versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X
Cad. saúde colet. vol.25 no.3 Rio de Janeiro jul./set. 2017 Epub 09-Out-2017
http://dx.doi.org/10.1590/1414-462x201700030134
Chronic kidney disease is a global public health issue but its prevalence in Brazil remains uncertain.
To estimate the prevalence of chronic kidney disease among Brazilian adults.
A systematic review through an electronic literature searches on MEDLINE, Embase, other databases plus microdata from national surveys. Two researchers selected, extracted data, and assessed the quality.
We included 16 studies: national population-based using self-reported criteria found 4.57% (1998) to 1.43% (2013) prevalence; in those employing hypercreatininemia showed rate of 3.46% in Bambuí (1997) and 3.13% in Salvador (2000). Studies with non-representative samples employed clinical and laboratory criteria and showed higher prevalences: 6.26% in campaigns (2010), 8.94% in public employees (2010), 9.62% in private laboratory’s patients (2003), 27.20% in hospital (2013), and 1.35-10.64% in primary care (2011). Patients on dialysis represent 0.05% of the Brazilian population.
Representative studies did not adequately assess the disease and investigations with better diagnostic criteria had convenience sampling. Heterogeneity across studies hampered the calculation of meta-analysis.
It was not possible to estimate the prevalence of chronic kidney disease patients in Brazil due to the heterogeneity of studies included in this review. The prevalence varied according to the diagnostic criteria employed among studies. Considering population criteria, 3-6 million people would have the disease. Roughly 100.000 receive dialysis in Brazil.
Keywords: chronic kidney failure; adult; prevalence; review; Brazil
A doença renal crônica é a perda permanente da função dos rins é reconhecida como um problema global de saúde pública1. O aumento no número de casos tem sido reportado na última década em diferentes contextos1-3, associados ao envelhecimento e à transição demográfica da população, como resultado da melhora na expectativa de vida e do rápido processo de urbanização3,4. Hipertensão arterial e diabetes são as principais causas5-8, ao passo que disparidades socioeconômicas, raciais e de gênero são também fatores determinantes4,9.
A detecção precoce e o tratamento adequado em estágios iniciais ajudam a prevenir os desfechos deletérios e a subsequente morbidade relacionados às nefropatias10-12. Ademais, resultam em potenciais benefícios para qualidade de vida, longevidade e redução de custos associados ao cuidado em saúde1.
A importância da identificação da enfermidade não se restringe somente ao acesso à terapia renal substitutiva1. O adequado diagnóstico precoce e tratamento permite reduzir complicações e mortalidade cardiovasculares2-4,13,14. Tais metas são desafiadoras onde o acesso aos serviços de saúde é limitado3,6, com número reduzido de nefrologistas para o acompanhamento15,16.
Em países desenvolvidos, o rastreamento estima prevalência de doença renal crônica entre 10 e 13% na população adulta17-19. Nos países em desenvolvimento, dados de prevalência são limitados e heterogêneos2,13. No Brasil, estimativas da prevalência dessa enfermidade são incertas. O conhecimento da prevalência da doença renal crônica entre os brasileiros subsidiaria melhor o planejamento de ações preventivas e assistenciais.
Esta revisão sistemática da literatura teve como objetivo estimar a prevalência de doença renal crônica em adultos no Brasil.
Trata-se de uma revisão sistemática da literatura, cujo protocolo está registrado na base International Prospective Register of Systematic Reviews (PROSPERO), sob o número CRD42015030054. O estudo utilizou dados secundários provenientes da literatura, prescindindo de aprovação por comitê de ética em pesquisa.
Incluíram-se os estudos observacionais que estimaram a prevalência de doença renal crônica em adultos no Brasil, definida como a alteração estrutural ou funcional permanente por mais de três meses com implicações à saúde, e classificada de acordo com as causas, taxa de filtração glomerular e albuminúria20. Para efeito da presente revisão, consideraram-se adultos os indivíduos com idade ≥ 18 anos.
