versão impressa ISSN 0066-782X
Arq. Bras. Cardiol. vol.103 no.2 São Paulo ago. 2014
https://doi.org/10.5935/abc.20140116
Estudos indicam que o Doppler ecocardiograma possibilita a identificação de um maior número de casos de valvopatia reumática, quando comparado ao exame clínico, em indivíduos aparentemente saudáveis.
Determinar a prevalência de valvopatia sugestiva de envolvimento reumático segundo as avaliações clínicas e Doppler ecardiográficas em alunos de escola pública de Belo Horizonte.
Estudo transversal realizado com 267 escolares entre 6 e 16 anos, selecionados de forma aleatória. Os alunos foram submetidos à anamnese e exame físico com o objetivo de estabelecer critérios prévios para o diagnóstico de febre reumática. Todos realizaram o estudo Doppler ecocardiográfico com o emprego de um aparelho portátil. Aqueles que apresentaram regurgitação valvar mitral (RM) e ou aórtica (RAo) sugestiva de não fisiológica foram encaminhados ao laboratório de Doppler ecocardiografia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG) para a realização de novo estudo. Conforme os achados, os casos de valvopatia reumática foram classificados em definitiva, provável e possível.
Dos 267 escolares, um (0,37%) apresentou história compatível com o diagnóstico de febre reumática aguda (FRA), 25 (9,4%) apresentaram RM e/ou RAo consideradas não fisiológicas ao Doppler ecocardiograma portátil. Destes, 16 (6%) realizaram Doppler ecocardiograma no HC-UFMG, sendo evidenciadas: valvopatia reumática definitiva em um escolar; valvopatia reumática provável em três; valvopatia reumática possível em um escolar.
Na população estudada a prevalência de casos compatíveis com envolvimento reumático foi cinco vezes maior ao Doppler ecocardiograma (18,7/1000 - IC 95%, 6,9/1000 - 41,0/1000) em relação à avaliação clínica (3,7/1000 - IC 95%).
Palavras-Chave: Febre Reumática / epidemiologia; Prevalência; Cardiomiopatia Reumática; Valvas Cardíacas; Ecocardiograma Doppler
Previous studies indicate that compared with physical examination, Doppler echocardiography identifies a larger number of cases of rheumatic heart disease in apparently healthy individuals.
To determine the prevalence of rheumatic heart disease among students in a public school of Belo Horizonte by clinical evaluation and Doppler echocardiography.
This was a cross-sectional study conducted with 267 randomly selected school students aged between 6 and 16 years. students underwent anamnesis and physical examination with the purpose of establishing criteria for the diagnosis of rheumatic fever. They were all subjected to Doppler echocardiography using a portable machine. Those who exhibited nonphysiological mitral regurgitation (MR) and/or aortic regurgitation (AR) were referred to the Doppler echocardiography laboratory of the Hospital das Clínicas of the Universidade Federal of Minas Gerais (HC-UFMG) to undergo a second Doppler echocardiography examination. According to the findings, the cases of rheumatic heart disease were classified as definitive, probable, or possible.
Of the 267 students, 1 (0.37%) had a clinical history compatible with the diagnosis of acute rheumatic fever (ARF) and portable Doppler echocardiography indicated nonphysiological MR and/or AR in 25 (9.4%). Of these, 16 (6%) underwent Doppler echocardiography at HC-UFMG. The results showed definitive rheumatic heart disease in 1 student, probable rheumatic heart disease in 3 students, and possible rheumatic heart disease in 1 student.
In the population under study, the prevalence of cases compatible with rheumatic involvement was 5 times higher on Doppler echocardiography (18.7/1000; 95% CI 6.9/1000-41.0/1000) than on clinical evaluation (3.7/1000-95% CI).
Key words: Rheumatic Fever / epidemiology; Prevalence; Rheumatic Heart Disease; Heart Valves; Echocardiography, Doppler
O quadro clínico da febre reumática aguda (FRA) é extremamente variável, podendo ocorrer desde casos leves e com pouca expressão clínica até casos graves e de evolução fulminante. A cardite reumática é a manifestação mais importante e grave da doença, pois pode ocasionar dano valvar irreversível, muitas vezes incapacitante, evoluindo para a cardiopatia reumática crônica (CRC)1. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a CRC acomete 15.6-19.6 milhões de pessoas em todo o mundo, ocasionando 233.000 a 492.000 mortes por ano1 , 2.
