | 126 (52,9) | 112 (47,1) |
Neste estudo, a prevalência de DN em adultos portadores de doença oncológica foi de 53%. Esse resultado foi superior ao encontrado em recente meta-análise que observou prevalência de DN de 31,45%7, e no estudo de Oosterling, Boveldt e Verhagen15, que, ao empregar o questionário DN-4, identificou prevalência de 19% de DN. Essa diferença encontrada no presente estudo pode ser explicada pelo fato de ter sido empregado apenas o DN-4 como meio de triagem.
Outra justificativa da alta prevalência de DN é a dificuldade de acesso, da população estudada, aos serviços diagnósticos e às intervenções terapêuticas em tempo hábil, como justifica outro autor7, que encontrou nos pacientes em esquema de cuidados paliativos uma frequência de DN superior à encontrada em pacientes ambulatoriais. Ainda é relatado que o início tardio do tratamento oncológico pode aumentar essa prevalência16, uma vez que a ocorrência de DN está relacionada a estágios mais avançados da doença oncológica6,8.
Outro resultado do presente estudo é que aproximadamente mais de dois terços dos pacientes incluídos eram do sexo feminino e, esse dado, está em concordância com o alto percentual de câncer de mama da amostra. Um estudo que identificou que as mulheres mais novas, em geral, são mais suscetíveis a DN8. Entretanto, os presentes resultados não identificaram associação significativa entre a presença desse sintoma e o sexo, nem com as diferentes faixas etárias.
Este estudo não identificou associação da DN com os tipos de tratamentos realizados, em discrepância a outros estudos que indicaram maior associação de comprometimento neuropático nos indivíduos que são submetidos à quimioterapia8,15. Porém, não foram avaliados os esquemas quimioterápicos realizados que, sabidamente, interferem no risco de disfunção do sistema nervoso central6,8,10. Um dado importante encontrado é que aqueles pacientes que realizaram maior número de intervenções (quimioterapia, radioterapia e cirurgia), apresentaram proporção significativamente maior de sintomas característicos de DN. Esse resultado denota que a justaposição de intervenções pode aumentar o risco para o desenvolvimento de DN8,16-18.
É reconhecido que o desenvolvimento da neuropatia periférica induzida pela quimioterapia é influenciado pela dose, pelo efeito cumulativo e pela classe do agente quimioterápico empregado, principalmente quando o quimioterápico é da classe dos alcaloides, taxanos e derivados da platina8,10,15-17. No presente estudo não foram avaliadas essas variáveis, o que pode explicar a ausência de diferença significativa encontrada ao se pesquisar a associação de DN e quimioterapia.
Dos pacientes que se submeteram ao tratamento quimioterápico, mais de um terço apresentou quadro compatível com o diagnóstico de DN. Os resultados foram semelhantes ao relatado por outros autores8,10. A presença de DN em ambas as extremidades ocorreu em mais da metade dos sujeitos que realizaram quimioterapia. Com relação à intensidade da DN, mais de 70% a classificaram como moderada ou intensa. É sabido que a quimioterapia pode resultar em disfunção neuronal devido à toxicidade mitocondrial, ao aumento do TRPV1, à alteração do receptor N-metil D-Aspartato, entre outras. Essas alterações fazem parte da gênese da DN periférica18.
No que se refere à prevalência da DN no local da radioterapia, 31,1% dos pacientes que realizaram esse tratamento foram identificados com esses sintomas. Esse resultado foi superior ao descrito em outro estudo que observou prevalência de 10 a 15%8. Essa dor foi referida como moderada ou intensa pela grande maioria dos pacientes. Mais uma vez, torna-se importante lembrar que houve concomitância de tratamentos realizados (54,1% desses pacientes se submeteram à cirurgia) explicando a ocorrência da DN e, até mesmo, a intensidade relatada pelos pacientes. Logo, a sobreposição desses dois tratamentos não possibilitou que se distinguisse se a DN resultou do tratamento radioterápico ou da cirurgia, sendo mais provável que tenha sido resultante de ambas.
Com relação ao procedimento cirúrgico, a frequência da DN no local da cirurgia foi 24,8%, resultado esse que se encontra em consonância com outros estudos5,6,8. A DN foi relatada como intensa por metade dos pacientes. Esse dado pode ser explicado pelo fato de a maioria dos pacientes submetidos à cirurgia também terem realizado outros tratamentos para a doença oncológica, principalmente radioterapia, como no caso dos tumores de mama e de próstata.
Com relação ao questionário DN-4, em recente revisão sistemática, a versão em português foi a mais satisfatória dentre as versões não francesas11. Ele é um questionário de triagem da DN10, de fácil e rápida execução, sendo esse o motivo do seu emprego neste estudo13.
Apesar de trazer resultados importantes sobre a prevalência da DN nos pacientes oncológicos, este estudo apresenta algumas limitações. A primeira é que a DN foi avaliada apenas com um instrumento, o DN-4. A segunda é que os pacientes excluídos com diabetes mellitus (DM) e portadores de dor crônica poderiam ter dor secundária à doença oncológica e/ou aos tratamentos instituídos. E, finalmente, a limitação mais importante é não ter estudado a classe dos quimioterápicos, quantificado o número de ciclos aos quais os pacientes foram submetidos, e o tempo decorrido entre o início do tratamento e o aparecimento dos sintomas álgicos. Ademais, ter sido feita a correlação entre os tratamentos radioterápicos e cirúrgicos com o aparecimento dos sintomas de dor.
Neste trabalho, foi observada alta prevalência da DN que foi referida como moderada a intensa pela maioria dos entrevistados.