versão On-line ISSN 2526-8910
Cad. Bras. Ter. Ocup., ahead of print Epub 20-Maio-2020
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoao1847
O processo de desenvolvimento motor é facilmente observado no ser humano. Se tomarmos como exemplo o desenvolvimento da habilidade andar, perceberemos a relação de dependência entre o desenvolver-se do indivíduo com a necessidade deste de interagir com o ambiente em que está e de alcançar e manipular objetos durante essa interação. Esse processo de exploração de objetos e do mundo pode ser interpretado como a busca da criança por entender ativamente o seu meio (Gallahue et al., 2013). Nesta visão, a interação entre o ser humano e o ambiente é central ao processo de desenvolvimento motor (Newell, 1986).
Normalmente, é no ambiente escolar que se observam as dificuldades e obstáculos ao desenvolvimento das habilidades motoras dos indivíduos (Valle & Capellini, 2009). Há anos, estudos sobre a coordenação motora têm classificado certas crianças como desajeitadas, por apresentarem dificuldades na execução de tarefas motoras cotidianas. A American Psychiatric Association (APA) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceram e classificaram as dificuldades motoras apresentadas por estas crianças como Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação (TDC) (Valle & Capellini, 2009; American Psychiatric Association, 2014). O TDC é identificado em crianças que apresentam dificuldades de movimento, resultando em desempenho inferior ao de seus pares na realização de tarefas comuns da infância. Essas dificuldades não são associadas a problemas médicos ou doenças neurológicas (Missiuna et al., 2011; American Psychiatric Association, 2014; Pulzi & Rodrigues, 2015).
Como consequência, a criança com TDC frequentemente desenvolve problemas emocionais e sociais (Missiuna et al., 2011; Liberman et al., 2013). Devido aos problemas para lidar com atividades corriqueiras, e pela necessidade de maior esforço para planejar e realizar uma tarefa, essas crianças, frequentemente, apresentam níveis consideráveis de ansiedade e estresse (Pratt & Hill, 2011), podendo parecer desinteressadas em certas atividades que, acompanhadas pela vergonha ou falta de motivação, acarretam maior incidência de inatividade e baixa aptidão física (Cairney et al., 2010).
Desta forma, a identificação deste transtorno o quanto antes se faz necessária, tendo em vista a possibilidade de proposição de intervenção motora para ajudar a criança a superar suas dificuldades (Missiuna et al., 2011; Pulzi & Rodrigues, 2015). Para a identificação de crianças com dificuldades motoras, a Movement Assessment Battery for Children (MABC-2) (Henderson et al., 2007) tem sido frequentemente utilizada em diversos países (Toniolo & Capellini, 2010; Missiuna et al., 2011; Valentini et al., 2012, 2017) e foi citada extensivamente em trabalhos científicos referentes à avaliação de coordenação motora de crianças com TDC (Valentini et al., 2017). Apesar disso, a MABC-2 avalia a criança por meio da observação do desempenho nas tarefas e descreve o perfil motor, sendo referenciada por normas (Blank et al., 2019). Desta forma, essa bateria não é suficiente para identificar TDC, sendo necessário, além dos testes motores, examinar histórico de desenvolvimento do indivíduo, histórico médico, exame clínico, investigar envolvimento em atividades recreativas e participação na escola. A MABC mensura o desempenho de crianças de 3 a 16 anos em habilidades motoras finas e grossas e foi validada em diferentes países como um instrumento de avaliação preciso, consistente, estável e confiável (Toniolo & Capellini, 2010; Fischer et al., 2013; Valentini et al., 2017).
Geralmente, as características de coordenação motora identificadas nos estudos que utilizaram a MABC estão associadas a padrões de desenvolvimento de faixa etária, sexo, cultura e sistema educacional de um local ou região específicos (Henderson et al., 2007; Fischer et al., 2013). Segundo Blank et al. (2019), a variabilidade da prevalência de crianças com dificuldades motoras apontada na literatura é dependente de como os critérios de seleção são aplicados rigorosamente na identificação. Estudos em Singapura, Grécia, Canadá, Holanda, Alemanha, Inglaterra e Suíça, por exemplo, evidenciaram prevalências que variam entre 2% a 19% de crianças com dificuldades motoras (Wright & Sugden, 1996; Kadesjö & Gillberg, 1998; Jongmans et al., 2003; Tsiotra et al., 2006; Lingam et al., 2009).