A FRA pode ser prevenida através da detecção precoce e do tratamento adequado da faringoamigdalite estreptocócica3. Da mesma maneira, a progressão da lesão valvar reumática pode ser minimizada através da profilaxia secundária realizada, prioritariamente, com a administração regular da penicilina G benzatina4 , 5.
A utilização do Doppler ecocardiograma com mapeamento de fluxo em cores tem sido considerada adequada para avaliar lesões valvares sugestivas de etiologia reumática1 , 6 - 8. Da mesma maneira, estudos de triagem com a utilização de aparelho portátil realizados em escolares de vários países têm também demonstrado maior frequência de valvopatia subclínica sugestiva de envolvimento reumático9 - 12.
O objetivo do presente estudo foi avaliar a prevalência de valvopatia compatível com envolvimento reumático segundo as avaliações clínicas e ao Doppler ecocardiograma, em alunos de uma escola pública de Belo Horizonte, MG.
Trata-se de um estudo transversal realizado em uma escola municipal, na cidade de Belo Horizonte, MG, no período de maio de 2010 a novembro de 2011, após autorização do Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG e da Secretaria Municipal de Educação.
A população estudada foi constituída por 267 crianças e adolescentes entre 6 e 16 anos. Os alunos foram selecionados de forma aleatória e todos os participantes e seus responsáveis receberam o termo de consentimento livre e esclarecido para ciência e consentimento dos mesmos. Os pais foram contactados através de carta com informações sobre a pesquisa e um questionário para preenchimento abordando sinais e sintomas sugestivos de febre reumática, como os relacionados à cardite, coréia, poliartrite, artralgia e febre. Na escola, não foi possível a presença dos pais. Os escolares foram entrevistados, submetidos à anamnese e exame físico, realizados por um dos pesquisadores, com a intenção de estabelecer a existência de critérios prévios para o diagnóstico de FRA com ou sem alteração na ausculta clínica, segundo os critérios de Jones6.
A seguir, no mesmo dia, os escolares foram submetidos ao Doppler ecocardiograma com a utilização de um aparelho portátil da marca Acuson® (CV-Cypress) com sonda 3U2c, realizado no próprio ambiente escolar por outro pesquisador que desconhecia os achados da anamnese e exame clínico realizados anteriormente. Este exame tinha como objetivo a realização de uma triagem diagnóstica avaliando a presença e o grau de regurgitação das valvas aórtica e mitral, em pelo menos dois planos diferentes. Alterações sugestivas de valvopatia reumática foram analisadas segundo os critérios definidos pela OMS /2004, no intuito de identificar lesão, mesmo que leve, e diferenciá-la de achados fisiológicos6 , 13. Após essa avaliação, os escolares que apresentaram alterações sugestivas de envolvimento valvar reumático foram encaminhados ao laboratório de ecocardiografia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG) para uma segunda avaliação mais criteriosa realizada em local mais apropriado. Foi utilizada uma aparelhagem da marca comercial Philips IE 3 usados os hardware e software disponíveis comercialmente e transdutores de alta resolução de frequência multieletrônicos (de 3,0-8,0 MHz). Esse exame foi feito pelo mesmo pesquisador que havia realizado o de triagem. Os exames foram gravados em DVD e vistos posteriormente por mais dois examinadores experientes, que desconheciam a história clinica e as alterações ao Doppler ecocardiograma previamente observadas. Cada examinador emitiu seu parecer quanto aos achados observados e classificou as alterações em fisiológicas ou patológicas.
Considerou-se como lesão valvar sugestiva de envolvimento reumático, a presença de regurgitação das valvas mitral e/ou aórtica, observadas em pelo menos dois planos diferentes, associado às seguintes alterações14:
Comprimento do jato regurgitante > 2,0 cm para a RM e > 1,0 cm para a RAo
Jato regurgitante ocupando toda a sístole ou toda a diástole
Velocidade do jato regurgitante >3 m/s
Podendo ou não estar associados às alterações morfológicas:
Espessamento dos folhetos valvar mitral > 4 mm
Espessamento do aparelho subvalvar mitral
Restrição da abertura valvar mitral e/ou aórtica.