Pesquisaram-se as bases bibliográficas MEDLINE, Embase, Scopus, LILACS e SciELO, sem restrição de idiomas ou data de publicação. Utilizamos a seguinte estratégia no MEDLINE (via PubMed): (“Renal Insufficiency”[Mesh] OR “Renal Insufficiency, Chronic”[Mesh] OR “Kidney Failure, Chronic”[Mesh] OR “chronic kidney disease” OR “chronic kidney failure” OR CKD OR ESRD OR ESKD OR “end-stage renal disease”) AND (“Cross-Sectional Studies”[Mesh] OR “Cross-Sectional”[TIAB] OR “Prevalence”[TIAB] OR “Prevalences”[TIAB] OR “Prevalencia”[TIAB] OR “survey”[TIAB] OR “surveys”[TIAB] OR “population-based”[TIAB]) AND (Brazil OR Brasil). Adaptamos essa estratégia nas demais fontes. A última atualização ocorreu em setembro de 2017.
Também incluímos microdados dos inquéritos nacionais realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nesses casos, consideramos apenas os questionários respondidos pelos próprios entrevistados, ou seja, excluímos os proxies-respondentes.
Pesquisamos o site da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN) para obtenção dos dados do Censo Brasileiro de Diálise. Para o cálculo da prevalência, considerou-se a estimativa de pacientes em diálise informada no censo de cada ano como numerador e a estimativa da população do País para aquele ano de acordo com o IBGE21.
Selecionaram-se as referências relevantes pelos títulos e resumos por dois revisores independentes (AWM e APP) e as discordâncias resolvidas por consenso. Se o resumo estava indisponível, era acessado o texto completo para determinar elegibilidade, a partir dele processo pareado. Utilizou-se o software online Covidence nesta etapa.
Um pesquisador fez extração dos dados (AWM) e outros dois a revisão destes (APP, TFG). Coletaram-se as seguintes informações: autor, ano de publicação, país de origem, delineamento, características dos participantes, número de pacientes, idade, prevalência de doença renal crônica, critério diagnóstico.
Dois pesquisadores avaliaram a qualidade dos artigos selecionados em conjunto (AWM, TFG). Adaptou-se uma ferramenta para avaliação da qualidade metodológica22 composta por seis itens (Tabela 1): amostragem apropriada (aleatória, probabilística ou universo); tamanho de amostra adequado (previamente calculado); critérios adequados para avaliação do desfecho (confirmação de alteração estrutural pela proteinúria e/ou funcional pela creatininemia por meio de dosagens com intervalo de pelo menos 3 meses ou pacientes em tratamento dialítico); desfechos mensurados com imparcialidade (pacientes com e sem nefropatia avaliados igualmente); taxa de resposta adequada (> 70%); participantes similares à pergunta (população adulta ≥18 anos). Cada publicação recebeu pontuação entre 0 e 6 proporcional à sua qualidade metodológica.
Tabela 1 Critérios utilizados para avaliação crítica dos estudos que estimaram a prevalência de doença renal crônica (adaptado de Loney et al., 1998)22
Descrição | Critério considerado como adequado |
---|---|
Amostragem apropriada | Aleatória, probabilística ou universo |
Tamanho de amostra adequado | Tamanho de amostra previamente calculado |
Critérios adequados para avaliação do desfecho | Confirmação de alteração estrutural (proteinúria) e/ou funcional (creatininemia), por meio de dosagens com intervalo de pelo menos 3 meses; Pacientes em tratamento dialítico |
Desfechos mensurados com imparcialidade | Pacientes com e sem nefropatia avaliados igualmente |
Taxa de resposta adequada | Recusas ou perdas < 30% (taxa de resposta > 70%) |
Participantes similares à pergunta | População adulta (≥ 18 anos) |
O desfecho primário avaliado foi a prevalência de doença renal crônica conforme definido em cada estudo. As diferenças metodológicas dos estudos inviabilizaram a sumarização quantitativa dos resultados por meio de meta-análise, procedendo-se somente a análise descritiva dos resultados individuais.
Localizaram-se 949 referências nas bases bibliográficas, além dos microdados de cinco estudos. Destes, selecionamos 34 para leitura em texto completo, sendo excluídos 18 pelos motivos constantes na Figura 1. Finalmente incluímos 16 estudos23-38. Apenas a publicação principal de cada pesquisa é citada para fins de clareza do texto.
As pesquisas ocorreram entre 1997 e 2015, com predomínio nas regiões Sul e Sudeste (Tabela 2). Neste período, incluíram-se seis estudos de base populacional: três referentes à Pesquisas Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD)24,29,32; um referente à Pesquisa Nacional de Saúde (PNS)38; uma coorte de idosos e adultos realizada em Bambuí23; e um inquérito domiciliar em Salvador26. Seis pesquisas incluíram usuários de serviços de saúde: uma avaliou dados de Autorização de Procedimento de Alta Complexidade (APAC) de pacientes em terapia renal substitutiva no Sistema Único de Saúde (SUS) de todo País27; outra analisou pacientes internados em um hospital na cidade de São Paulo35; outras três avaliaram usuários da Estratégia de Saúde Família de Tubarão34,36 e de Goiânia37.