No Brasil, a prevalência de crianças com dificuldades motoras é semelhante à desses países. Na região Sul do Brasil, a prevalência foi de 19,9% de crianças que apresentam dificuldades motoras (Valentini et al., 2012); em Maringá/PR, foi identificada prevalência de 11,4% dessas crianças (Santos & Vieira, 2013); em São José/SC, a prevalência foi de 11,1% (Silva & Beltrame, 2013); em Florianópolis/SC, a prevalência foi de 7,1% (Beltrame et al., 2017). Na região Sudeste, em Rio Claro/SP, a prevalência foi de 10,6% (Pellegrini et al., 2008); em Belo Horizonte/MG, a prevalência foi de aproximadamente 23% de crianças de 7-8 anos (Cardoso & Magalhães, 2012). Na região Norte, em Manaus/AM, 11,8% das crianças da zona urbana e 4,4% da zona rural foram identificadas com dificuldades motoras (Souza et al., 2007). Especificamente na região Nordeste do Brasil, Franca et al. (2017) mostraram que respostas dos pais ao Developmental Coordination Disorder Questionnaire-Brasil apontaram que 47,2% das crianças de 7-8 anos na cidade de João Pessoa/PB apresentam dificuldades motoras.
Essa dissonância justifica a necessidade de maior aprofundamento em investigações acerca do desenvolvimento motor de crianças em diferentes regiões brasileiras. Ainda, é possível observar que a maioria dos estudos sobre a prevalência de crianças com dificuldades motoras foi realizada nas regiões Sul e Sudeste do país. Tendo em vista a carência de estudos relacionados às dificuldades motoras na região Nordeste, as avaliações da coordenação motora realizadas em crianças da cidade de Fortaleza/CE possibilitarão identificar em quais habilidades essas crianças apresentam maiores dificuldades e, assim, será possível discutir o papel dos fatores que interferem no perfil motor das crianças avaliadas.
A cidade de Fortaleza/CE apresenta certas peculiaridades que podem impactar o potencial desenvolvimento infantil. Dentre algumas características que instigam este tipo de estudo neste contexto está o fato de a cidade ser uma das mais populosas capitais da região Nordeste, apresentar altos índices de violência, estar localizada em região com clima quente e úmido, o que induz a práticas físicas apenas em locais apropriados, além de determinar apenas uma aula de Educação Física escolar por semana e de não determinar obrigatoriedade de essa aula ser ministrada por professores de Educação Física licenciados antes do 6º ano do Ensino Fundamental (escolas públicas). Deste modo, o objetivo do presente estudo foi identificar a prevalência de crianças com dificuldades motoras na cidade de Fortaleza/CE.
Trata-se de análise secundária dos dados realizada com base em pesquisas realizadas no Instituto de Educação Física e Esportes da Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza – CE – Brasil, nos anos de 2016 e 2017 (HUWC/UFC n. 1.837.665; UFC/PROPESQ n. 1.847.016).
Participaram do presente estudo 423 crianças de 7 a 10 anos e 11 meses de idade, de ambos os sexos, matriculadas no Ensino Fundamental da cidade de Fortaleza/CE. O cálculo amostral foi realizado com base na população total de estudantes das séries iniciais do ensino fundamental da cidade de Fortaleza/CE – 83452 estudantes (Brasil, 2016), com erro amostral de 5% e nível de confiança de 95% (Triola, 1999), totalizando mínimo de 383 crianças. Os pais ou responsáveis pelos estudantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido autorizando-os a participar do presente estudo. Foram excluídas do presente estudo as crianças que apresentavam diagnóstico de alguma disfunção neurológica, bem como outros transtornos, registrado na escola.