Quando os achados ao Doppler ecocardiograma da disfunção valvar mitral e/ou aórtica não preenchiam os critérios acima, as regurgitações dessas valvas foram definidas como fisiológicas.
O diagnóstico de envolvimento reumático valvar subclínico foi realizado quando não havia alterações na ausculta cardíaca sugestivas de regurgitação valvar, entretanto ao Doppler ecocardiograma observava-se regurgitação valvar mitral e/ou aórtica de características não fisiológicas, com ou sem espessamento e restrição da mobilidade valvar. O exame realizado com o objetivo de definir estas características foi feito por um dos pesquisadores e avaliado por outros dois examinadores experientes. Foram considerados apenas os casos nos quais houve concordância entre os achados dos três examinadores.
Após avaliação das características do envolvimento valvar, os escolares foram distribuídos em três grupos de acordo com a classificação apresentada na Tabela 1 14.
Tabela 1 Classificação dos achados clínicos e ao Doppler ecocardiograma segundo critérios utilizados para identificar casos de valvopatia reumática definitiva, provável e possível14
Valvopatia Reumática Definitiva | Valvopatia Reumática Provável | Valvopatia Reumática Possível |
---|---|---|
História anterior de febre reumática aguda com manifestação clínica de cardite | Ausência de história anterior compatível com de febre reumática aguda | Ausência de história anterior compatível com febre reumática aguda |
Sopros de RM e RAo | Exame cardiovascular normal | Exame cardiovascular normal |
Alteração Doppler ecocardiográfica | Alteração Doppler ecocardiográfica: | Alteração Doppler ecocardiográfica: |
Regurgitação não fisiológica das valvas mitral e/ou aórtica | Regurgitação não fisiológica das valvas mitral e/ou aórtica | Regurgitação não fisiológica das valvas mitral e/ou aórtica sem alteração morfológica, ou |
Espessamento valvar associado ou não à restrição da mobilidade, com ou sem alteração do aparelho subvalvar. | Espessamento valvar associado ou não à restrição da mobilidade, com ou sem alteração do aparelho subvalvar | Alteração morfológica das valvas mitral e/ou aórtica, com regurgitação fisiológica das valvas mitral e/ou aórtica. |
RM: Regurgitação mitral; RAo: Regurgitação aórtica.
A Figura 1, a seguir, mostra a sequência de avaliações realizadas na população escolar selecionada.
As crianças e adolescentes com alterações valvares sugestivas de envolvimento reumático foram encaminhadas ao Ambulatório de Febre Reumática do HC-UFMG para acompanhamento e/ou prescrição de profilaxia secundária.
Os dados foram armazenados em banco de dados próprio, digitados no programa Excel. A validação dos mesmos foi feita através de análise descritiva e os resultados, foram apresentados em forma de gráficos e tabelas, realizadas em frequências absolutas e porcentagem para as variáveis qualitativas e cálculo de media (desvio padrão) e mediana para as variáveis quantitativas. A análise foi realizada no SPSS versão 13.0.
Dos 267 escolares avaliados, 140 (52,4%) eram do gênero feminino. A idade variou entre 6 e 16 anos, com mediana de 13 anos, sendo que a grande maioria apresentava idade entre 13 e 14 anos (55,1%). Oito (3%) dos indivíduos apresentavam história de cardiopatia, mas apenas um informou tratar-se de FR, tendo apresentado na fase aguda uma manifestação maior e duas menores (cardite, artralgia e febre) dos critérios de Jones.
Em relação aos achados no exame físico, 28 (10,5%) apresentaram sopro à ausculta cardíaca. Destes, 26 foram caracterizados como inocente. Um escolar apresentou sopro regurgitativo compatível com o diagnóstico de comunicação interventricular e em outro foram auscultados sopros regurgitativos mitral e aórtico.
O Doppler ecocardiograma, realizado na escola com o aparelho portátil, mostrou que 23(8,6%) escolares apresentavam RM leve e outros dois (0,8%) RM e RAo associados. Nestes últimos, em um a regurgitação de ambas as valvas foi de grau leve, com características definidas como não fisiológicas, e em outro, ambas as valvas mostravam regurgitação de grau moderado. Em nenhum caso foi observado lesões sugestivas de regurgitação aórtica fisiológica e/ou estenose valvar.
