versão impressa ISSN 1808-8694
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.81 no.2 São Paulo mar./abr. 2015
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2015.01.004
Fissura labial e/ou palatina não sindrômica (FL/PNS) é a alteração congênita mais prevalente da área craniofacial e resulta em complicações anatômicas e distúrbios psicológicos e comportamentais.1 A incidência de FL/PNS varia de acordo com a localização geográfica, raça e condição socioeconômica,2 , 3 e tem uma distribuição média de aproximadamente 1 caso para cada 700 nativivos.4 A etiologia das FL/PNS é multifatorial, envolvendo alguns genes e complexos eventos moleculares que ocorrem durante a embriogênese, e que são influenciados por fatores ambientais.5 , 6
Alguns estudos têm associado o aumento do risco para o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos em crianças e adolescentes com FL/PNS, observando níveis alterados de sintomas depressivos.7 - 12 Observa-se na literatura que os transtornos depressivos na população normal, em estudos de base popula cional, atingem prevalência de 10% e incidência de 2% na população.13 Estima-se que cerca de 5% das pessoas no mundo tenham depressão, e que cerca de 10% a 25% delas podem apresentar algum episódio depressivo em durante a vida.14 , 15
O predomínio da depressão infantil aumenta com a idade e centraliza-se em torno de 2% e, durante a adolescência, vai aumentando progressivamente, até alcançar números próximos aos da vida adulta.16 Em diferentes regiões do mundo e, inclusive no Brasil, estes valores variam de 0,4% a 3,0% para crianças e de 3,3% a 12,4% para adolescentes. Essas variações podem ser explicadas pelas diferenças metodológicas na estratégia de seleção da amostra, assim como por diferenças culturais dos locais nos quais os estudos foram conduzidos.15 - 17
A detecção precoce de sintomas depressivos pode indicar danos ao ambiente social, escolar e familiar7 , 8 , 18 e, para isso, existem vários métodos aplicados para triagem e diagnóstico.19 , 20 O Inventário de Depressão Infantil (IDI) é usado para avaliar sintomas depressivos em crianças e adolescentes em diferentes contextos clínicos e de pesquisa.19 - 21 Dessa maneira, alguns estudos têm mostrado uma associação entre a ocorrência dessa malformação e o ajustamento psicossocial, sugerindo maior atenção aos pacientes com FL/PNS, incluindo seu desenvolvimento global e integração no ambiente social.21 - 24
Além disso, é necessário um apoio psiquiátrico e psicológico ao longo do crescimento e desenvolvimento dos pacientes com FL/PNS e também durante todo o período de reabilitação, buscando entender suas necessidades e a de seus pais no processo de sentir e vivenciar a malformação craniofacial.10 , 11 , 23 , 24 Assim, o objetivo deste estudo foi avaliar a prevalência de sintomas depressivos em crianças e adolescentes com FL/PNS.
Realizou-se um estudo caso-controle, observacional. Todos os participantes foram selecionados na mesma instituição (Centro de Referência para Reabilitação de Anomalias Craniofaciais e Clínicas Odontológicas e Médicas), no estado de Minas Gerais, Brasil. O grupo caso foi constituído de 61 pacientes com FL/PNS, com idades entre sete e 17 anos; e o grupo controle foi formado por 61 indivíduos clinicamente saudáveis (com história pessoal ou familiar negativas para alterações ou síndromes craniofaciais) na mesma faixa etária. Ambos os grupos de estudo foram selecionados por conveniência, respeitando, quantitativamente, cálculos amostrais prévios para definição do número de sujeitos envolvidos. Foram excluídos do estudo aqueles pacientes sem um diagnóstico ou sindrômicos, com anomalias craniofaciais ou história familiar de consanguinidade. Comparou-se a prevalência e a gravidade de sintomas depressivos entre os grupos através da aplicação de um questionário autodirigido e autoexplicativo, o IDI.19
Este instrumento (IDI) (tabela 1) foi desenvolvido para detectar a presença e a gravidade de sintomas depressivos em crianças e adolescentes, a fim de se identificar alterações no humor, na capacidade hedônica, nas funções vegetativas e nos comportamentos autoavaliativos e interpessoais. Os 27 itens do questionário são somados para obtenção de uma pontuação (escore), que pode ser positiva conforme a validação da nacionalidade do questionário.19 , 25 Durante a aplicação do questionário, cada item do IDI foi lido em conjunto com os pacientes, permitindo, assim, o esclarecimento de possíveis dúvidas. O valor de alfa foi fixado em 0,5%. O ponto de corte (escore) estabelecido previamente e com significância estatística foi de 17 pontos. Os resultados foram comparados por meio do teste do Qui-quadrado e análise de regressão logística. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética Institucional (nº 56/2010).