Para avaliação da coordenação motora das crianças, foram utilizados os materiais originais que acompanham o manual de aplicação da Movement Assessment Battery for Children 2 (MABC-2) (Henderson et al., 2007). A MABC-2 é um instrumento auxiliar no processo de identificação do TDC que avalia os componentes motores Destreza Manual, Arremessar e Agarrar, e Equilíbrio Estático e Dinâmico em oito tarefas motoras. As oito tarefas que compõem a MABC-2 são específicas para cada faixa etária: 3-6 anos, 7-10 anos e 11-16 anos. Para a faixa etária 7-10 anos, aquela das crianças do presente estudo, as tarefas motoras executadas foram: Destreza Manual – (i) colocar os pinos, (ii) passar o cordão e (iii) percorrer o caminho da bicicleta; Arremessar e Agarrar – (i) arremessar e agarrar a bola de tênis com as duas mãos e (ii) arremessar um saquinho de feijão no alvo; e Equilíbrio Estático e Dinâmico – (i) apoio uni-podal sobre a prancha, (ii) caminhar calcanhar-dedão sobre a linha e (iii) saltitar sobre os tapetes. Foi utilizada a ficha de avaliação da faixa etária estudada que acompanha a bateria de testes, prancheta, caneta e cronômetro para registro do desempenho das crianças.
A pontuação do desempenho bruto obtida pela criança em cada tarefa motora foi convertida em escore padronizado, de acordo com o Manual que acompanha a MABC-2, de 1 a 17 (escores maiores representam melhores desempenhos). A pontuação em cada componente motor foi obtida por meio da soma dos escores padronizados das tarefas correspondentes ao componente. A pontuação total na MABC-2 foi obtida por meio da soma da pontuação dos componentes motores e foi convertida em percentil (Henderson et al., 2007). A criança era identificada com Desenvolvimento Típico (DT) quando sua pontuação na MABC-2 fosse igual ou superior ao 16º percentil; com Risco de dificuldade motora (RISCO) se sua pontuação na MABC-2 fosse entre o 6º e 15º percentil; ou com Dificuldades Motoras (DM) se a pontuação na MABC-2 fosse igual ou inferior ao 5º percentil.
A avaliação da coordenação motora das crianças foi realizada na própria escola em que estavam matriculadas e de forma individual, após o consentimento dos responsáveis pela criança para participar do estudo. Inicialmente, cada criança foi levada até a sala de avaliação da coordenação motora pelo avaliador e a avaliação era iniciada neste ambiente fechado e isolado de barulhos altos. Os avaliadores foram seis alunos de graduação do curso de Educação Física do Instituto de Educação Física e Esportes que receberam capacitação padronizada para aplicação da MABC-2, durante aproximadamente um mês, duas vezes por semana. A capacitação ocorreu sob a coordenação de uma docente, responsável pelo Laboratório de Avaliação e Intervenção Motora, do referido instituto, para padronizar os procedimentos de coleta de dados e reduzir as disparidades entre os avaliadores, seguindo estritamente as instruções do Manual da MABC-2. As avaliações duraram aproximadamente 40 minutos e, ao final, a criança era levada de volta para a sala de aula pelo avaliador responsável.
Os dados do desempenho das crianças foram registrados em planilha eletrônica devidamente configurada para análise dos dados. Após a conversão dos dados de desempenho em escores padronizados, foi obtida a pontuação e o percentil de classificação da criança, de acordo com o Manual da MABC-2 (Henderson et al., 2007).
Análise descritiva foi utilizada para apresentar a frequência relativa das crianças identificadas com DT, RISCO e DM. Análise Quiquadrado foi utilizada para identificar as diferenças entre os sexos quanto à prevalência de crianças que apresentaram DT, RISCO e DM. A normalidade dos dados da pontuação na MABC-2 foi testada com o teste Kolmogorov-Smirnov. O teste T de Student foi utilizado para analisar as diferenças estatísticas entre os sexos em relação à pontuação nos componentes motores Destreza Manual e Arremessar e Agarrar (dados paramétricos). O teste U de Mann-Whitney foi utilizado para analisar as diferenças estatísticas entre os sexos em relação à pontuação no componente motor Equilíbrio e à pontuação total na MABC-2 (dados não paramétricos). O software Statistica 7.0 foi utilizado em todas as análises e o nível de significância adotado foi p < 0,05.
A frequência de participantes no estudo por idade e sexo foi: 74 crianças de 7 anos, sendo 47 meninas e 27 meninos; 136 crianças de 8 anos, 67 meninas e 69 meninos; 150 crianças de 9 anos, 73 meninas e 77 meninos; e 63 crianças de 10 anos, 32 meninas e 31 meninos.
