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Prevalência de sintomas otoneurológicos em indivíduos com hipotireoidismo congênito: estudo piloto

Prevalência de sintomas otoneurológicos em indivíduos com hipotireoidismo congênito: estudo piloto

Autores:

Caio Leônidas de Andrade,
Gabriela Carvalho Machado,
Luciene da Cruz Fernandes,
Hélida Braga,
Ney Boa-Sorte,
Helton Estrela Ramos,
Crésio Alves

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X

Cad. saúde colet. vol.25 no.2 Rio de Janeiro abr./jun. 2017

http://dx.doi.org/10.1590/1414-462x201700020106

Abstract

Purpose

To investigate the frequency of otoneurological symptoms in children with congenital hypothyroidism and correlate them to the clinical aspects.

Methods

Exploratory study of sectional descriptive character. The sample was composed by parents and/or caregivers of 105 children diagnosed with congenital hypothyroidism and age of 5 years or more. Data collection used a structured questionnaire developed and tested by researchers. Clinical and laboratory data were obtained from medical records.

Results

Most subjects (72.4%) showed symptoms related to vestibulocochlear disorder, in which dizziness/vertigo corresponded to 56.2% of symptoms, followed by hearing loss (43.8%) and tinnitus (12.4%). We observed statistical correlation between hearing loss (p = 0.016) and age of neonatal screening test, as well as symptoms of dizziness/vertigo with congenital hypothyroidism (p = 0.003). For hearing loss (PR = 0.49; CI = 0.31 to 0.77), the exposure factor showed a correlation with the probability of 95%.

Conclusion

These findings suggest a significant prevalence and association between congenital hypothyroidism and otoneurological symptoms, especially dizziness, hearing loss and tinnitus.

Keywords:  congenital hypothyroidism; dizziness; hearing loss; tinnitus; hearing disorders

INTRODUÇÃO

O hipotireoidismo congênito (HC) consiste na ausência ou redução da produção dos hormônios tireoidianos (HTs)1. Trata-se de um dos distúrbios endocrinológicos mais importantes no período neonatal, com incidência, na sua forma primária, de 1:3.000/4.000 nascidos vivos no mundo, sendo a maior causa de retardo mental evitável atualmente2.

As manifestações clínicas resultantes do HC são reflexos das desordens metabólicas e originam distúrbios que acometem vários órgãos e aparelhos do organismo, incluindo a morfogênese e o desenvolvimento funcional do sistema auditivo3, constituindo fator de risco elevado para a deficiência auditiva4,5 e disfunções vestibulares6,7, especialmente as labirintopatias, embora as alterações na função vestibular no HC, em comparação ao sistema auditivo, ainda permanecem inexploradas6.

Em crianças, a constatação das manifestações vestibulococleares é dificultada por inúmeros fatores, tais como o difícil diagnóstico nessa faixa etária, especialmente nas vestibulopatias, tanto pela subjetividade das queixas quanto pela dificuldade da criança em descrever e relatar seus sintomas8. Quando presentes, podem se apresentar de forma sutil, com sintomas muitas vezes despercebidos pelos pais e/ou cuidadores9, ocasionando o sub-registro dessas queixas.

Estudos de prevalência das disfunções vestibulococleares nos indivíduos com HC ainda são escassos, porém os poucos relatos existentes na literatura, usualmente, descrevem frequentes dificuldades discretas na audição e no sistema vestibular, independente do início precoce do tratamento10, podendo ocorrer de forma isolada ou associada a outros sintomas vestibulococleares, bem como estar relacionada aos casos mais graves da doença10,11.

Tal situação torna-se preocupante, tendo em vista os prejuízos psicossociais que crianças com esses sintomas otoneurológicos podem desenvolver, comprometendo as habilidades de comunicação, o estado psicológico e o desempenho escolar12.

Apesar da relevância epidemiológica e dos prováveis problemas otoneurológicos, o HC não tem as devidas atenções nas práticas de promoção e intervenção à saúde no âmbito do Programa Nacional de Atenção à Saúde Auditiva, realidade que pode vir a ocasionar impactos negativos na vida desses indivíduos caso não detectado em idades precoces, sendo, portanto, fundamental a inclusão da avaliação e o monitoramento auditivo nesse público.

Diante do exposto, o objetivo deste estudo foi investigar a prevalência dos sintomas otoneurológicos nos indivíduos com HC oriundos da triagem neonatal e relacioná-los com os aspectos clínicos, a fim de demonstrar a relevância da avaliação auditiva precoce, como exame complementar nesse público.