A distribuição para os grupos caso (n = 61) e controle (n = 61) seguiu um padrão normal para o gênero; e, em ambos os grupos, a faixa etária mais prevalente foi entre sete e 13 anos de idade (tabela 2). Ao avaliar a classificação de FL/PNS para o grupo caso, encontrou-se uma maior frequência de fissura de palato (n = 33), com distribuição igual para fissura de lábio e palato isolada (n = 14; correspondente a 23% para cada, no grupo). A análise de regressão logística não identificou associação entre as variáveis sociodemográficas, quando os dois grupos foram comparados: gênero (p = 0,716; OR 1,14; 95% IC 0,56-2,32), idade (p = 0,364; OR 1,40; 95% IC 0,68-2,85); e educação (p = 0,082; OR 3,34; 95% IC 0,86-13,0). Houve uma associação para a cor da pele (p = 0,048; OR 3,34; 95% IC 1,0-4,27), o que significa que os indivíduos com FL/PNS são 3,34 vezes mais propensos a serem leucodermos (tabela 2).
Tabela 2 Características gerais dos pacientes com fissuras labiopalatinas não sindrômicas (grupo caso) e sem fissuras labiopalatinas (grupo controle)
Variáveis | Casos | Controles | Total | OR ajustada | OR | 95% IC | p | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | |||||
Sexo | ||||||||||
Masculino | 29 | 47,5 | 27 | 44,3 | 56 | 45,9 | 1,14 | 1,13 | 0,56-2,32 | 0,716 |
Feminino | 32 | 52,5 | 34 | 55,7 | 66 | 54,1 | ||||
Idade (anos) | ||||||||||
7-9 | 23 | 37,7 | 21 | 34,4 | 44 | 36,1 | 1,40 | 1,38 | 0,68-2,85 | 0,364 |
10-13 | 20 | 32,8 | 26 | 42,6 | 46 | 37,7 | ||||
14-17 | 18 | 29,5 | 14 | 23,0 | 32 | 26,2 | ||||
Cor da pele | ||||||||||
Leucoderma | 35 | 57,4 | 24 | 39,3 | 59 | 48,3 | 2,07 | 2,0 | 1,00-4,27 | 0,048 |
Melanoderma | 26 | 42,6 | 37 | 60,7 | 63 | 51,7 | ||||
Sintomas depressivos | ||||||||||
Sim | 13 | 21,3 | 08 | 13,1 | 21 | 17,2 | 1,80 | 1,77 | 0,68-4,70 | 0,234 |
Não | 48 | 78,7 | 53 | 86,9 | 101 | 82,8 | ||||
Total | 61 | 100 | 61 | 100 | 122 | 100 |
Observou-se uma prevalência de sintomas depressivos no grupo caso (FL/PNS; 21,3%, n = 13), porém não houve significância estatística quando comparado com o grupo controle (p = 0,234, OR 1,80, 95% IC 0,68-4,70) (tabela 2). A análise de cada um dos 27 itens do IDI identificou uma distribuição homogênea na frequência de sintomas depressivos em ambos os grupos, e houve associação para três itens quando se comparou a média dos escores, por subitem do IDI (tabela 3). Com relação ao item que contemplava a investigação sobre suicídio, observou-se que 8,4% (n = 5) dos indivíduos no grupo caso (FL/PNS) relataram algum desejo de se matar, em comparação com o grupo controle, com apenas 6% (n = 1).
Tabela 3 Comparação dos escores médios por subitem do CDI (p-valor, comparação de medianas por Kruskall-Wallis) de pacientes com fissuras labiopalatinas não sindrômicas (grupo caso) e pacientes do grupo controle (n = 122)
Subitem | Casos | Controles | p |
---|---|---|---|
1 | 0,312 | 0,213 | 0,443 |
2 | 0,410 | 0,525 | 0,223 |
3 | 0,267 | 0,361 | 0,167 |
4 | 0,328 | 0,360 | 0,710 |
5 | 0,082 | 0,213 | 0,065 |
6 | 0,738 | 0,836 | 0,344 |
7 | 0,066 | 0,131 | 0,301 |
8 | 0,262 | 0,328 | 0,278 |
9 | 0,393 | 0,426 | 0,429 |
10 | 0,213 | 0,213 | 0,845 |
11 | 0,574 | 0,705 | 0,356 |
12 | 0,262 | 0,410 | 0,155 |
13 | 0,508 | 0,508 | 1,000 |
14 | 0,328 | 0,426 | 0,278 |
15 | 0,951 | 0,574 | 0,021a |
16 | 0,148 | 0,344 | 0,052 |
17 | 0,426 | 0,492 | 0,735 |
18 | 0,328 | 0,230 | 0,671 |
19 | 0,820 | 0,951 | 0,393 |
20 | 0,328 | 0,262 | 0,519 |
21 | 0,312 | 0,312 | 0,656 |
22 | 0,295 | 0,262 | 0,802 |
23 | 0,312 | 0,377 | 0,958 |
24 | 0,508 | 0,787 | 0,044a |
25 | 0,131 | 0,295 | 0,039a |
26 | 0,377 | 0,180 | 0,094 |
27 | 0,164 | 0,098 | 0,519 |
a p-valor < 0,05.
