versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.40 no.2 São Paulo abr./jun. 2018 Epub 17-Maio-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-3781
O impacto da doença renal crônica (DRC) na mortalidade, qualidade de vida e no custo dos cuidados médicos está aumentando exponencialmente em todo o mundo, de tal forma que atualmente a DRC afeta 8-16% da população mundial.1
A prevalência de DRC no Brasil é elevada. Estima-se que 11 a 22 milhões de habitantes adultos apresentem algum grau de disfunção renal, numa população com cerca de 200 milhões de habitantes e 70% de população adulta. Número impossível de ser tratado por especialistas, denotando a imperiosa necessidade de programas epidemiológicos específicos e informação ao médico generalista sobre meios de tratamentos preventivos de progressão da DRC.2,3
No Nordeste brasileiro, há 134 unidades de diálise ativas cadastradas no programa para doentes renais crônicos, o que corresponde a 18% das unidades de diálise do país. Destas, apenas 41% (55) responderam ao censo brasileiro de diálise, organizado pela Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN). O total de pacientes em tratamento hemodialítico no Nordeste é de 11.308 pessoas (56,91 pmp). O Sudeste concentra a maioria das unidades ativas do país, com 350 unidades e 42% (157) de taxa de resposta ao censo. A taxa de resposta média do país é de 38%, portanto, a região Nordeste está pouco acima dessa média.4
Dados da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza, referentes ao ano de 2015, mostram que o diagnóstico primário não foi informado em quase a totalidade (97,07%) dos registros municipais de procedimentos em nefrologia, pois não é uma informação obrigatória.5
De 2000 a 2012, a prevalência de DRCTs que recebem diálise aumentou em 46,8%, uma média de 3,6% ao ano, e a incidência em 20%, uma média de 1,8% ao ano. Até o momento, a incerteza quanto à incidência e prevalência de pacientes com DRC submetidos à diálise no Brasil é considerável.6
A DRC vem sendo subdiagnosticada e tratada inadequadamente, resultando na perda de oportunidade para a implementação de prevenção primária, secundária e terciária, em parte devido à falta de conhecimento da definição e classificação dos estágios da doença, bem como à não utilização de testes simples para diagnóstico e avaliação funcional da doença.7
A precisão na definição da etiologia da DRCT é dificultada pelo fato de os pacientes frequentemente apresentarem rins atróficos ou de tamanho diminuído no momento do diagnóstico. O conhecimento das causas de DRC é fundamental para traçar estratégias preventivas e para a determinação de prognóstico. Apesar dos inúmeros esforços em coletar dados sobre a DRCT no Brasil, ainda não há um sistema nacional de registro que forneça dados confiáveis do ponto de vista epidemiológico.
O objetivo deste estudo foi estimar a prevalência das causas de DRCTs por meio de validação criteriosa realizada por especialista e conforme critérios rígidos. Não há relato na literatura de realização de trabalho semelhante no estado.
Estudos que têm por objetivo pesquisar a epidemiologia da DRCT são úteis para a distribuição de recursos na área da saúde, subsidiando decisões para melhorar a assistência aos pacientes e atuando em estratégias preventivas para a doença.5
Tratou-se de um estudo transversal realizado no período de janeiro a junho de 2016, em cinco das dez clínicas de diálise da cidade de Fortaleza, CE.
Segundo o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), o município de Fortaleza dispõe de dez clínicas de hemodiálise e atende cerca de 1.700 pacientes renais crônicos.8
As clínicas foram selecionadas de modo que houvesse uma clínica de cada Secretaria Executiva Regional (SER) incluída no estudo. A SER funciona como uma “miniprefeitura” para controle dos serviços de infraestrutura, saneamento, saúde, etc. Após mapeamento, foi elaborada uma listagem das unidades de diálise do município e escolhidas as clínicas com maior número de pacientes, distribuídas em diferentes regionais (SER), de forma que a maioria dos bairros ou áreas do município fossem contempladas, a fim de evitar viés de estrato social nas clínicas incluídas. Como não há distribuição de clínicas em todas as regionais, foram incluídas quatro dentre as seis SERs.
As clínicas selecionadas, e incluídas no estudo, como a quase totalidade das clínicas do município, são privadas, pertencem à sociedade de médicos nefrologistas, e conveniadas ao SUS, com exceção de uma, que é filantrópica e universitária (pertence a um hospital universitário federal).