Dos 23 alunos com Doppler ecocardiograma mostrando regurgitação valvar, 16 compareceram ao Hospital das Clínicas para realização de novo exame com o objetivo de confirmar os achados do exame de triagem. Destes, apenas um (6,2%) apresentou RM e RAo em grau moderado, com ambas as valvas espessadas, além de mobilidade reduzida do folheto posterior e abertura em "dome" do folheto anterior da valva mitral. Entre os demais escolares em um (6,2%) aluno observou-se RM e RAo associadas de grau leve, com morfologia valvar normal e em três(18,7%) observou-se RM isolada com espessamento da valva mitral. Em nenhum escolar foi evidenciada estenose valvar.
A Figura 2 mostra o fluxograma empregado para identificação de casos de valvopatia reumática em uma escola pública de Belo Horizonte.
A Tabela 2 apresenta a distribuição de frequência dos diagnósticos de valvopatias mitral e aórtica sugestivas de envolvimento reumático segundo os achados clínicos e ao Doppler ecocardiograma, realizadas no HC-UFMG.
Tabela 2 Distribuição de frequência dos diagnósticos de valvopatia mitral e aórtica sugestivas de envolvimento reumático segundo as avaliações clínicas e ao Doppler ecocardiograma realizadas no Hospital das Clinicas da UFMG (frequência absoluta/267*1000)
Diagnósticos de valvopatia | Clínico | Eco HC | IC (95%) - Eco HC |
---|---|---|---|
Regurgitação Mitral | 1 (3,7) | 5 (18,7) | (6,9/1000) - (41,0/1000) |
Regurgitação Aórtica | 1 (3,7) | 2(7,5) | (1,2/1000) - (24,5/1000) |
A frequência de identificação de alteração valvar sugestiva de envolvimento reumático foi cinco vezes maior considerando a RM e duas vezes maior em relação à RAo, quando se utilizou o Doppler ecocardiograma em relação à avaliação clínica.
O Gráfico 1 demonstra a frequência de diagnósticos de casos com RM e RAo não fisiológicas segundo as avaliações clínicas e ao Doppler ecocardiograma.
Gráfico 1 Frequência de diagnóstico de casos com RM e RAo não fisiológicas segundo as avaliações clínica e ao Doppler ecocardiograma realizadas no HC-UFMG, considerando os 267 escolares avaliados (frequência absoluta/267*1000).
A prevalência de valvopatia clinicamente observada (sopro regurgitativo mitral e aórtico) segundo a avaliação clínica foi de apenas um caso (prevalência de 3,7/1000). Entretanto, a avaliação ao Doppler ecocardiograma evidenciou RAo não fisiológica em dois escolares (prevalência de 7,5/1000 CI 95%, 1,2/1000- 24,5/1000) e RM não fisiológica em cinco escolares (prevalência de 18,7/1000, IC 95%,6,9/1000 - 41,0/1000).
A seguir, são apresentadas imagens do Doppler ecocardiograma dos escolares realizados no HC-UFMG. (Figuras 3, 4 e 5)
Figura 3 Imagem ao Doppler ecocardiograma de paciente com diagnóstico de valvopatia reumática definitiva.
O diagnóstico de cardite na FRA tradicionalmente depende de alterações evidenciadas na ausculta cardíaca como o aparecimento ou a exacerbação de um sopro regurgitativo mitral e/ou aórtico, podendo haver sinais e sintomas de insuficiência cardíaca e/ou achados de pericardite, além de alterações na radiografia de tórax e no eletrocardiograma5 , 6 , 15 - 17. Entretanto, a presença de sopros regurgitativos, mais frequentemente da valva mitral, nem sempre esta presente ou não é detectado com precisão. Estudo realizado por Vijayalakshmi e cols.18 envolvendo 108 pacientes com Doppler ecocardiograma sugestivo de valvite não apresentavam ausculta cardíaca correlacionada, sendo que desses apenas 56 tiveram o diagnóstico de FRA realizado segundo os critérios de Jones17 , 18. Estima-se que mais de 70% dos pacientes com diagnóstico de CRC não recebem profilaxia secundária por não terem apresentado evidência de manifestações clínicas de FRA16. A cardite, especialmente a valvite subclínica, pode não ser diagnosticada por clínicos experientes, não existindo um exame laboratorial definitivo que estabeleça esse diagnóstico16.