MATERIAIS E MÉTODOS

Trata-se de um estudo exploratório de caráter descritivo, seccional, com amostra obtida por conveniência, realizado entre fevereiro e setembro de 2014. A casuística foi composta por 105 crianças, de ambos os sexos, que tinham diagnóstico de HC e idade igual ou superior a 5 anos, que compareceram regularmente, em datas pré-agendadas, para o atendimento médico em um Serviço de Referência em Triagem Neonatal no Estado da Bahia. Nessa análise, os pais ou responsáveis foram consultados como fonte das informações a fim de ratificar a presença dos sintomas relatados pelas crianças.

Adotaram-se os seguintes critérios de exclusão para a pesquisa: ser portador de síndromes, doenças neurológicas ou psiquiátricas; apresentar alteração na inspeção do meato acústico externo; ter histórico de doenças de orelha média e/ou externa, fatores de risco para deficiência; relatar doenças infecciosas atuais ou pregressas envolvendo o sistema nervoso central; apresentar outras doenças metabólicas, bem como qualquer outra forma de hipotireoidismo que não seja de caráter congênito e permanente. Por causa do foco de intervenção em interações mãe-criança ou cuidador/responsável-criança no tratamento de reposição hormonal, outras pessoas que não faziam parte do convívio da criança não foram incluídas na pesquisa.

Como instrumentos de pesquisa, foram utilizados três protocolos: o primeiro teve como critério incluir o indivíduo na amostra deste estudo, consistindo, basicamente, em uma investigação prévia e sucinta sobre a presença de fatores de risco para deficiência auditiva, histórico de outras doenças e antecedentes familiares. Para coletar os dados referentes às queixas otoneurológicas, foi utilizado um questionário estruturado composto por perguntas fechadas com questões específicas sobre a presença ou ausência de zumbido, hipoacusia e tontura/vertigem nas crianças com HC. Para a aplicação dos protocolos, os pais ou cuidadores foram submetidos ao processo formal de entrevista.

Precedendo o início da coleta de dados, realizou-se um estudo prévio com um grupo amostral formado por dez sujeitos, com o objetivo de verificar a aplicabilidade do instrumento elaborado para o estudo, refletido no grau de dificuldade do sujeito ao responder às alternativas. Por meio desse método investigativo, pôde-se verificar presença de fatores incoerentes que pudessem vir a distorcer os resultados almejados deste estudo, sendo, dessa forma, excluídos da pesquisa os primeiros protocolos aplicados. Após a revisão das incoerências, um segundo estudo prévio foi aplicado, evidenciando ausência de erros nos questionários. A amostra do segundo estudo prévio passou a compor a amostra desta pesquisa.

Os dados clínicos e laboratoriais dos pacientes foram extraídos do prontuário médico, com o registro da dosagem do hormônio tireoestimulante (TSH) e tiroxina (T4) total, por meio do soro plasmático pelo método de eletroquimioluminescência, bem como a idade cronológica, idade do rastreio neonatal e de início do tratamento do HC, sendo os valores de referências destas duas últimas conforme preconizados pelo Ministério da Saúde, na Portaria (GM/MS) nº 822/0113.

A gravidade do HC baseou-se pelos níveis séricos do T4 total (≥ ou <2,50μg/dL) no momento do exame diagnóstico. Os indivíduos que cursaram com três ou mais episódios de níveis séricos do TSH<0,5µUI/mL ou >15µUI/mL3 foram considerados com níveis séricos hormonais irregulares e classificados como pacientes hipertratados e hipotratados, respectivamente, a fim de estabelecer associação entre o controle hormonal e as queixas otoneurológicas.

A análise estatística usou o software computacional SPSS (versão 17.0). As variáveis contínuas foram descritas por valores médios, desvios-padrão e frequências absolutas e relativas. A análise bivariada entre variáveis categóricas foi realizada a partir do teste qui-quadrado. Para amostras independentes, foi utilizado o teste t-student para comparação de médias entre dois grupos, adotando nível de significância de 5% (p≤0,05).

Foram respeitadas as normas do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia, por meio da aprovação da presente pesquisa pelo Parecer nº 534.704/2013. Todos os sujeitos da pesquisa assinaram o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (quando cabível), e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi assinado por seus responsáveis.

RESULTADOS

Foram convidados a participar do estudo 126 indivíduos afetados pelo HC. Destes, 10 foram excluídos por meio do estudo prévio, e outros 11, por não atenderem aos critérios de inclusão da pesquisa, sendo a casuística composta por 105 responsáveis e suas respectivas crianças.

