versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.42 no.2 São Paulo mar./abr. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37562015000000296
O tabaco é uma droga lícita largamente utilizada em todo o mundo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, o consumo de tabaco mata até metade de seus usuários, com uma previsão para o ano de 2030 de 8 milhões de óbitos anuais; quatro entre cinco mortes ocorrerá em países de baixa ou média renda. Além disso, o consumo de tabaco constitui o maior fator de risco para doenças não transmissíveis, como câncer, doenças cardiovasculares, diabetes e doenças respiratórias crônicas.(1)
A maioria dos tabagistas (70-80%) tem sua iniciação antes da idade adulta, configurando o tabagismo como uma doença pediátrica e, por isso, devendo fazer parte da atenção global à criança e ao adolescente.(1,2) Isso é particularmente importante, uma vez que as consequências tardias do tabagismo sobre a saúde estão em função direta da duração e da intensidade desse hábito.(3,4)
De acordo com estudo no Brasil, a experimentação de cigarro na infância e na adolescência aumenta em 34 vezes a chance do tabagismo na idade adulta, constituindo-se, portanto, em um dos seus preditores. (5) A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar, realizada em 2012 com 109.104 escolares (adolescentes de 13 a 15 anos) do 9º ano do ensino fundamental, incluindo as grandes regiões brasileiras, além de 26 capitais e do Distrito Federal, verificou que 19,6% dos escolares experimentaram cigarro alguma vez na vida.(6)
O tabagismo passivo e o ativo constituem fatores de risco para asma e rinite alérgica em adolescentes.(7-9) Existem, atualmente, poucas evidências das consequências, a longo prazo, do tabagismo ativo em pediatria, mas alguma comprovação existe sugerindo que essas consequências podem ser substanciais.(10,11) Na faixa etária pediátrica ainda são escassos estudos que avaliam a prevalência de crianças e adolescentes com sintomas de asma e sua associação com o tabagismo ativo ou experimentação de cigarro.(9)
Assim sendo, o presente estudo objetivou avaliar a prevalência da experimentação de cigarro em adolescentes com sintomas de asma ou de rinite alérgica na cidade de Belo Horizonte (MG).(12)
Estudo transversal realizado com adolescentes com a utilização do questionário International Study of Asthma and Allergies in Childhood (ISAAC), que avalia a prevalência e a gravidade de sintomas relacionados à asma e à rinite alérgica.(11)
O protocolo do estudo ISAAC definiu que a população estudada deveria ser de, no mínimo, 3.000 estudantes entre 13 e 14 anos de idade, selecionados aleatoriamente, com a inclusão de 14 escolas. A Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte forneceu uma lista com a relação das escolas municipais, o número de alunos por escola e o ano escolar. O sorteio foi feito por escola a partir de uma listagem aleatoriamente gerada no programa Epi Info, versão 6.04.
Foram incluídos alunos de 13 a 14 anos de idade que estivessem regularmente matriculados nas escolas selecionadas pelo estudo, que tivessem preenchido os questionários e que trouxessem o termo de consentimento livre e esclarecido assinado pelos responsáveis. O não cumprimento de todos esses itens ocasionou a exclusão do indivíduo do estudo.
Foi avaliada a faixa etária de 13 a 14 anos por essa representar a idade em que a maioria dos adolescentes frequenta a escola, facilitando a coleta de dados. O questionário ISAAC é um instrumento largamente utilizado e já validado para estudos epidemiológicos sobre asma e rinite alérgica.
Assim, para a avaliação da prevalência de sintomas de asma e rinite alérgica entre os adolescentes, foi utilizado o questionário traduzido e validado por Solé et al. para uso no Brasil,(13) no qual as perguntas destinadas a essas estimativas foram, respectivamente: "Nos últimos 12 meses, você teve sibilos (chiado no peito)?" e "Nos últimos 12 meses você teve algum problema com espirros, coriza (corrimento nasal) ou obstrução nasal, quando não estava gripado ou com resfriado?"
Consideraram-se experimentadores de cigarro todos aqueles estudantes que afirmaram já ter feito o uso de cigarro ao menos uma vez na vida.(14) Para a análise da prevalência da experimentação de cigarro entre os adolescentes utilizou-se o questionário validado pelo Centers for Disease Control and Prevention,(15) no qual a pergunta utilizada foi: "Alguma vez você já tentou ou experimentou fumar cigarros, mesmo uma ou duas tragadas?"; também foi avaliada a idade da primeira experimentação a partir do seguinte questionamento: "Quantos anos você tinha quando tentou fumar um cigarro pela primeira vez?"