Tabela 2 Características epidemiológicas dos estudos incluídos
Estudo | Ano | Local | Fonte | População (n) | Sexo feminino (%) | Faixa etária (anos) |
---|---|---|---|---|---|---|
Passos et al. (2003)23 | 1997 | Bambuí, MG | Coorte populacional (Projeto Bambuí) | 2.312 | 60,77a | Adultos (≥ 18) |
PNAD (1998)24 | 1998 | Brasil | Inquérito domiciliar | 114.045 | 64,97 | Adultos (≥ 18) |
Censo SBN (2015)25 | 1999-2015 | Brasil | Censo Brasileiro de Diálise | 1.278.314 | 42,00b | Crianças e adultos (≥ 0) |
Lessa (2004)26 | 2000 | Salvador, BA | Inquérito domiciliar | 1.439 | 57,68 | Adultos (≥ 20) |
Moura et al. (2014)27 | 2000-2012 | Brasil | Sistema Único de Saúde (APAC) | 280.667 | 42,79 | Crianças e adultos (≥ 0) |
Nascimento e Riella (2009)28 | 2002-2005 | Curitiba, PR | Campanha em feira de saúde | 8.883 | 55,99 | Adultos (≥ 17) |
PNAD (2003)29 | 2003 | Brasil | Inquérito domiciliar | 134.397 | 65,53 | Adultos (≥ 18) |
Bastos et al. (2009)30 | 2004-2005 | Juiz de Fora, MG | Registro laboratorial | 24.248 | 59,62 | Adultos (>18) |
Lima et al. (2012)31 | 2005-2010 | São Paulo | Campanha em feira de saúde | 37.771 | 55,74 | Crianças e adultos (≥ 0) |
PNAD (2008)32 | 2008 | Brasil | Inquérito domiciliar | 169.194 | 61,25 | Adultos (≥ 18) |
Barreto et al. (2016)33 | 2008-2010 | Brasilc | Coorte institucional (ELSA) | 14.636 | 54,10 | Adultos (≥ 35) |
Dutra et al. (2014)34 | 2010-2011 | Tubarão, SC | Estratégia saúde da família | 822 | 61,56 | Idosos (≥ 60) |
Pinho et al. (2015)35 | 2010-2013 | São Paulo, SP | Prontuários hospitalares | 386 | 49,48 | Adultos (≥ 18) |
Schaefer et al. (2015)36 | 2011-2012 | Tubarão, SC | Estratégia saúde da família | 371 | 63,61 | Adultos (18-59) |
Pereira et al. (2016)37 | 2011-2013 | Goiânia, GO | Estratégia saúde da família | 220 | 67,71d | Adultos (≥ 20) |
PNS (2013)38 | 2013 | Brasil | Inquérito domiciliar | 45.236 | 61,30 | Adultos (≥ 18) |
Notas: PNAD, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio;
APAC, Autorização de Procedimento de Alta Complexidade;
SBN, Sociedade Brasileira de Nefrologia;
ELSA, Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto;
PNS, Pesquisa Nacional de Saúde.
aProporção de mulheres na população com 60 anos ou mais (proporção na população total indisponível);
bProporção de mulheres no ano de 2015 (proporção para todo o período indisponível);
cSalvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Vitória, Porto Alegre;
dProporção de mulheres na amostra total (511 adultos) (proporção por ano indisponível)
Dados do Censo Brasileiro de Diálise, realizado anualmente pela SBN foram incluídos, analisando-se os dados dos pacientes em terapia dialítica no País de 1999 até 201525. O censo da SBN provém de dados voluntariamente informados pelas clínicas públicas e privadas do Brasil. A taxa de adesão é variável, tendo sido observada maior resposta em 2007 (87,92%) e menor em 2012 (39,17%)25. A fim de minimizar o efeito da taxa de resposta, a SBN calcula estimativas levando-se em conta os números esperados nos centros que não responderam a cada inquérito, sendo atribuído para o centro um número médio de pacientes esperado na região.