Os resultados mostraram que 62,6% das crianças avaliadas apresentaram DT, 25,8% apresentaram RISCO e 11,6% apresentaram DM. Os resultados da análise Quiquadrado não apontaram diferenças significativas entre os sexos em relação à prevalência de crianças que apresentaram DT (p = 0,57), RISCO (p = 0,27) e DM (p = 0,84) (Figura 1). A Figura 2 apresenta a frequência relativa de crianças que apresentaram DT, RISCO e DM por idade e a Tabela 1 mostra os resultados da análise Quiquadrado em relação às diferenças entre a prevalência de crianças do sexo feminino e do sexo masculino identificadas com DM, por idade.
Figura 1 Prevalência (%) de crianças identificadas com Desenvolvimento típico, Risco para dificuldades motoras e Dificuldades motoras, por meio da MABC-2.
Figura 2 Prevalência (%) de crianças identificadas com Desenvolvimento típico, Risco para dificuldades motoras e Dificuldades motoras por idade.
Tabela 1 Prevalência (%) de crianças identificadas com Dificuldades Motoras por idade e sexo.
Masculino | Feminino | p-valor | |
---|---|---|---|
7 anos | 3,7 | 14,9 | 0,13 |
8 anos | 15,9 | 16,4 | 0,93 |
9 anos | 10,4 | 5,5 | 0,26 |
10 anos | 9,7 | 12,5 | 0,72 |
Total | 11,3 | 11,9 | 0,84 |
P-valor do teste Quiquadrado.
Ainda, das crianças identificadas com DM, 61,2% tiveram o percentil menor ou igual ao 5º no componente Destreza Manual, 55,1% no componente Arremessar e Agarrar, 67,3% no componente Equilíbrio e 22,4% tiveram percentil menor ou igual ao 5º nos três componentes motores da MABC-2. Das crianças identificadas com RISCO, 13,7% tiveram o percentil menor ou igual ao 5º no componente Destreza Manual, 19,2% no componente Arremessar e Agarrar, 15,5% no componente Equilíbrio e 2,7% tiveram percentil menor ou igual ao 5º em pelo menos dois dos componentes motores do MABC-2. A Figura 3 apresenta a média e o desvio padrão da pontuação das crianças avaliadas por componente motor e por sexo. Foram encontradas diferenças significativas entre a pontuação de todas as crianças participantes do sexo feminino e a pontuação de todas as crianças participantes do sexo masculino nos três componentes motores da MABC-2. As crianças do sexo feminino apresentaram desempenho superior às crianças do sexo masculino no componente Destreza Manual (p = 0,02) e Equilíbrio Estático e Dinâmico (p < 0,01). Entretanto, as crianças do sexo masculino apresentaram desempenho superior ao das crianças do sexo feminino no componente Arremessar e Agarrar (p < 0,001).
Figura 3 Média e desvio padrão da pontuação de todas as crianças participantes em cada componente motor da MABC-2 (*diferenças significativas).
A Tabela 2 apresenta média e desvio padrão da pontuação por componente e total na MABC-2 das crianças em cada idade e por sexo. O teste T de Student mostrou diferenças significativas entre a pontuação das crianças do sexo feminino e a pontuação das crianças do sexo masculino no componente Arremessar e Agarrar. Em todas as idades, as crianças do sexo masculino apresentaram desempenho superior ao das crianças do sexo feminino neste componente. Especificamente, as crianças do sexo feminino de 8 anos apresentaram desempenho superior ao das crianças do sexo masculino no componente Equilíbrio e desempenho marginalmente superior no componente Destreza Manual (p = 0,07) e na pontuação total (p = 0,05). Além disso, as crianças de 9 anos do sexo feminino apresentaram desempenho superior ao das crianças do sexo masculino no componente Destreza Manual.
Tabela 2 Pontuação nos componentes motores do MABC-2 por idade e sexo.