A média de idade e do tempo da doença entre os indivíduos com HC foi de 7,9 (DP=3,1) anos, com mínima de 5 e máxima de 10 anos, sendo a amostra predominantemente feminina (54,3%). Entre os diagnósticos etiológicos de hipotireoidismo, as disormonogêneses foram a forma fenotípica mais prevalente (73,5%).

No que tange à presença de sintomas otoneurológicos, verificou-se que mais da metade da amostra (72,4%) referiu presença de sintomas vestibulococleares, sejam isolados (40%) ou associados (32,4%), conforme especifica a Tabela 1.

Tabela 1 Distribuição da frequência absoluta e relativa dos sintomas otoneurológicos isolados e associados, entre os diferentes gêneros, nos indivíduos afetados pelo hipotireoidismo congênito 

Sintomas otoneurológicos Distribuição por gênero Total
Masculino Feminino
n % n %
Queixas isoladas
Hipoacusia 06 42,9 08 57,1 14
Zumbido 00 00 01 100 01
Tontura 14 51,9 13 48,1 27
Queixas associadas
Hipoacusia e zumbido 01 50,0 01 50,0 02
Hipoacusia e tontura 10 45,5 12 54,5 22
Tontura e zumbido 01 50,0 01 50,0 02
Hipoacusia, tontura e zumbido 01 12,5 07 87,5 08
Total 33 43,4 43 56,6 76

Relacionaram-se as características da percepção do zumbido pelos portadores do HC, segundo referências dos pais e/ou cuidadores no momento da entrevista. Essas características estavam presentes em 12,4% (13/105) da amostra, independentemente da presença ou não de outros sintomas associados (Tabela 2).

Tabela 2 Distribuição da frequência absoluta e relativa das principais características dos sintomas de zumbido nos indivíduos afetados pelo hipotireoidismo congênito (n=13) 

Características dos sintomas do zumbido nº de pacientes Frequência (%)
Região de percepção
Ouvido 7 53,8
Cabeça 2 15,4
Não sabe informar 4 30,8
Lateralidade
Bilateral 8 61,5
Unilateral 5 38,5
Intensidade
Leve 38,5
Moderada 5 23,1
Estabilizada 3 23,1
Progressiva e aumentando 3 15,4
Ocorrência 2
Esporádica 10 76,9
Pouco frequente 1 7,7
Muito frequente 2 15,4
Tipo
Contínuo 8 61,5
Pulsátil 2 15,4
Súbito 2 15,4
Variável 1 7,7
Sensação
Chiado 2 15,4
Estalos 2 15,4
Agudo 6 46,2
Grave 3 23,0

Pôde-se observar as características dos sintomas de tontura/vertigem que estavam presentes em 56,2% (59/105) dos indivíduos com HC, segundo relato dos pais/cuidadores, mesmo sendo queixas isoladas (Tabela 3).

Tabela 3 Distribuição da frequência absoluta e relativa das principais características das queixas de tontura/vertigem nos indivíduos afetados pelo hipotireoidismo congênito (n=59) 

Características dos sintomas da tontura/vertigem nº de pacientes Frequência (%)
Início (surgimento)
Súbito 19 32,2
Constante 8 13,6
Não sabe informar 32 54,2
Intensidade 30,5
Leve 18 11,9
Moderada 7 1,7
Estabilizada 1 6,8
Progressiva e aumentando 4 3,4
Intensa variável 2 45,7
Não sabe informar 27
Ocorrência
Pouco frequente 31 52,5
Razoavelmente frequente 6 10,2
Não sabe informar 22 37,3
Desvio de marcha
Presente 6 10,2
Ausente 53 89,8
Sensação*
Instabilidade 5 8,5
Oscilopsia 2 3,4
Ascensão 2 3,4
Sensação de desmaio iminente 7 11,9
Perda da consciência 2 3,4
Sensação de pressão na cabeça 8 13,6
Queda 6 10,2
Palidez 13 22,0
Regurgitação 6 10,2
Náuseas 23 38,9
Sudorese 19 32,2
Desequilíbrio à marcha 4 6,8
Palpitações 3 5,0
Dor cervical 3 5,0
Cefaleia 33 55,9
Diplopia 4 6,8

*Um mesmo paciente pode ter referido uma ou mais formas de sensação para tontura/vertigem

Verificou-se a associação entre as queixas otoneurológicas e os dados clínico-laboratoriais. Houve correlação com significância estatística entre os sintomas de hipoacusia (p=0,016) e a idade para o teste de rastreio neonatal, bem como os sintomas de tontura/vertigem com a etiologia do HC (p=0,003) (Tabela 4).