Resultados de campanha da prevenção de insuficiência renal realizados em Curitiba28 e no estado de São Paulo foram relatados31. Também foi incluída uma coorte de adultos saudáveis, o Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (ELSA)33, composto por servidores ativos e aposentados de instituições de ensino e pesquisa de seis capitais brasileiras (São Paulo, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Vitória e Porto Alegre) e um registro de resultados de um laboratório de análises clínicas privado30.
A maior parte dos estudos empregou amostragem por conveniência, não representativa da população em geral25,27,28,30,31,33-37 (Tabela 3). Também foi comum como a mensuração inadequada dos desfechos, utilizando o autorrelato dos pacientes24,29,32,38 ou por dosagens laboratoriais em episódio único23,26,28,31,33,34,36,37. Não houve cálculo prévio do tamanho da amostra em cinco pesquisas25,27,28,30,31. Nenhum estudo atendeu a todos os critérios de qualidade, em geral apresentando vieses na seleção da população ou na aferição do desfecho. As pesquisas que estimaram os pacientes em terapia dialítica incluíram, em menor proporção, a população pediátrica, tendo seu escore rebaixado por este motivo25,27. Optou-se por manter estas pesquisas na análise, apesar do risco de evidência indireta por trazerem estimativas da proporção de pacientes em diálise no País.
Tabela 3 Avaliação da qualidade dos estudos incluídos
Estudo | Amostragem apropriada | Tamanho da amostra | Avaliação do desfecho | Avaliação imparcial | Taxa de resposta | Participantes semelhantes | Escore |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Passos et al. (2003)23 | 1 | 1 | 0a | 1 | 1 | 0b | 4 |
PNAD (1998)24 | 1 | 1 | 0a | 1 | 1 | 1 | 5 |
Censo SBN (2015)25 | 0c | 0d | 1 | 0e | 0f | 0g | 1 |
Lessa (2004)26 | 1 | 1 | 0a | 1 | 1 | 1 | 5 |
Moura et al. (2014)27 | 0c | 0d | 1 | 0e | 1 | 0f | 2 |
Nascimento e Riella (2009)28 | 0c | 0d | 0a | 1 | 1 | 1 | 3 |
PNAD (2003)29 | 1 | 1 | 0a | 1 | 1 | 1 | 5 |
Bastos et al. (2009)30 | 0c | 0d | 1 | 0h | 1 | 0i | 2 |
Lima et al. (2012)31 | 0c | 0d | 0a | 1 | 1 | 1 | 3 |
PNAD (2008)32 | 1 | 1 | 0a | 1 | 1 | 1 | 5 |
Barreto et al. (2016)33 | 0c | 1 | 0a | 1 | 1 | 1 | 4 |
Dutra et al. (2014)34 | 0c | 1 | 0a | 1 | 0j | 0b | 2 |
Pinho et al. (2015)35 | 0c | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 5 |
Schaefer et al. (2015)36 | 0c | 1 | 0a | 1 | 0j | 1 | 3 |
Pereira et al. (2016)37 | 0c | 1 | 1 | 1 | 1 | 0b | 4 |
PNS (2013)38 | 1 | 1 | 0a | 1 | 1 | 1 | 5 |
Total de itens atendidos | 6 | 11 | 5 | 13 | 13 | 10 | - |
Notas: PNAD, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio;
SBN, Sociedade Brasileira de Nefrologia;
PNS, Pesquisa Nacional de Saúde.
aAvaliação do desfecho autorreferido ou em episódio único de proteinúria ou hipercreatininemia;
bPredominante em população idosa;
cAmostragem por conveniência;
dSem cálculo do tamanho da amostra;
eO denominador igual à população anual do País, não sendo avaliado o desfecho em toda a população brasileira;
fDados informados voluntariamente pelas clínicas de diálise em questionário on-line. Em 2014, a taxa de resposta na Região Norte foi 5% e na Sudeste, 47%39;
gIncluiu pessoas de 0 a 19 anos (menos de 6% da amostra no Censo SBN25 e 3,4% no estudo Moura et al.27);
hA segunda dosagem da creatinina buscada somente naqueles com uma dosagem elevada;
iRegistros de pacientes de um laboratório da rede privada;
jInformações sobre as perdas ausentes. Devido ao restrito critério de inclusão, assumiu-se que foram importantes (pacientes tinham que comparecer em jejum aos sábados de manhã após 12 horas de jejum e abstinência de álcool por 72 horas)
As pesquisas realizadas pelo IBGE mensuraram de forma autorreferida, com as perguntas “O Sr./Sra. tem doença renal?” (1998) e “Algum médico ou profissional de saúde disse que o Sr./Sra. tem doença renal?” (a partir de 2003), que poderiam ser respondidas com “sim” ou “não” (Tabela 4). A prevalência autorreferida no intervalo de 15 anos dos inquéritos apresentou tendência decrescente, com relatada prevalência de 4,57% em 199824, 2,87% em 200329, 1,90% em 200832 e 1,43% em 201338.