Idade | Componentes Motores do MABC-2 | |||
---|---|---|---|---|
Destreza Manuala | Arremessar e Agarrara | Equilíbriob | Totalb | |
7 anos | ||||
Feminino | 27,5 (7,7) | 15,1 (4,0) | 27,6 (7,9) | 69,8 (14,9) |
Masculino | 27,7 (5,8) | 17,3 (3,5) | 26,4 (5,5) | 71,4 (8,2) |
p-valor | 0,90 | 0,01* | 0,39 | 0,75 |
8 anos | ||||
Feminino | 26,4 (6,7) | 14,3 (3,8) | 29,0 (6,2) | 69,8 (13,0) |
Masculino | 24,3 (7,0) | 16,9 (5,0) | 25,2 (7,2) | 66,5 (13,4) |
p-valor | 0,07** | <0,001* | <0,01 | 0,05** |
9 anos | ||||
Feminino | 27,6 (6,1) | 16,5 (3,9) | 28,8 (7,2) | 72,9 (13,0) |
Masculino | 25,3 (7,1) | 19,2 (4,4) | 28,1 (7,2) | 72,6 (13,4) |
p-valor | 0,03* | <0,001* | 0,34 | 0,92 |
10 anos | ||||
Feminino | 27,0 (7,2) | 15,6 (3,6) | 30,4 (8,2) | 73,0 (14,8) |
Masculino | 27,5 (4,8) | 18,2 (3,9) | 28,5 (7,9) | 74,1 (12,8) |
p-valor | 0,77 | <0,01* | 0,09 | 0,87 |
aT de Student;
bU de Mann-Whitney;
*Diferenças significativas;
**Diferenças marginalmente significativas
O objetivo do presente estudo foi identificar a prevalência de crianças com dificuldades motoras, de ambos os sexos, em uma amostra da cidade de Fortaleza/CE. Das 423 crianças avaliadas, 11,6% apresentaram dificuldades motoras. Esse resultado é semelhante ao de estudos realizados em outras cidades brasileiras: Maringá/PR = 11,4% (Santos & Vieira, 2013); São José/SC= 11,1% (Silva & Beltrame, 2013); Florianópolis/SC = 7,1% (Beltrame et al., 2017); Rio Claro/SP = 10,6% (Pellegrini et al., 2008) e Manaus/AM = 11,8% (Souza et al., 2007). A American Psychiatric Association aponta que a prevalência de crianças em idade escolar que apresentam Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação é de aproximadamente 6% (American Psychiatric Association, 2014). O cenário internacional aponta índices mais elevados em países que conduziram estudos em larga escala, variando entre 2% a 19% (Wright & Sugden, 1996; Kadesjö & Gillberg, 1998; Jongmans et al., 2003; Tsiotra et al., 2006; Lingam et al., 2009). Essa variabilidade pode ser decorrente dos critérios utilizados para identificação do TDC (Blank et al., 2019) nos estudos apontados.
Segundo o DSM-V (American Psychiatric Association, 2014), o diagnóstico do TDC deve atender a quatro critérios: apresentar desempenho motor abaixo do esperado para a idade; as dificuldades motoras interferem significativamente nas atividades de vida diária e impactam as atividades acadêmicas e recreativas; as dificuldades motoras surgem no período inicial de desenvolvimento; e as dificuldades motoras não são melhor explicadas por atraso intelectual, deficiência visual ou outras condições que afetam o movimento. No presente estudo, a prevalência de crianças com dificuldades motoras em Fortaleza/CE foi estimada com base apenas no primeiro critério apontado anteriormente. Apesar disso, acredita-se que o presente estudo avança no conhecimento do perfil motor de crianças na região Nordeste e, juntamente aos dados apontados por outros estudos, contribui para a compreensão da realidade do desempenho motor de crianças brasileiras. Pesquisas desta natureza são importantes para maior conscientização sobre o TDC e para adotar medidas para o cuidado com tais crianças (Valentini et al., 2012; Fischer et al., 2013).