Tabela 4 Prevalência dos sintomas otoneurológicos referidos segundo fatores relacionados aos achados clínico-laboratoriais nos indivíduos com hipotireoidismo congênito 

Achados clínico-laboratoriais Sintomas otoneurológicos
Hipoacusia Zumbido Tontura/Vertigem
% RP (95% IC) % RP (95% IC) % RP (95% IC)
Gênero
Masculino 36,7 1,0 6,3 1,0 50,0 1,0
Feminino 47,3 1,19 (0,76-1,87) 17,9 2,86 (0,83-9,79) 60,7 1,21 (0,85-1,73)
p (valor) 0,433 0,074 0,273
Idade - teste de rastreio neonatal
≤7 (dias)* 80,0 1,0 20,0 1,0 70,0 1,0
>7 (dias) 38,9 0,49 (0,31-0,77) 13,0 0,65 (0,16-2,68) 46,3 0,66 (0,40-1,09)
p (valor) 0,016** 0,557 0,168
Idade - início do tratamento do HC
≤28 (dias)* 33,3 1,0 0,0 1,0 33,3 1,0
>28 (dias) 43,8 1,31 (0,56-3,06) 14,1 - 51,6 1,55 (0,67-3,56)
p (valor) 0,502 0,166 0,246
Tempo de doença/tratamento
≤7 anos 46,7 1,0 11,7 1,0 60,0 1,0
>7 anos 40,0 0,86 (0,55-1,34) 13,0 1,12 (0,40-3,10) 47,8 0,80 (0,55-1,15)
p (valor) 0,496 0,830 0,212
Gravidade da doença (T4 total neo)
>2,5μg/dL 27,8 1,0 5,6 1,0 50,0 1,0
<2,5μg/dL 48,9 1,76 (0,79-3,92) 14,9 2,68 (0,35-20,28) 48,9 0,98 (0,57-1,69)
p (valor) 0,123 0,305 0,939
Condição do tratamento
Normotratado (0,5-15µUI/ml) 50,0 1,0 8,3 1,0 50,0 1,0
Hipertratado (>0,5µUI/ml) 22,2 0,44 (0,18-1,12) 5,6 0,67 (0,07-5,96) 44,4 0,89 (0,48-1,64)
Hipotratado (>15µUI/ml) 44,4 0,89 (0,54-1,45) 19,4 2,27 (0,64-8,10) 55,6 1,08 (0,70-1,68)
p (valor) 0,141 0,244 0,797
Etiologia do HC
Disormonogênese 44,9 1,0 12,1 1,0 58,6 1,0
Disgenesia 28,6 0,64 (0,19-2,10) 14,3 1,18 (0,18-7,81) 0,0 -
p (valor) 0,400 0,866 0,003**

*Idades-limite preconizadas pelo Ministério da Saúde13 como adequadas para realização do rastreio neonatal e/ou início do tratamento do hipotireoidismo congênito;

**P<0,05.

RP = Razão de prevalência; IC = intervalo de confiança

Nota-se que a prevalência de zumbido é 1,12 vez maior em indivíduos com mais de sete anos de tratamento do que em pessoas com menos de sete anos. No entanto, a prevalência de hipoacusia (RP=0,86) e de tontura/vertigem (RP=0,80) é maior em indivíduos com menos de sete anos de tratamento do que aqueles com mais de sete anos de tratamento. Embora a idade de rastreio neonatal maior que sete dias não tenha sido relacionada como fator de risco para sintomas otoneurológicos, na percepção da hipoacusia (RP=0,49, IC=0,31-0,77), a exposição ao fator demonstrou associação com a probabilidade de 95% (Tabela 4).

DISCUSSÃO

O presente estudo destaca os possíveis sintomas otoneurológicos mais prevalentes nos indivíduos afetados pelo HC. Mais da metade da amostra demonstrou ao menos um sintoma relacionado à disfunção vestibulococlear. Adicionalmente, a prevalência de zumbido tem se mostrado, praticamente, duas vezes superior na maioria das variáveis relacionadas.

Os sintomas auditivos no hipotireoidismo adquirido podem ocorrer de forma isolada ou associada à vertigem e ao zumbido14e são relativamente frequentes, podendo apresentar curso crônico e indicar caráter permanente da doença15 o que pode ser sugestivo de comprometimento no conjunto dos sistemas coclear e vestibular16, tal como a gravidade moderada ou severa do hipotireoidismo10.