Tabela 4 Prevalência de doença renal crônica e critérios diagnósticos adotados nos estudos
Estudo | Critério diagnóstico | Definição de doença renal crônica | Prevalência (%) |
---|---|---|---|
Populacionais | |||
PNAD (1998)24 | Autorreferido | O Sr./Sra. tem doença renal? | 4,57 |
PNAD (2003)29 | Autorreferido | Algum médico ou profissional de saúde disse que o Sr./Sra. tem doença renal? | 2,87 |
PNAD (2008)32 | Autorreferido | Algum médico ou profissional de saúde disse que o Sr./Sra. tem doença renal? | 1,90 |
PNS (2013)38 | Autorreferido | Algum médico ou profissional de saúde disse que o Sr./Sra. tem doença renal? | 1,43 |
Passos et al.(2003)23 | Creatinina sérica (única dosagem) | Creatinina sérica ≥ 1,3 mg/dl para homens e ≥ 1,1 mg/dl para mulheres | 3,46 |
Lessa (2004)26 | Creatinina sérica (única dosagem) | Creatinina sérica ≥ 1,3 mg/dl | 3,13 |
Institucional | |||
Barreto et al. (2016)33 | Creatinina sérica e/ou proteinúria (única dosagem) | Taxa de filtração glomerular <60 ml/min/1.73 m2 e/ou relação albumina-creatinina ≥ 30 mg/g | 8,94 |
Campanhas | |||
Nascimento e Riella (2009)28 | Proteinúria | Fita reativa positiva (1 a 4+) | 6,00 |
Lima et al. (2012)31 | Proteinúria | Fita reativa positiva (1 a 4+) | 7,26 |
Serviços de saúde | |||
Atenção primária | |||
Dutra et al. (2014)34 | Creatinina sérica (única dosagem) | Taxa de filtração glomerular < 60 ml/min/1,73 m2 | 13,63 |
Schaefer et al. (2015)36 | Creatinina sérica (única dosagem) | Taxa de filtração glomerular < 60 ml/min/1,73 m2 | 1,35 |
Pereira et al. (2016)37 | Creatinina sérica e/ou proteinúria (única dosagem) | Taxa de filtração glomerular <60 ml/min/1,73 m2 | 10,64 |
Laboratório | |||
Bastos et al. (2009)30 | Creatinina sérica (duas dosagens) | Taxa de filtração glomerular < 60 ml/min/1,73 m2 | 9,62 |
Hospital | |||
Pinho et al. (2015)35 | Creatinina sérica (duas dosagens) | Registro médico no prontuário de pacientes com 2 dosagens de creatinina sérica | 27,20 |
Clínicas de diálise | |||
Censo SBN (2015)25 | Diagnóstico clínico | Pacientes em diálise em clínicas públicas e privadas | 0,03-0,06a |
Moura et al. (2014)27 | Diagnóstico clínico | Pacientes em diálise no SUS | 0,03-0,05b |
Notas: PNAD, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio;
SBN, Sociedade Brasileira de Nefrologia;
SUS, Sistema Único de Saúde;
PNS, Pesquisa Nacional de Saúde.
aPrevalência, % (paciente por milhão da população): 1999 = 0,03 (254,3); 2000 = 0,03 (274,2); 2001 = 0,03 (283,1); 2002 = 0,03 (312,2); 2003 = 0,03 (334,4); 2004 = 0,03 (326,4); 2005 = 0,03 (294,9); 2006 = 0,04 (379,5); 2007 = 0,04 (388,8); 2008 = 0,05 (459,1); 2009 = 0,05 (405,2); 2010 = 0,05 (482,8); 2011 = 0,05 (474,7); 2012 = 0,05 (503,2); 2013 = 0,05 (499,4); 2014 = 0,06 (552,4); 2015 = 0,05 (544,0);
bPrevalência, % (paciente por milhão da população): 2000 = 0,03 (336,3); 2001 = 0,04 (366,2); 2002 = 0,04 (376,0); 2003 = 0,04 (401,8); 2004 = 0,04 (416,7); 2005 = 0,04 (435,7); 2006 = 0,05 (425,0); 2007 = 0,05 (466,3); 2008 = 0,05 (459,1); 2009 = 0,05 (484,7); 2010 = 0,05 (502,8); 2011 = 0,05 (521,4); 2012 = 0,05 (538,3)
Os outros de base populacional utilizaram a hipercreatininemia como critério diagnóstico. A coorte de idosos de Bambuí (N=2.312) realizou uma etapa transversal com a inclusão de adultos maiores de 18 anos: 3,46% apresentaram creatinina sérica elevada, sendo maior nos idosos do sexo masculino23. O inquérito populacional realizado em 1.439 adultos de Salvador no ano 2000 encontrou 3,13% de hipercreatininemia, com maior prevalência no sexo masculino26.