A população do estudo foi composta de pacientes portadores de DRC em tratamento dialítico no período do estudo. Os critérios de inclusão na pesquisa foram: pacientes em tratamento dialítico (acima de três meses) por DRCT durante o período do estudo, financiados pelo SUS. Foram excluídos os prontuários dos pacientes por óbito no período da coleta e transferências para outras unidades fora do município de Fortaleza. Não houve entrevista com os pacientes. Os pesquisadores foram até as unidades de diálise e colheram os dados dos prontuários (de papel e eletrônicos) dos pacientes incluídos no estudo.
Foram coletados e analisados os dados de 830 prontuários, aproximadamente 48,82% da população total de doentes renais crônicos do município. Após aplicação dos critérios padronizados,9 a amostra foi finalizada em 818 prontuários, representando 48,18% dos pacientes com DRC em diálise no município.
Os dados foram obtidos por meio de fonte secundária (prontuários dos pacientes). Na primeira fase da pesquisa, foi aplicado teste-piloto em 20 prontuários, a fim de testar o instrumento de coleta, treinar os bolsistas de iniciação científica que colaboraram com a coleta e padronizar as informações. As clínicas disponibilizaram a lista atualizada dos pacientes ativos no programa de diálise, e a pesquisadora aplicou os critérios de inclusão no estudo e finalizou a lista, que ainda poderia ser alterada durante a coleta, se fosse o caso de exclusão.
Na segunda fase, houve a validação do diagnóstico por único especialista, nefrologista PFCBCF. Fato que diminui o viés e variabilidade intraobservador, como quando existe mais de um avaliador.
O instrumento aplicado neste estudo foi elaborado e validado, bem como a definição dos critérios diagnósticos norteadores. A elaboração do instrumento e a definição dos critérios diagnósticos contaram com a participação de três especialistas em nefrologia, um epidemiologista e um enfermeiro.9
O instrumento de coleta de dados era composto de: história e quadro clínico; investigação laboratorial e radiológica; e dados histopatológicos, de modo que a determinação da causa da doença renal primária pudesse ser determinada (Anexo). Foi coletado o diagnóstico da doença renal primária contido no prontuário e o código da Classificação Internacional de Doenças (CID-10).
O estudo foi submetido ao Comitê de Ética (Plataforma Brasil) e aprovado sob número: 19989414.3.0000.5534. Procedeu-se com a autorização por meio de Termo de Fiel Depositário em cada clínica.
Analisou-se e validou-se as causas de DRCT em 818 prontuários. Observou-se que 61,1% dos pacientes eram do sexo masculino. As faixas etárias foram divididas de acordo com os percentis. A mais prevalente foi de 60 a 69 anos, 22% (180). A idade média encontrada foi de 55,7 ± 16 anos, sendo a idade mínima 18 anos e a máxima 94 anos. A média de tempo de tratamento foi 7 ± 6,1 anos. O desvio-padrão foi alto, devido ao intervalo de mínimo e máximo tempo de tratamento ser de 1 a 33 anos. A mediana para essa mesma variável mostra que 50% estão abaixo de 5 anos e, considerando os percentis, 75% estão abaixo de 10 anos (Tabela 1).
Tabela 1 Prevalência de causas de DRCT em Fortaleza, CE, antes e depois da validação (2014-2016)
Causa | Antes | Depois | ||
---|---|---|---|---|
n | % | n | % | |
Causa indeterminada | 287 | 35,1 | 316 | 38,6 |
Diabetes mellitus | 148 | 18,1 | 219 | 26,7 |
Doença renal policística do adulto | 46 | 5,6 | 53 | 6,4 |
Uropatia obstrutiva | 25 | 3,1 | 48 | 5,8 |
Glomerulonefrite primária | 45 | 5,5 | 48 | 5,8 |
Glomerulonefrite secundária | 19 | 2,3 | 32 | 3,9 |
Hipertensão primária | 187 | 22,9 | 40 | 4,8 |
Pielonefrite crônica | 16 | 2,0 | 22 | 2,7 |
Nefropatia familiar ou hereditária | 6 | 0,7 | 9 | 1,1 |
Nefrite intersticial crônica | 10 | 1,2 | 9 | 1,1 |
Hipertensão gestacional | - | - | 4 | 0,5 |
Hipertensão secundária | 15 | 1,8 | 4 | 0,5 |
Hipertensão renovascular | - | - | 2 | 0,2 |
Nefropatia congênita | 1 | 0,1 | - | - |
Outros | 5 | 0,6 | 7 | 0,9 |
As causas primárias de DRCT mais prevalentes foram causa indeterminada (38,6%), diabetes mellitus (26,7%), glomerulonefrites (9,7%), doença renal policística do adulto (DRPA) (6,4%), uropatia obstrutiva (5,8%) e hipertensão primária (5%).