Em relação às diferenças entre os sexos, os resultados mostraram que meninos e meninas tiveram prevalências de dificuldades motoras semelhantes. Esses resultados são contrários ao observado na literatura. O estudo de Valentini et al. (2012), por exemplo, apresentou prevalência mais elevada de meninas identificadas com dificuldades motoras do que de meninos. Já o estudo de Beltrame et al. (2017) mostrou maior prevalência de meninos identificados com dificuldades motoras em comparação às meninas. Por sua vez, o DSM-V (American Psychiatric Association, 2014) destaca que a prevalência de dificuldades motoras para meninos é de 2:1, enquanto a de meninas é de 7:1. Apesar dessas indicações, é possível sugerir que a semelhança nas prevalências de Dificuldades Motoras entre meninos e meninas no presente estudo possa ser decorrente do fato de que cada sexo apresentou melhores desempenhos em componentes motores diferentes. No presente estudo, as meninas apresentaram melhor desempenho nos componentes Destreza Manual e Equilíbrio em comparação aos meninos, enquanto os meninos apresentaram melhor desempenho no componente Arremessar e Agarrar em comparação às meninas. Além disso, o componente Arremessar e Agarrar apresentou a maior diferença entre os sexos em todas as idades analisadas. Assim, por meio soma da pontuação dos componentes motores, pode ser que meninos e meninas tenham obtido pontuações totais na MABC-2 semelhantes e, consequentemente, percentis semelhantes.
Essas diferenças no desempenho em testes de cada componente motor trazem uma preocupante análise dessa variação em função do contexto social e cultural da amostra. Apesar das discussões sobre desconstrução de brincadeiras e atividades “próprias” para meninos e meninas, observa-se, ainda, no contexto brasileiro, a “cultura de bola”, vivenciada principalmente por crianças do sexo masculino, enquanto as meninas são estimuladas a vivenciar atividades menos vigorosas, como desenhar e brincar de boneca (Pellegrini et al., 2008; Valentini et al., 2012). É importante ressaltar que as tarefas motoras que envolvem bola têm importante papel no desenvolvimento das noções espaciais e temporais da interação indivíduo-ambiente (Gallahue et al., 2013). Assim, as dificuldades específicas para cada gênero merecem atenção especial dos profissionais do movimento (educação física, fisioterapia, terapia ocupacional), pais e professores.
Independentemente do sexo, foi possível observar que as crianças apresentaram mais dificuldades na realização das tarefas de Equilíbrio, tendo em vista que 67,3% das crianças com Dificuldades Motoras obtiveram o percentil menor ou igual ao 5º neste componente. Nas tarefas de Destreza Manual, 61,2% das crianças com Dificuldades Motoras apresentaram o percentil menor ou igual ao 5º. Esses resultados são semelhantes aos de Valentini et al. (2012), embora trate de crianças de regiões brasileiras diferentes. A literatura tem apontado que crianças com TDC frequentemente apresentam dificuldades no controle postural, na manutenção do equilíbrio (Przysucha et al., 2016) e na realização de tarefas de coordenação motora fina (Feder & Majnemer, 2007). Isso pode ocorrer devido a deficit perceptivo-motores, tanto na percepção visuomotora quanto na mentalização espacial, que afetam a capacidade de fazer ajustes motores rápidos em tarefas complexas (Ferracioli et al., 2014) que envolvem esses componentes motores. Desta forma, sugere-se que a avaliação dos componentes Equilíbrio e Destreza Manual pode ser utilizada como forte indicativo da presença, ou não, do TDC na vida das crianças avaliadas. Além disso, destaca-se, mais uma vez, atenção especial dos professores, pais e profissionais do movimento para estímulos propícios e adequados em intervenções motoras voltadas ao desenvolvimento motor geral das crianças.
As crianças de 8 anos apresentaram maior prevalência de Dificuldades Motoras (16,2%), seguidas pelas crianças de 10 anos (11,1%), pelas crianças de 7 anos (10,8%) e, por último, pelas crianças de 9 anos (8,0%). Enquanto alguns estudos mostram uma tendência de crianças mais novas apresentarem mais dificuldades motoras do que as crianças mais velhas (Santos & Vieira, 2013; Beltrame et al., 2017), outros mostram tendência contrária (Valentini et al., 2012; Silva & Beltrame, 2013). Apesar dessas inconsistências apontadas, o que se faz importante destacar é que a identificação de possível TDC nas idades iniciais ajuda a minimizar o impacto das dificuldades motoras na realização de tarefas do dia a dia, bem como reduzir as consequências físicas (por exemplo: inatividade e sobrepeso – Cairney et al., 2010) e psicossociais (por exemplo: baixa autoestima, depressão e ansiedade – Pratt & Hill, 2011; Missiuna & Campbell, 2014) na vida das crianças.