Nos 14.636 funcionários públicos incluídos no ELSA, encontrou prevalência de 8,94% pela análise da taxa de filtração glomerular e/ou relação albuminúria-creatinina urinária33. As aferições ocorreram de 2008 a 2010 e incluíram pessoas de 34 a 74 anos, com leve predominância de mulheres (54,10%).
Campanhas realizadas em 37.771 adultos (55,74% mulheres) no estado de São Paulo entre 2005 e 2010 encontraram prevalência de 7,26% de proteinúria entre os participantes submetidos ao teste da fita reagente em amostra de urina31. Em Curitiba, no período de 2002 a 2005, esta mesma abordagem encontraram 6,00% de proteinúria em 8.883 adultos ≥ 17 anos, dos quais 55,99% eram mulheres28.
Dados retrospectivos de um hospital universitário de São Paulo com 386 pacientes ≥ 18 anos, 49,48% sexo feminino, encontrou prevalência de 27,20%. O diagnóstico baseou-se no registro médico em prontuários de pacientes que tinham duas dosagens de creatinina sérica durante a internação em uma enfermaria no período de 2010 a 201335.
Na Estratégia de Saúde Família de Goiânia com 220 adultos ≥ 20 anos, 67,71% sexo feminino, observou-se 10,64% de pacientes com taxa de filtração glomerular ≤60ml/min/1,73m237. O Estudo Saúde dos Idosos de Tubarão incluiu 822 adultos com 60 anos ou mais, 61,56% do sexo feminino, 92,2% brancos, e obteve 13,63% com taxa de filtração glomerular alterada34. A mesma investigação com 371 adultos de 18 a 59 anos, 63,61% mulheres, 86,3% brancos, encontrou prevalência de 1,35%36. Nestas duas pesquisas, os pacientes cadastrados na Estratégia de Saúde Família de Tubarão compareceram aos sábados, respeitando jejum de 12 horas e abstinência alcoólica de 72 horas, no Centro de Pesquisas Clínicas do Hospital Nossa Senhora da Conceição, Tubarão, para realizar as dosagens.
Análise de 24.248 clientes de um laboratório de análises clínicas de Juiz de Fora encontrou prevalência de 9,62% avaliada pela taxa de filtração glomerular30. A maior parte era do sexo feminino (59,62%), com média de idade 48-74 anos.
A prevalência de diálise reembolsada pelo SUS entre os anos 2000 e 2012 variou de 0,03% em 2000 (336,3 pacientes por milhão da população [pmp]) a 0,05% em 2012 (538,3 pmp), por meio de pareamento de dados das APAC27. Para cálculo dessa prevalência, os pesquisadores empregaram como denominador a estimativa da população anual do Brasil. Realizam mais diálise pessoas do sexo masculino (57,2%), brancas (45,2%) e com idade 45-64 anos (43,4%), com predomínio da hemodiálise como modalidade terapêutica (90,1%) e diálise peritoneal em menor proporção (9,9%). Negros (9,7%) e pardos (30,8%) tiveram menor representatividade dentre os pacientes em diálise. Entre as principais causas da doença destaca-se hipertensão arterial sistêmica (34%), diabetes melito 29% e glomerulopatias (13%). Crianças de 0 a 19 anos representaram 1,3% da população em terapia dialítica no SUS27.