A hipertensão primária foi classificada como segunda causa de DRCT, 22,9% (n=187), porém, após a validação, essa causa foi para oitavo lugar, 3,8% (n=31). Segundo o censo da SBN (2015), a hipertensão primária é apontada como a causa principal de DRCT, de 2011 a 2015.
Optou-se por incluir falência do enxerto renal como causa secundária de DRCT, a fim de se obter dados percentuais que refletissem a taxa de retorno à diálise por perda do enxerto renal, dados escassos no Brasil (Tabela 2). Foram 6,2% (n=51) após a validação.
Tabela 2 Causas primárias de DRCT após validação nos pacientes que tiveram falência do enxerto renal, Fortaleza, CE (2016)
Causa | Pós validação |
---|---|
Causa indeterminada | 27 |
Diabetes mellitus | 3 |
Hipertensão primária | 9 |
Hipertensão secundária | 1 |
Glomerulonefrite primária | 5 |
Nefropatia familiar | 2 |
Uropatia obstrutiva | 1 |
DRPA | 2 |
Nefropatia congênita | 1 |
A discordância geral entre o diagnóstico pré-existente no prontuário e o diagnóstico após a validação foi de 39,6%. A discordância entre os diagnósticos se dá em virtude da confrontação diagnóstica entre o preenchimento do CID (encontrado nos prontuários) e o resultado da análise do instrumento pelos autores. Revela uma alta porcentagem de viés de classificação, isto é, registros de causas de DRC discordantes após a validação.
Ressalta-se que a realização de HD de urgência ocorreu em 69,1% (279/404) dos pacientes. Esse percentual é ainda mais significante quando comparado ao diagnóstico primário: causa indeterminada, pois 76,6% (105/137) dos pacientes que tiveram validados esse diagnóstico realizaram HD de urgência.
O presente estudo mostrou a maior prevalência de DRC do sexo masculino, como o encontrado nos estudos de Sesso et al. (2014) e Banaga et al. (2015). A faixa etária predominante de 60 a 69 anos está de acordo com a média de idade nacional para essa população.10
Em contraste com o estudo sobre o perfil clínico-epidemiológico dos pacientes em programa crônico de HD em João Pessoa (Paraíba), foi relatado que a HAS foi a etiologia da DRC mais prevalente, 94 casos (38%), e DM como segunda causa, 32 casos (13%). Ressalta-se que, em 24 pacientes (10%), essas duas doenças foram postas como causas presumidas, e não comprovadas ou validadas. Sessenta e oito pacientes (28%) tinham etiologias desconhecidas para DRC.11
Em outro estudo nacional, a HAS foi a primeira causa de DRC (41,2%), seguida de DM (32,4%), uropatia (11,2%), glomerulonefrite crônica (5,6%) e perda do enxerto (0,7%). Destacando-se que, ainda no mesmo estudo, causa indeterminada obteve 7,7% das causas primárias.12 Vale ressaltar que os critérios diagnósticos para a doença de base nesses estudos não foram mencionados, tampouco foi informado se houve validação clínica. O que implica dizer que a causa foi presumida, mas não comprovada por critérios diagnósticos padronizados; os autores não relatam se, por exemplo, a hipertensão foi causa ou consequência da DRC.