Nas escolas sorteadas, o questionário foi aplicado a todos os alunos do 8º e 9º anos que tivessem 13 ou 14 anos de idade. Cada escola foi visitada por no mínimo duas vezes, evitando-se perdas por absenteísmo escolar.
O questionário foi preenchido pelos próprios adolescentes em sala de aula, sob supervisão de um dos pesquisadores, treinado e orientado a não interferir nas respostas.
A análise dos dados foi feita pelo programa Statistical Package for Social Sciences for Windows, versão 14.0 (SPSS Inc., Chicago, IL, EUA). Foram realizados cálculos de proporção para a análise das prevalências de adolescentes com sintomas de asma e rinite alérgica e para a prevalência de experimentação de cigarro na população geral e nos grupos com relato de sintomas de asma e rinite alérgica, assim como em relação ao gênero e à idade da experimentação.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais e pela Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte. Após a autorização da diretoria das escolas, os termos de consentimento livre e esclarecido foram assinados pelos adolescentes e por um de seus pais/responsáveis legais.
A amostra foi constituída por 3.325 adolescentes, sendo que 1.825 (54,9%) tinham 13 anos de idade. De acordo com o gênero, a maior parte da amostra era do sexo feminino (n = 1.858; 56,1%), independentemente da idade (Tabela 1).
Tabela 1. Dados demográficos da população geral estudada.a
Dados | (N = 3.235) |
---|---|
Gênero | |
Feminino | 1.858 (56,1) |
Masculino | 1.377 (43,9) |
Idade | |
13 anos | 1.825 (54,9) |
14 anos | 1.500 (45,1) |
aValores expressos em n (%).
As prevalências de sintomas de asma e rinite alérgica foram, respectivamente, de 19,8% e 35,3%.
No tocante à prevalência da experimentação de cigarro entre os adolescentes da amostra geral, essa foi relatada por 310 escolares (9,6%), conforme a Tabela 2. No que concerne à idade em relação à experimentação pela primeira vez, a média foi de 11,1 anos (variação, 5-14 anos). De acordo com o gênero, a proporção da experimentação de cigarro na amostra geral foi de 9,5% para o sexo feminino e de 9,8% para o sexo masculino, sem diferença estatística (p = 0,759).
Tabela 2. Prevalências da experimentação de cigarro na amostra geral estudada e entre adolescentes com sintomas de asma e rinite alérgica.
População estudada em relação à experimentação de cigarro | N | n (%) | IC95% |
---|---|---|---|
Geral | 3.235 | 310 (9,6) | (8,6-10,6) |
Adolescentes com sintomas de asma | 635 | 86 (13,5) | (10,8-16,2) |
Adolescentes sem sintomas de asma | 2.560 | 224 (8,7) | (7,6-9,8) |
Adolescentes com sintomas de rinite alérgica | 1.116 | 118 (10,6) | (8,8-12,4) |
Adolescentes sem sintomas de rinite alérgica | 2.028 | 187 (9,2) | (7,9-10,5) |
A proporção de experimentação de cigarro entre os adolescentes com sintomas de asma foi de 13,5% (86/635), e, no grupo com sintomas de rinite alérgica, a experimentação de cigarro ocorreu em 10,6% dos participantes (118/1.116), de acordo com a Tabela 2.
O presente estudo confirmou a experimentação de cigarro em adolescentes com sintomas de asma e rinite alérgica na nossa população.