Vários estudos defendem a implementação do Doppler ecocardiograma para diagnóstico da CRC em casos suspeitos sem história de fase aguda, nos quais se observa apenas as sequelas valvares7 , 9 , 12 , 14 , 18 - 22. Entretanto, ainda é controversa a utilização exclusiva deste método para diagnóstico de CRC em indivíduos sem história clínica de FRA e sem aparente acometimento cardíaco. Isso porque há risco do uso abusivo do Doppler ecocardiograma para esse fim e sua utilização por examinadores pouco experientes pode acarretar diagnósticos excessivos e exposição desnecessária à profilaxia secundária7 , 18. Muitos autores têm apresentado trabalhos com o Doppler ecocardiograma portátil para realização de exames de triagem, principalmente em escolares, com o intuito de rastrear casos subclínicos de envolvimento valvar reumático sem expressão clínica7 , 9 , 10 , 20 , 23 - 27.
No presente estudo, dos 267 alunos avaliados na escola, em apenas um (0,4%) pôde-se diagnosticar CRC através da anamnese (história de cardite, artralgia e febre) e do exame clínico pela presença de sopros regurgitativos mitral e aórtico. Por outro lado, utilizando o aparelho de Doppler ecocardiograma portátil, em 23(8,6%) foi evidenciada regurgitação da valva mitral leve e em um (0,4%) regurgitação aórtica de grau leve, com características definidas como não fisiológica. Apenas o escolar que apresentava história anterior de FRA apresentou regurgitação moderada das valvas mitral e aórtica. Ficou então constatado a superioridade do estudo Doppler ecocardiográfico sobre o exame clínico em identificar disfunção valvar, como já demonstrado em diversos estudos de triagem de valvopatia em escolares9 , 10 , 14 , 23 - 27.
Estudos realizados na década passada utilizavam o Doppler ecocardiograma para validação do diagnóstico clínico da CRC, demonstrando uma prevalência de 0.6-0.8/100025 , 26, similar à prevalência do diagnóstico clínico relatada no estudo de Saxena e cols.8. Atualmente, estudos têm demonstrado que a prevalência de valvopatia sugestiva de envolvimento reumático identificada através do Doppler ecocardiograma apresenta frequência em torno de 5 a 10 vezes maior em relação à avaliação clinica9 , 12 , 14.
Fato semelhante foi observado no presente estudo: dos 16 escolares encaminhados para realização de Doppler ecocardiograma mais detalhado, realizado no HC-UFMG, apenas um (6,25%), com ausculta evidenciando sopros significativos de RM e RAo, mostrou regurgitação moderada das valvas mitral e aórtica, além de alteração da morfologia valvar. Dos 15 escolares com ausculta cardíaca normal, um (6,25%) apresentou RM e RAo associada de grau leve não fisiológica, e em três (18,75%) foram observados RM isoladas de grau leve não fisiológicas associadas à alterações morfológicas das valvas. Assim, a frequência de alteração valvar sugestiva de envolvimento reumático foi cinco vezes maior quando se utilizou o Doppler ecocardiograma (18,7/1000, IC 95%, 6,9/1000-41,0/1000) em comparação à avaliação clínica (3,7/1000), sendo maior em relação à RM (18,7/1000, IC 95%, 6,9/1000-41,0/1000) do que em relação à RAo (7,5/1000,CI 95%,1,2/1000-24,5/1000). Nos estudos de triagem em escolares já realizados não se fez essa diferenciação em relação à frequência de envolvimento das valvas mitral e aórtica em separado2 , 10 , 18 , 23 - 27.
Marijon e cols.28 adicionaram, em estudos de triagem em escolares, critérios morfológicos da estrutura valvar aos critérios Doppler já existentes para diagnóstico de CRC subclínica em população de alta prevalência de FR. Concluíram que com a associação dos critérios morfológicos aos critérios Doppler, houve uma melhor caracterização das lesões valvares sugestivas de envolvimento reumático, possibilitando um diagnóstico mais criterioso e com menor risco de "perdas" dos casos subclínicos28. No presente estudo dos 22 pacientes com ausculta cardíaca normal e regurgitação valvar mitral e/ou aórtica realizado com o Doppler ecocardiograma portátil, em três (13,6%) foram observadas alterações da morfologia valvar mitral. Em nenhum escolar observou-se alteração da morfologia valvar aórtica, como descrito por Marijon e cols. (2009)28
Marijon e cols.9 sugeriram que com a utilização do Doppler ecocardiograma de triagem uma redefinição da epidemiologia da CRC deverá ser realizada quanto à sua identificação. Eles afirmaram que o reconhecimento precoce da CRC e a instituição da profilaxia com a penicilina podem reduzir o impacto clínico da doença9. Entretanto, sugerem que é necessário um acompanhamento por um longo período dos indivíduos que tiveram diagnóstico sugestivo de envolvimento valvar reumático, considerando previsões de estudos anteriores que indicam evolução favorável para os pacientes com valvite subclínica11 , 29 - 33.