Conforme o United States Renal Data System (USRDS) (2015), a referência norte-americana de registros de diálise, em sua última edição, o diagnóstico primário mais comum eram as glomerulonefrites até antes de 1997 para casos (pacientes) incidentes de DRCT dos EUA. No entanto, após 1997, o número de pacientes que iniciou terapia dialítica tendo como causa o diabetes excedeu o de glomerulonefrite (casos incidentes). As prevalências de diabetes e hipertensão como diagnósticos primários da DRCT vêm aumentando consideravelmente. O diabetes ultrapassou as glomerulonefrites a partir de 2011 e tornou-se a causa primária mais comum quando foram levados em conta os dados de prevalência.13
Na Europa, foram apurados no censo de 2015, referentes ao ano de 2013. O órgão representante, European Renal Association - European Dialysisand Transplant Association (ERA-EDTA) (2015), informa que o diabetes mellitus é a causa de falência renal com maior incidência na Europa (22,4%), de forma geral para o ano de 2013, seguido por causa desconhecida (17,1%), causas variadas (17,1%) e hipertensão (15,2%). As causas de maior incidência na faixa etária abaixo de 65 anos, no mesmo ano, foi diabetes mellitus (22,2%), causas variadas (17,1%), glomerulonefrite/esclerose (16,6%) e causa indeterminada (14,3%). A modalidade de tratamento mais incidente foi HD para quase a totalidade dos casos (79,2%), seguido de diálise peritoneal (15,0%) e transplante renal (5,7%).14
Há abundância de evidências mostrando que a maioria dos rastreios tende a evidenciar mais a desigualdade, em vez de reduzi-la. Isso é particularmente verdade se for feito em países onde o sistema de saúde pública é insuficientemente organizado e não suficientemente forte para ser regulado na sua totalidade e/ou se os programas de rastreio não são organizados publicamente, conduzindo assim ao chamado “rastreio oportunista”. Esse é quase sempre o caso em locais com sistema de saúde descoordenado e setor privado de saúde forte.15
O presente estudo apontou fragilidades no tocante à qualidade dos registros nos prontuários para determinar a doença de base, os quais, ou não dispunham de muitas informações importantes, ou estas estavam registradas em listas e pastas à parte; e ao grande quantitativo de causas indeterminadas que podem mudar o “ranking” das causas de DRCT.
O ponto forte do estudo deve-se ao fato de ser pioneiro no estado do Ceará e no país, com realização de pesquisa e coleta de dados de 830 pacientes com DRCT: 48% dos pacientes do município, para identificar as causas da doença renal crônica dos pacientes em diálise, com base na melhor evidência disponível.
Estabelecer o diagnóstico da doença primária renal baseado em critérios clínicos é difícil, mesmo com a avaliação sistemática e cuidadosa da existência de evidências, principalmente com relação à hipertensão arterial essencial como causa de DRCT. A síndrome clínica “nefropatia hipertensiva” continua sendo uma entidade mal-definida. A relação entre hipertensão moderada, nefroesclerose e DRCT permanece não esclarecida, apesar das pesquisas clínicas e experimentais que vêm sendo realizadas. A resposta poderia incluir viés de classificação, fatores ambientais, bem como predisposição genética.
A causa mais frequente de DRCT encontrada no estudo foi diabetes. A hipertensão primária como causa de DRCT foi superestimada. Sugere-se que o diagnóstico da causa primária de DRCT seja embasado em critérios padronizados, que devem ser revistos e atualizados periodicamente nas unidades de diálise, e informados às Secretarias Estaduais de Saúde.
Observou-se que 69,1% dos pacientes iniciaram diálise de urgência, o que demonstra a dificuldade de fazer um diagnóstico da doença de base, visto que a doença já estava em estágio avançado, além da dificuldade de acesso aos serviços de saúde pela população.
Vê-se a importância da continuidade ao longo do tempo do preenchimento do Censo Brasileiro, que deveria ser obrigatório, dada a riqueza de informações e contribuição para o desenvolvimento dos registos nacionais, pois permitiria comparações entre diferentes estados e com outros registros regionais, além de facilitar a análise de tendências na DRC em TRS no país.
Em um contexto de aumento de prevalência e incidência da DRC no Brasil, tornam-se muito relevantes as pesquisas epidemiológicas que investigam aspectos ligados à prevenção e ao tratamento da DRC. O conhecimento dos diagnósticos de base da DRC é importante do ponto de vista das políticas públicas para as populações de risco, a fim de diagnosticar, promover estratégias de prevenção e protelar o desenvolvimento da DRC.