Sabe-se que aproximadamente 80% dos adolescentes fumantes apresentam dependência de nicotina, podendo a experimentação tornar-se rapidamente um vício.(16) Entretanto, há poucos estudos sobre a experimentação de cigarro entre adolescentes e, de acordo com publicações no Brasil, essas prevalências variam entre 14,6% e 47,5%.(6,17-20) O presente estudo encontrou uma taxa mais baixa (9,6%) na população geral estudada, utilizando-se questionamentos adicionados ao protocolo ISAAC, com enfoque na experimentação de cigarro, selecionados a partir de um questionário validado(15) e que também já foi utilizado na população brasileira.(20)
Um estudo recente realizado no Brasil revelou que a experimentação de cigarro foi de 19,6% em alunos do 9º ano do ensino fundamental (adolescentes de 13 a 15 anos), sendo a maior frequência de experimentação observada na região Sul (28,6%) e a menor, na região Nordeste (14,9%).(6) O mesmo estudo detectou também que a população de adolescentes com 15 anos que experimentaram cigarro pela primeira vez com idade igual ou inferior aos 13 anos foi de 15,4%. (6) Já na cidade de Belo Horizonte (MG), apenas foi registrado um estudo de base domiciliar com enfoque no tabagismo entre adolescentes e adultos jovens, de 15 a 24 anos, no qual as prevalências de tabagismo na amostra geral e da experimentação de cigarro foram de 11,7% e 51,0%, respectivamente.(21) No entanto, a faixa etária não foi a mesma da do presente estudo, e a prevalência da experimentação de cigarro foi a mais elevada entre todos os estudos analisados.
Logo, de acordo com a literatura, observa-se uma grande variação entre as taxas de experimentação de cigarro, sendo que os valores encontrados no presente estudo foram inferiores a desses estudos. As seguintes considerações podem ser feitas para entender essas variações. O presente estudo não foi de base populacional, o que incorpora a possibilidade de subestimação do número de adolescentes que experimentaram o fumo. Para minimizar esse viés, o questionário foi aplicado em duas visitas para diminuir a importância do absenteísmo escolar. É possível também que parte dos adolescentes avaliados possa ter negado a experimentação, por medo da exposição ou por timidez, características típicas da adolescência em relação ao comportamento de risco, apesar da ênfase no momento do preenchimento do questionário de que os dados seriam sigilosos.
Ressalta-se, ainda, que há uma grande variabilidade entre os estudos quando se referem ao uso do tabaco, pois as definições são diferentes: uso esporádico, ocasional, habitual, tabagismo atual e uso diário do tabaco. São poucos os estudos que tratam da experimentação de cigarro. Assim sendo, há a necessidade de mais pesquisas para minimizar essas variações, com o uso de uma metodologia padronizada, para assim contribuir no diagnóstico e na melhora do monitoramento do uso do tabaco entre os adolescentes.
O enfoque do presente estudo foi a análise das prevalências da experimentação de cigarro entre adolescentes com asma e rinite alérgica. Não foram encontrados estudos na literatura sobre esse tema, o que é preocupante, visto que existe uma forte comprovação de que o tabagismo ativo é um fator de risco para a presença e a maior gravidade dos sintomas de asma, rinoconjuntivite e dermatite atópica.(22)
Dessa forma, os resultados obtidos na amostra avaliada podem ser úteis, pois além de estarem em acordo com a literatura em relação ao início precoce da experimentação de cigarro, também mostram que as prevalências dessa experimentação entre os adolescentes com sintomas de asma e rinite alérgica são maiores do que nos adolescentes da população geral, com ênfase entre os asmáticos.
O desenho do presente estudo não permite identificar as possíveis causas da maior prevalência de experimentação de cigarro entre adolescentes com asma ou rinite alérgica em relação à população geral e principalmente dentre os adolescentes com sintomas de asma em comparação com os que não apresentavam esses sintomas. Porém, se sabe que além de o uso do tabaco pelos pais constitui um fator de risco para o tabagismo e doenças respiratórias nos filhos,(23,24) a adolescência é uma fase de risco, principalmente interferindo no comportamento de pacientes com doenças crônicas, o que pode propiciar uma maior prevalência nesse grupo e assim reforçando a necessidade de manutenção e intensificação das medidas de combate ao tabaco nessa faixa etária, principalmente entre aqueles com doenças alérgicas respiratórias.
Finalmente, a redução do tabagismo é considerada um dos maiores desafios da saúde pública,(25) e políticas públicas têm sido elaboradas objetivando reduzir a dependência do tabaco e da nicotina entre crianças, bem como sua exposição passiva ao tabaco.(26) Apesar da implementação de várias ações educativas, legislativas e econômicas de combate ao tabagismo no Brasil, os adolescentes brasileiros ainda continuam vulneráveis à experimentação de cigarro e aos agravos decorrentes do hábito de fumar. Profissionais de saúde devem dar atenção especial à possibilidade de tabagismo entre adolescentes, especialmente naqueles com asma e rinite alérgica.