No intervalo de 2005 a 2015, a prevalência estimada pelo censo da SBN dos pacientes em diálise praticamente dobrou, passando de 0,03% (294,9 pmp) para 0,05% (544 pmp)25. Neste período também observou-se redução na prevalência de hepatite B, que passou de 1,80% em 2005 para 0,90% em 2015, e de hepatite C, que reduziu de 11,00% para 3,80%. A prevalência de pacientes portadores do vírus da imunodeficiência humana aumentou de 0,50% para 0,80%. Hemodiálise correspondeu à terapia dialítica mais empregada em todos os anos e em 2015 atingiu 92,80%, a maior parte com reembolso pelo SUS, 84,00%. Os mais acometidos são os adultos entre 20 e 65 anos de idade, que representaram 64,90% no ano de 2015; sexo masculino foi o mais prevalente para todos os anos, e em 2015 representou 58% dos pacientes em diálise25.
A prevalência de doença renal crônica na população brasileira ainda é incerta. Estimativas populacionais mais recentes revelam cerca de 1,5% de doença renal autorreferida. A prevalência de hipercreatininemia na população ficou em torno de 3%. A partir destes dados, de 3 a 6 milhões de adultos teriam a doença. Em relação a acesso ao tratamento, 0,05% da população brasileira realiza dialítica, o que representaria em torno de 100 mil pacientes.
As prevalências encontradas são provenientes de estudos transversais e de coorte aplicados em amostras de base populacional ou amostras por conveniência (registros laboratoriais, campanhas de sensibilização ou provenientes de instituições). Pesquisas que usaram os melhores critérios diagnósticos partiram de amostras selecionadas, sem representatividade da população: estudos de melhor validade interna para o diagnóstico tiveram baixa capacidade de generalização. Como resultado dessa baixa validade externa, tiveram as maiores prevalências23,30,34,36,37.
Inquéritos com amostragem representativa mensuraram a doença pelo autorrelato ou pela hipercreatininemia isolada23,24,26,29,32,38. Para confirmar a doença renal crônica, seriam necessárias pelo menos duas dosagens seriadas da creatinina ao longo de três meses ou comparar com outras dosagens anteriores39, tempo necessário para definição e diferenciação entre disfunção aguda e crônica2.
Além das questões referentes à seleção da amostra e mensuração do desfecho, as pesquisas incluíam pacientes de diferentes faixas etárias, sem informar consistentemente a prevalência em cada faixa. É conhecido que a prevalência de nefropatias aumenta com a idade1,40. Em menor escala, mas de semelhante relevância, as diferenças naturais entre os sujeitos incluídos em cada análise, considerou-se a diversidade socioeconômica, demográfica e cultural da população brasileira, podem também influenciar nos resultados encontrados41. A heterogeneidade entre pesquisas inviabilizou a elaboração de meta-análise, cujo resultado seria de baixa aplicabilidade, dadas essas limitações.
Estimar a real prevalência na população ainda é um desafio devido ao critério diagnóstico. A dosagem da creatinina sérica e a pesquisa de albuminúria são os principais marcadores empregados. Com estes marcadores a prevalência chegou a 13,1% em adultos no último National Health and Nutrition Examination Survey (NHANES, 1999-2004 n = 13.233)42. Em uma coorte chinesa com 47.204 adultos de 13 províncias, entre 2009 e 2010, obteve-se a prevalência de 10,8%4. Nos demais países emergentes, estima-se que a prevalência seja igualmente elevada41,43.
Os doentes renais apresentam alto risco de eventos cardiovasculares fatais e mortalidade mesmo antes de atingir os estágios avançados44. Esse viés de sobrevivência influencia nos achados observacionais, que pode representar inadequadamente a população doente por apenas incluir aqueles que acessaram o tratamento em tempo hábil. A progressão de nefropatias sem tratamento adequado aumenta o risco de desfechos negativos mortalidade40,45,46.
A presença de sintomas urêmicos e necessidade de diálise apontam para o diagnóstico tardio39. Todavia, o caráter insidioso dos estágios iniciais dificulta o diagnóstico precoce da doença renal crônica1. Tal fato pode explicar a baixa prevalência autorreferida nos estudos incluídos24,29,32,38. A prevalência informada reflete os casos diagnosticados e que tiveram acesso a serviços de saúde43.