Embora os achados citados para a forma adquirida da doença sejam importantes para o entendimento da ação dos HTs no sistema auditivo e vestibular dos seres humanos, eles não podem ser correlacionados diretamente com HC devido ao fato de os efeitos deletérios da deficiência desses hormônios em idades precoces serem potencialmente severos e irreversíveis, sugerindo que os danos sejam significativamente mais importantes nesse público, dado o essencial papel dos HTs na morfogênese desses sistemas.

Os efeitos das disfunções da glândula tireoidiana no ouvido interno são pouco explorados, porém sabe-se que tanto a porção anterior quanto a porção posterior do ouvido interno, bem como as vias centrais, podem estar afetadas nesses distúrbios3,10,11.

Neste estudo, constatou-se que mais da metade das crianças com HC apresentou sintomas otoneurológicos relacionados à tontura/vertigem. Entretanto, a prevalência desses sintomas nessa população ainda é incerta, variando de 0 a 66%17 Em crianças na idade escolar, a prevalência dos distúrbios do equilíbrio oscilou em 15% dos casos18 dados que demonstram a carência de estudos da função vestibular na população pediátrica.

A alta prevalência dos sintomas de tontura/vertigem na presente amostra, quando comparada com a população infantil em geral, sugere que o funcionamento do sistema vestibular depende dos níveis adequados dos HTs. Dessa forma, essas crianças afetadas pelo HC estão mais propícias às disfunções vestibulares, o que constitui um potencial fator de risco.

Essa hipótese pode ser ratificada nos estudos com HC, nos quais as análises demonstram potencial em alterar a morfogênese dos receptores vestibulares19 e afetar a atividade dos canais semicirculares, induzindo a função vestibular anormal7.

Houve relatos de sintomas neurovegetativos durante as crises de tontura/vertigem na maioria das crianças da presente amostra, com maior frequência de quadros de cefaleia, náusea, sudorese e palidez, achados condizentes com o quadro de vertigem de origem periférica20

As síndromes vestibulares centrais geralmente não exibem sintomas e sinais neurovegetativos21. Os indivíduos apresentam sinais de tendência à queda, associada à fraqueza generalizada nos membros, além de marcha atáxica22.

Em toda a amostra não foram encontrados sintomas compatíveis com a síndrome vestibular central. Entretanto, é sabido que o HC tem potencial para alterar a morfologia das vias vestibulares centrais, especialmente a via vestíbulo-cerebelar23, sendo a área do vermis cerebelar a mais comumente afetada por essa disfunção metabólica24. Assim, avaliações do equilíbrio estático e dinâmico, bem como exames objetivos da função vestibular por meio da vectoeletronistagmografia e potencial evocado miogênico vestibular (Vemp), podem ser interessantes no acompanhamento de rotina clínica, tal como proporcionar maior compreensão desse sistema nessa população, auxiliando no topodiagnóstico das disfunções, caso presentes.

O rebaixamento do limiar de audibilidade também tem sido associado à redução e/ou ausência dos HTs na maioria dos relatos científicos, porém ainda não há consenso. Na amostra estudada, a hipoacusia representou a segunda maior queixa otoneurológica isolada ou em conjunto com outros sintomas. No entanto, a exata prevalência da perda auditiva nos portadores de HC permanece em discussão. Estima-se que o risco de desenvolver perda auditiva nessa população seja de duas a quatro vezes maior que na população geral de crianças para a mesma faixa etária25, podendo afetar cerca de 20% dos portadores de HC4.

É importante destacar que a frequência de hipoacusia encontrada no presente estudo não reflete necessariamente a presença de perda auditiva, com redução nos limiares tonais. A hipoacusia relatada pelos pais pode estar relacionada a outras dificuldades de compreensão e percepção das mensagens acústicas pelas crianças, como nos quadros de transtornos do processamento auditivo ou danos auditivos subclínicos, que, por sua similaridade sintomatológica, podem ter sido generalizados como um sinal de hipoacusia pelos pais. Essas evidências podem também explicar a expressiva frequência de queixas relacionadas ao rebaixamento da acuidade auditiva neste estudo.

Disfunções metabólicas, como o hipotireoidismo, desempenham um importante papel na etiologia do zumbido10,11, um dos sintomas de grande prevalência na população geral, com 15%. Constitui-se uma morbidade importante que afeta diretamente a saúde e a vida social do indivíduo15,26, porém desconhecido no público pediátrico em idade escolar.