Alguns estudos têm relacionado o risco aumentado para o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos em crianças e adolescentes com FL/PNS, sugerindo níveis desfavoráveis de sintomas depressivos.10 , 11 , 26 - 28 Uma meta-análise que incluiu 340 estudos identificou altos níveis de sintomas depressivos em diversas condições crônicas ou doenças, quando comparados com indivíduos normais.28 Diferenças marcantes foram encontradas na síndrome da fadiga crônica, na fibromialgia, na enxaqueca, na epilepsia e nas FL/P. A presença desses sintomas foi mais prevalente em pacientes do gênero feminino e em indivíduos de países em desenvolvimento.28 No presente estudo, apesar da presença de sintomas depressivos no grupo caso FL/PNS (21,3%, n = 13), não houve significância estatística positiva quando comparado com o grupo controle (p = 0,234; OR 1,80; 95% IC 0,68-4,70). A análise estratificada não demonstrou nenhuma associação de sintomas depressivos em ambos os grupos (caso vs.controle) em combinação de variáveis, tais como gênero (p = 0,145) e idade (p = 0,165).
Sabe-se que a detecção precoce de sintomas depressivos é importante, uma vez que identifica antecipadamente danos para o ambiente familiar, social e escolar,7 , 8 , 26 - 28 e que a aplicação de métodos de rastreio e diagnóstico pode orientar o tratamento desses pacientes.19 , 29 Em estudo caso-controle irlandês, comparou-se a presença de distúrbios psicológicos funcionais, tais como ansiedade e depressão, e distúrbios de comportamento entre 160 crianças e adolescentes com FL/PNS e 113 indivíduos normais.30 Foi observada uma associação importante entre alterações de comportamento e sintomas depressivos na presença de FL/PNS (p < 0,001). No presente estudo, a pontuação utilizada (escore) foi de 17, com base na adaptação e padronização deste instrumento no Brasil.26 A análise de cada um dos 27 itens do IDI identificou uma distribuição homogênea para a frequência de sintomas depressivos em ambos os grupos, não havendo, portanto, uma associação positiva. No estudo irlandês, com relação à aparência facial e dificuldade com a fala, os pacientes mostraram-se mais infelizes do que os controles, observando-se altas taxas de suicídio, como observado em nosso estudo, com 8,4% (n = 5) dos entrevistados no grupo caso (FL/PNS), em comparação com 1,6 % (n = 1) no grupo controle.30 Outro estudo encontrou uma alta incidência de distúrbios psicológicos e dificuldade na interação social em pacientes com FL/P.10
Com relação ao tipo de fissura, foram encontradas maiores taxas de problemas relacionados à ansiedade, à depressão e às dificuldades de aprendizagem e de fala em crianças com fissura palatina isolada, quando comparadas àquelas com fissura labial e palatina em conjunto.31 No presente estudo, ao comparar a presença de sintomas depressivos entre os pacientes do grupo caso (FL/PNS) e o grupo controle, houve semelhanças com aqueles resultados, porém ausência de correlação estatística positiva. Outros estudos também apontam para uma associação entre a ocorrência dessa malformação e o ajuste psicossocial, sugerindo maior atenção aos pacientes com FL/PNS, incluindo seu desenvolvimento global e integração no ambiente social.29 , 32 - 35
Embora o presente estudo tenha sido realizado em um centro de referência para reabilitação de anomalias craniofaciais, o mesmo apresenta algumas limitações, como o a área geográfica reduzida, ou seja, restrita a uma parcela de um único estado brasileiro. Para todas as análises, o alfa foi de 0,05. O tamanho da amostra foi suficiente para a detecção de uma diferença de dois pontos entre os grupos no IDI, considerando-se um coeficiente de variação de 0,5 e uma potência estatística de 0,8.
Embora os resultados não confirmem os achados da literatura, este estudo sugere que o apoio psicológico e psiquiátrico seja necessário para pacientes com FL/PNS durante todo o seu crescimento e desenvolvimento, e durante todo o período de reabilitação, buscando, assim, entender suas necessidades e de suas famílias no processo de sentir e vivenciar a malformação craniofacial.7 , 8 , 18 , 35 Destaca-se ainda que na população estudada, de uma área geográfica limitada, com a metodologia e o instrumento utilizado, não se justifica o rastreamento de sintomas depressivos neste grupo de indivíduos com FL/PNS.
Este estudo observou uma prevalência de sintomas depressivos em crianças e adolescentes com FL/PNS, de uma população geográfica localizada, embora os resultados não tenham sido estatisticamente significantes quando comparados com o grupo controle. Não houve associação dos sintomas depressivos com as variáveis sociodemográficas (gênero, idade e escolaridade). O IDI é um instrumento utilizado em diversas condições clínicas e genéticas crônicas, que visa identificar pacientes com potencial ou risco de desenvolvimento de sintomas depressivos; porém, na população específica do presente estudo não foi observada a necessidade de se adotar o mesmo como rastreador para tais alterações craniofaciais.