O número de pacientes em terapia dialítica na América Latina tem aumentado nos últimos anos, o que pode estar associado às dificuldades de acesso ao tratamento2,13,47,48. Dados sobre estágios iniciais permanecem indisponíveis ou pouco explorados nestes países48, possivelmente devido à falta de diagnóstico precoce. Observa-se uma avançada industrialização nessas regiões, acompanhadas do aumento na prevalência de hipertensão, diabetes e doença cardiovascular, sobretudo em setores de baixo nível socioeconômico48-50. Além disso, deficiências nos sistemas de saúde e na promoção de medidas preventivas sabidamente favorecem evolução para disfunção crônica14,51,52. As disparidades sociais e de saúde figuram importantes problemas no Brasil, a despeito das melhorias no acesso ao sistema de saúde e qualidade dos serviços observados nas últimas décadas41. As discrepâncias observadas entre portadores de disfunção crônica estão relacionadas principalmente ao nível de escolaridade, gênero, região geográfica e raça53.
A proporção de negros, pardos e indígenas entre os brasileiros em terapia renal substitutiva é baixa, indicando menor sobrevivência ou dificuldades de acesso a serviços de saúde53,54. A insuficiência renal está associada aos menores índices de escolaridade, ao passo que aqueles com melhor nível educacional são os que mais têm acesso ao tratamento dialítico e/ou transplante55. O baixo nível socioeconômico está associado à microalbuminúrica, macroalbuminúria, redução da taxa de filtração glomerular e perda progressiva de função dos néfrons56. Tais aspectos evidenciam a iniquidade da assistência no País.
Os inquéritos populacionais realizados no Brasil tiveram sua abrangência geográfica gradativamente ampliada. Os resultados das PNAD de 1998 a 2003 representam as áreas urbanas das Unidades da Federação e grandes regiões metropolitanas, exceto as zonas rurais de seis estados da Região Norte24,29. Somente a partir de 2004 a PNAD alcançou a cobertura completa do território nacional57. Além da maior cobertura, a abordagem e questionamento a respeito da condição de portador de insuficiência renal crônica sofreu modificação ao longo dos anos. A inclusão tardia desses extratos pode explicar a variação na prevalência de autorrelato observada ao longo dos anos. A maior disponibilidade de serviços de saúde, sobretudo nas Regiões Sul e Sudeste, potencialmente aumentam o conhecimento da população sobre sua condição clínica, facilitam o acesso ao diagnóstico e ao tratamento de estágios avançados49,58.
No Brasil, os pacientes renais recebem tratamento dialítico majoritariamente por meio do SUS27. A diálise é considerada um tratamento de alto custo e no Brasil o SUS é responsável pelo reembolso de quase 90% dessa terapia27. Apesar disso, é desconhecida a frequência de pacientes que morrem antes terem acesso à diálise. Tampouco se sabe a frequência de pacientes submetidos ao transplante renal sem diálise prévia, chamado transplante preemptivo59.
A crise econômica que o Brasil enfrenta desestimula a abertura de novas clínicas e favorece o fechamento das unidades existentes60. Atualmente observa-se redução no número de vagas para o tratamento do doente e aumento da lista de espera por tratamento nos centros de diálise61-63.
Na atenção básica de saúde, o adequado tratamento e controle do diabetes e da hipertensão podem reduzir os fatores de risco para instalação e progressão para cronicidade64. Nos estudos incluídos que avaliaram usuários deste nível de atenção, foram observadas prevalências elevadas34,36,37. O rastreamento neste grupo pela albuminúria, por exemplo, seria uma medida importante para prevenir a progressão52. No Brasil, os hospitais e serviços de emergências continuam como porta de entrada para o tratamento dialítico52, invertendo a lógica da atenção primária em saúde.
A presente revisão seguiu de forma rigorosa as recomendações para elaboração de revisões sistemáticas: busca estruturada da literatura disponível, sem restrição de idioma ou ano de publicação, seleção e extração pareada de dados, e avaliação da qualidade metodológica65,66. Tais recomendações são essenciais para dirimir os possíveis vieses e aumentar a transparência nos resultados apresentados, para possibilitar sua reprodutibilidade.
Em conclusão, não há estimativa precisa do número de brasileiros com insuficiência renal crônica entre os brasileiros. Estudos que tiveram melhor representatividade falharam na aferição da doença, e aqueles que aferiram adequadamente partiram de populações pré-selecionadas. De acordo com os inquéritos populacionais, de 3 a 6 milhões de brasileiros seriam renais crônicos. Pouco mais de 100 mil recebem terapia dialítica. Os achados apontam para a necessidade de ampliação do acesso aos serviços de saúde, a fim de diagnosticar precocemente e possibilitar tratamento oportuno. Pesquisas futuras com adequada validade interna e externa são necessárias para estimar a real prevalência de doença renal crônica na população brasileira.