A prevalência de queixas de zumbido na amostra estudada foi similar ao da população geral, bem como em estudos com hipotireoidismo16,17, diferindo apenas de um estudo isolado10. Os presentes achados evidenciaram a maior incidência de percepção do zumbido de forma bilateral, de ocorrência esporádica, duração contínua, com intensidade leve e pitch agudo. Essas características divergem parcialmente com a literatura pesquisada17. Porém, é válido ressaltar que, pelo fato de os sujeitos da pesquisa já estarem em terapia de reposição hormonal, os sintomas mais pronunciados do zumbido podem não estar presentes.

O zumbido no hipotireoidismo deve ser observado como um “sinal de alerta” para outra patologia de base27, como edema na tuba auditiva17, aumento da pressão no ouvido interno10 e danos no sistema eferente. Porém, essa frequência pode estar subestimada, dada a dificuldade de o público pediátrico definir corretamente a sua percepção de zumbido aos pais.

Ainda de acordo com os presentes achados, verifica-se associação entre algumas queixas otoneurológicas com idade para o teste de rastreio neonatal e a etiologia do HC, evidenciando que a qualidade e a adesão ao tratamento do hipotireoidismo, da mesma forma que a gravidade da doença, são preditivos para o surgimento dos sintomas vestibulococleares.

O atraso na detecção precoce do HC mostra-se preocupante, visto que, nos casos graves da doença, quando não diagnosticados e tratados a tempo, poderão ocorrer danos no sistema nervoso central28, acometendo o sistema auditivo29.

No caso do déficit auditivo, por ser uma anormalidade muitas vezes invisível, as consequências para as competências educativas e sociais são significativas, se não for detectado30. Portanto, há uma relação entre os problemas auditivos e, especialmente, o diagnóstico precoce e idade do início do tratamento do HC5.

Da mesma forma, a etiologia do HC também merece atenção. A disormonogênese tem sido associada ao maior risco e gravidade para problemas auditivos31. Por sua evidente prevalência, atualmente é de fundamental importância o acompanhamento e o monitoramento da função auditiva e vestibular desses indivíduos, objetivando prevenir possíveis riscos futuros.

É válido ressaltar que a metodologia da presente pesquisa difere da literatura consultada, uma vez que os estudos foram conduzidos por técnicas investigativas de cunho objetivo por alguns autores, realidade ausente neste trabalho, uma vez que não contempla análises objetivas do sistema auditivo e vestibular, mas sim as prevalências dos sintomas que podem demonstrar necessidade de avaliação e monitoramento dessa população. Dessa forma, entende-se que a diferença metodológica pode ter influenciado nos diferentes achados, configurando uma das principais limitações deste estudo.

As investigações dos sintomas otoneurológicos associadas ao HC podem direcionar intervenções de saúde, especialmente no âmbito da atenção primária, o qual pode ser incluído em programas já consolidados na atenção básica a fim de prevenir ou minimizar os efeitos deletérios advindos de um possível prejuízo no sistema auditivo e/ou vestibular em idades precoces.

Este trabalho mostra que há forte relação com a presença de queixas otoneurológicos em crianças com HC, especialmente naquelas com histórico de níveis séricos dos HTs inadequados, que podem cursar com sintomas vestibulococleares sutis, os quais são, muitas vezes, despercebidos e/ou de associação desconhecida pelos pais/cuidadores e, até mesmo, pelos profissionais que os acompanham.

Diante disso, o presente estudo destaca a necessidade de práticas de vigilância preventiva para a saúde auditiva dos indivíduos afetados pelo HC, bem como o desenvolvimento de novas pesquisas, com delineamentos e metodologias diversificadas, incluindo, na rotina clínica, avaliações otoneurológicas e exames laboratoriais complementares, no intuito de melhor determinar o fenótipo das afecções no sistema auditivo e vestibular.

CONCLUSÃO

Os achados deste estudo demonstraram prevalências significativas de queixas otoneurológicas em indivíduos com HC, bem como reforçam a hipótese de que os HTs exercem papel fundamental para a homeostase dos sistemas auditivos e vestibulares, o que sugere uma importância peculiar do HC no surgimento de sintomas otoneurológicos, especialmente na tontura/vertigem e zumbido.

Ainda segundo os dados da presente pesquisa, verifica-se que os sintomas otoneurológicos têm associação com alguns fatores intrínsecos ao tratamento, como adesão, seguimento hormonal, etiologia e gravidade da doença.

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