As dificuldades para executar movimentos precisos, coordenados e adequados à idade aumentam os desafios para cumprir marcos de desenvolvimento e diminuem oportunidades de engajamento social e de prática física (Cairney et al., 2013). Estudos têm mostrado que crianças com dificuldades motoras se envolvem menos em atividades físicas recreacionais e de moderadas a vigorosas do que seus pares sem dificuldades (Cairney et al., 2010; Kwan et al., 2016), aumentando, ainda mais, as implicações associadas às consequências físicas e psicossociais das dificuldades motoras.
Com base neste quadro geral de círculo vicioso entre as dificuldades motoras e suas consequências, o presente estudo propõe discutir a implicação de uma única aula de Educação Física por semana para crianças do Ensino Fundamental, na cidade de Fortaleza. A Educação Física é importante para trazer mecanismos de aperfeiçoamento das habilidades, e assim diminuir o atraso de crianças em relação a seus pares. Entre 7 a 10 anos de idade, as crianças estão no estágio de transição da fase motora especializada (Gallahue et al., 2013), caracterizado pelo uso dos movimentos fundamentais e da combinação destes em situações específicas de esporte, dança e atividades recreativas. Desta forma, as aulas de Educação Física têm um papel importante nesta fase, pois podem favorecer às crianças vivenciarem estímulos e experiências variadas para o aumento e manutenção do seu repertório motor (Gallahue et al., 2013). Além disso, sendo a Educação Física um componente curricular obrigatório, torna-se uma oportunidade de vivência prática semanal obrigatória para a criança com dificuldade motora. Assim, tendo em vista os resultados do presente estudo, sugere-se que mais aulas de Educação Física ministradas por professores de Educação Física, bem como o acompanhamento de profissionais do movimento (fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais), tanto no contexto escolar quanto social, são essenciais para promover estímulos mais variados e direcionados aos componentes da coordenação motora requeridos para o desenvolvimento motor da criança.
Acredita-se que o presente estudo tenha avançado no sentido de destacar a prevalência de crianças com Dificuldades Motoras em uma região ainda pouco estudada nesta área de investigação e de relacionar o comportamento motor observado com a quantidade reduzida de aulas de Educação Física, atual realidade da cidade de Fortaleza/CE. Ainda, este estudo reforça os resultados encontrados na literatura sobre a prevalência de Dificuldades Motoras de crianças brasileiras ao utilizar uma bateria adequada e confiável para avaliação da coordenação motora. No entanto, o presente estudo apresenta limitações quanto à utilização apenas de testes motores (MABC-2), tendo em vista que se faz necessário, cada vez mais, ter informações específicas quanto ao histórico de desenvolvimento da criança, histórico médico, exame clínico, envolvimento em atividades recreativas e participação na escola (Blank et al., 2019) para identificação de dificuldades motoras e sua relação com possíveis transtornos desenvolvimentais. Além disso, o presente estudo propõe que novas investigações sejam feitas com intuito de identificar e averiguar o impacto das características socioeconômicas no desenvolvimento motor das crianças avaliadas para que as especificidades das regiões brasileiras possam ser destacadas e, se possível, comparadas (Fischer et al., 2013).
A prevalência de crianças com dificuldades motoras encontrada neste estudo converge para valores observados na literatura. Esses valores são preocupantes, considerando os prejuízos e problemas acarretados por consequência desta conjuntura. Crianças, quando não apresentam o desempenho desejável, tendem a se distanciar da prática de atividades físicas, agravando a situação. O componente Equilíbrio foi o que as crianças da amostra estudada apresentaram mais dificuldades, exigindo maior análise e intervenção em ambos os sexos. Também foi observado desempenho inferior das meninas no componente Arremessar e Agarrar, quando comparadas aos meninos, sugerindo que, culturalmente, elas são privadas de maior familiarização com habilidades e vivências práticas deste componente, levando a pensar a relação das dificuldades motoras encontradas com o contexto no qual essas crianças estão inseridas. Os resultados do presente estudo são importantes para conhecermos e aprofundarmos análises sobre o desenvolvimento motor das crianças na região Nordeste e, assim, para propor estratégias de intervenção ao desenvolvimento motor das crianças.