Webb e cols.14 no estudo desenvolvido na Nova Zelândia com 1142 crianças verificaram que o uso do Doppler ecocardiograma de triagem é muito importante como método complementar ao exame clínico, para um diagnóstico mais preciso. As lesões valvares identificadas, excluídas as causas congênitas ou fisiológicas, podem sugerir comprometimento reumático, favorecendo o uso de profilaxia secundária. Os autores concluíram que o Doppler ecocardiograma é um exame mais sensível e específico do que a ausculta cardíaca para detecção de regurgitações da valva mitral não fisiológicas, sem correspondência com a ausculta clínica. Em nosso estudo observamos fato semelhante: constatou-se maior prevalência de valvopatias mitral e aórtica, sugestivas de envolvimento reumático, através da utilização de critérios Doppler ecocardiográficos do que através de critérios exclusivamente clínicos.
Segundo a Organização Mundial de Saúde6 nas regiões onde a FRA é considerada endêmica, o Doppler ecocardiograma deve ser realizado de forma rotineira naqueles casos com suspeita de alterações cardíacas sugestivas de envolvimento reumático, mesmo sem evidência clínica associada. Faz ainda recomendação no sentido de que esses pacientes sejam acompanhados até que outro diagnóstico possa ser realizado6. Tendo em vista as alterações valvares sugestivas de envolvimento reumático, mas ainda sem critérios para que se possa confirmar essa etiologia, os pacientes deverão ser acompanhados. Não há ainda na literatura consultada um consenso a respeito de conduta frente a esses casos de valvopatia subclínica12 , 14 , 17 , 34 , 35.
Por se tratar de um estudo de prevalência, o ideal seria fazer uma coleta de dados em escolas variadas e com maior número de alunos. Entretanto, o tamanho amostral foi calculado considerando a prevalência de FR obtida em estudo clínico realizado também em uma escola de Belo Horizonte36 e à maior detecção de valvopatia com o estudo Doppler ecocardiográfico, segundo resultado de vários estudos de triagem realizados em escolas1 , 9 , 10 , 23 - 27 , 37 - 40. A amostra do presente estudo foi selecionada de forma centralizada em uma única escola.
Outra limitação do estudo foi atribuída ao número de "perdas" de escolares durante o transcorrer do trabalho, que não concluíram o estudo. Dos 23 escolares com exame ecocardiográfico de triagem evidenciando regurgitação não fisiológica das valvas mitral e/ou aórtica, apenas 16 compareceram ao HC-UFMG para confirmação dos achados. Com isso, a prevalência encontrada pode ter sido subestimada.
O presente estudo enfatiza a importância do Doppler ecocardiograma em comparação ao exame clínico para identificar casos de lesões valvares sugestivas de envolvimento reumático em escolares. Concordando com o pressuposto, observou-se maior prevalência de regurgitação não fisiológica das valvas mitral e aórtica com a utilização de critérios Doppler ecocardiográficos. Em acordo com resultados de pesquisas similares, esse estudo permitiu identificar cinco vezes mais casos de valvopatia reumática de forma a conduzir adequadamente um acompanhamento criterioso e instituição de profilaxia secundária em alguns deles, podendo diminuir risco de sequelas e minimizar os índices de morbimortalidade, que ainda são frequentes em determinadas áreas geográficas de nosso país.
No presente estudo foram identificados um caso de CRC definitiva e quatro casos de cardiopatia subclínica: três de CRC provável e um de CRC possível. Foi recomendada profilaxia secundária para os casos de CRC provável e acompanhamento com profilaxia primária para o caso de CRC possível, além do reforço da necessidade de acompanhamento e profilaxia secundária para o paciente com CRC definitiva.