versão impressa ISSN 1676-2444versão On-line ISSN 1678-4774
J. Bras. Patol. Med. Lab. vol.55 no.6 Rio de Janeiro nov./dez. 2019 Epub 02-Mar-2020
http://dx.doi.org/10.5935/1676-2444.20190053
O tratamento da hemofilia consiste na reposição endovenosa do fator deficiente. A formação de inibidores [anticorpos policlonais da classe de imunoglobulina G (IgG)] contra o fator exógeno é a complicação mais grave da terapia de reposição em pacientes com hemofilia®. Os pacientes acometidos passam a não responder à infusão do fator deficiente e apresentam episódios hemorrágicos de difícil controle.
Entre 10% e 30% dos pacientes com hemofilia A desenvolvem inibidores ao tratamento, enquanto a incidência entre aqueles com hemofilia B é muito mais baixa, ao redor de 1%-5%(2). A produção de inibidores é influenciada por fatores tanto genéticos quanto não genéticos(3,4). Os principais fatores genéticos são o tipo de mutação que causou a doença e a suscetibilidade genética das moléculas de superfície celular envolvidas na resposta imune, como as moléculas do complexo principal de histocompatibilidade, os receptores de linfócitos T e os receptores de citocinas, assim como várias moléculas imunomoduladoras(5).
As mutações associadas ao risco mais elevado de desenvolvimento de inibidores são aquelas que impedem a síntese da proteína endógena (mutações nulas) e estão relacionadas com o fenótipo grave da doença. Essas são as grandes deleções, mutações nonsense e (para hemofilia A) mutações de inversão nos íntrons 1 e 22(5,6).
Estima-se que mais de 40% dos casos graves de hemofilia A sejam causados por inversões no gene do fator VIII(7).
O objetivo deste estudo foi estabelecer a prevalência das inversões nos íntrons 1 e 22 do gene do fator VIII em uma amostra de pacientes com hemofilia A do estado do Paraná, Brasil, correlacionando essas mutações com a presença de inibidores contra o fator VIII e sua quantificação na mesma população.
Os participantes do estudo tinham hemofilia A e foram cadastrados no Centro de Hematologia e Hemoterapia do estado do Paraná. Procurou-se selecionar pacientes de famílias diferentes porque indivíduos hemofílicos de uma mesma raiz familiar exibem a mesma mutação causadora da doença. Trata-se de um estudo experimental observacional, analítico e transversal.
Os inibidores foram detectados por meio do teste de mistura. O método de Bethesda foi utilizado para quantificar inibidores e classificar amostras como de baixa/alta resposta; isto é, quando os inibidores tivessem níveis persistentes < 5 unidades Bethesda (UB)/ml ou acima de 5 UB/ml em resposta à exposição a um fator exógeno, respectivamente. Essa classificação correlaciona-se com a severidade clínica, uma vez que os pacientes com < 5 UB/ml geralmente respondem a um aumento na dose de fator infundida, enquanto aqueles com mais de 5 UB/ml necessitam do uso de um agente de by-pass para o controle dos episódios de sangramento(2).
A reação em cadeia da polimerase (PCR) utilizando transcrição reversa foi aplicada para identificar a inversão no íntron 22(8); a PCR rápida, para identificar a inversão no íntron 1(9).
As frequências de prevalência obtidas neste estudo foram comparadas com aquelas de artigos publicados no PubMed nos últimos 10 anos, mediante a seleção de estudos com o maior número de participantes. O teste de frequência qui-quadrado (c2) foi aplicado com um a de 5%, e simulações aleatórias de Monte Carlo foram realizadas nas situações em que os pressupostos do teste de frequência não foram atendidos. Os testes foram realizados por meio da plataforma R. A diferença estimada entre variáveis categóricas foi feita usando o teste exato de Fischer, com um nível de significância mínimo de 5%.
A pesquisa foi conduzida de acordo com a Declaração de Helsinki Revisada em 2008, tendo sido aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa. Os pacientes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido.
Um total de 45 pacientes com hemofilia A severa foi testado para inversão no íntron 22, sendo 39 não aparentados; 84 participantes foram testados para inversão no íntron 1, sendo 77 não aparentados. A prevalência de inversão no íntron 22 entre indivíduos não aparentados foi 41% e não exibiu diferença significativa (c2 = 1,13; p = 0,3)(10). A prevalência de inversão no íntron 1 entre pacientes não aparentados foi 2,6% e também não mostrou diferença significativa (c2 = 0,05; p = 1,18)(11).
Leiria et al. (2009)(12) estudaram 107 pacientes com hemofilia A também no sul do Brasil, mas no estado do Rio Grande do Sul, e relataram uma prevalência de 46% e 3% para inversões nos íntrons 22 e 1, respectivamente.
A prevalência de inibidores em pacientes aparentados e não aparentados com inversão no íntron 22 foi 26,3% e não mostrou diferença significativa (c2 = 0,01;p = 0,9)(10). Entretanto, uma diferença significativa (c2 = 26; p < 0,01) foi observada entre pacientes com inversão no íntron 1(11).
Embora não utilizados neste estudo, aplicativos para a construção de heredogramas, como o Sistema de Elaboração e Gerenciamento de Heredogramas (SEGH), podem facilitar a classificação dos pacientes em aparentados e não aparentados e tornar a coleta de amostras dos não aparentados mais efetiva, uma vez que na presença de múltiplos membros familiares acometidos, a coleta adequada de história familiar é tarefa árdua(13).
Em relação ao comportamento dos inibidores nos 45 pacientes testados para inversão no íntron 22, a prevalência de inibidores nos pacientes com e sem inversão (19 e 26 pacientes, respectivamente) foi muito semelhante: 26,3% (n = 5) e 26,9% (n = 7), respectivamente. Desse modo, nenhuma diferença foi observada na distribuição da inversão no íntron 22 de acordo com a presença de inibidor (p = 1) (Figura 1), nem em relação ao grau de resposta (p = 0,41) (Figura 2). Os dois pacientes com inversão no íntron 1 não apresentaram inibidor.
As causas do desenvolvimento do inibidor permanecem indefinidas em relação aos vários fatores etiológicos possíveis.
A inversão no íntron 22 do gene do fator VIII não esteve associada ao maior risco de desenvolvimento de inibidores na amostra analisada, enquanto o pequeno número de pacientes com inversão no íntron 1 não permitiu a aplicação de um teste estatístico para determinar sua associação com o risco de desenvolvimento de inibidores.