versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.20 no.6 Rio de Janeiro jun. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015206.00942014
O consumo de psicotrópicos no Brasil e em todo o mundo tem sido objeto de vários estudos, devido aos impactos sociais, econômicos e, principalmente, às implicações na saúde da população1,2. As consequências para o país, considerando a saúde e a segurança pública, são de grande importância, exigindo atitudes de toda natureza para diminuir este grave problema2.
Em um estudo realizado no Brasil em 2005, compreendendo 108 cidades com mais de 200 mil habitantes, 8,8% dos entrevistados relataram ter feito uso, pelo menos uma vez, de maconha; 2,9% de cocaína; 3,8% de anfetaminas e 5,6% de benzodiazepínicos3. Em 2007, a taxa de mortalidade atribuída ao uso de drogas foi de 4,3 por 100.000 habitantes. Quando se compara este número ao de outros países das Américas como Argentina (1,9), Chile (2,3) e Estados Unidos (2,4) observa-se que o Brasil necessita de políticas públicas que visem minimizar a difusão destas substâncias. Soma-se ainda, que o uso de medicamentos prescritos, especialmente benzodiazepínicos, nos Estados Unidos, Argentina, Brasil, México e Chile apresenta índices acima da média global4.
Segundo a United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC), no relatório de 2011, de 3,3 a 6,1% da população mundial entre 15 e 64 anos teriam usado drogas ilícitas pelo menos uma vez ao ano, o que corresponde de 149 a 272 milhões de pessoas desta faixa etária5. Este Relatório Mundial sobre Drogas aponta que a mortalidade atribuída ao uso de drogas ilícitas chega a 1%, sendo as mais utilizadas a maconha (prevalência anual entre 2,6% e 5,0%) e as anfetaminas (excluindo o ecstasy), com prevalência de 0,3% a 1,2%. Estes números podem ser ainda maiores, já que nem todas as mortes relacionadas ao uso de drogas são notificadas desta maneira.
O abuso de drogas nos locais de trabalho custa ao comércio e às indústrias americanas bilhões de dólares, em virtude de erros no serviço, absenteísmos, além de desempenho insatisfatório e más relações interpessoais6. No Brasil, apesar de não existir uma legislação específica, algumas empresas têm participado de programas de testes de drogas nos locais de trabalho desde 1992. Em 2004, mais de 300 empresas em todo o país participaram de uma pesquisa de drogas (maconha, cocaína e anfetaminas) em amostras de urina feita no Laboratório da Universidade de São Paulo7.
A profissão policial é de dedicação exclusiva e carrega consigo uma carga pesada de longas jornadas de trabalho, pressão psicológica e tensão diária. Alguns estudos apontam que o uso de substâncias psicoativas por estes profissionais é uma válvula de escape para aliviar as duras condições de trabalho e a baixa qualidade de vida destes profissionais8,9. Outros estudiosos consideram o uso de drogas como resultante de problemas de autoestima e falta de habilidades para enfrentar situações adversas10,11.
Em um estudo realizado em 12 unidades da polícia militar do Estado de Goiás, nos municípios de Goiânia e Aparecida de Goiânia, com 221 integrantes da corporação, foram observados os seguintes resultados: a) uso de drogas em qualquer período da vida: tabaco – 39,9%; álcool – 87,8%; maconha – 8,1%; cocaína – 1,8%; estimulantes – 7,2%; solventes – 10,0%; sedativos, ansiolíticos e antidepressivos – 6,8%; LSD – 0,5%. b) uso de drogas no último ano: tabaco – 15,4%; álcool – 72,9%; estimulantes – 6,3%; solventes – 0,5%; sedativos, ansiolíticos e antidepressivos – 3,7%. c) uso de drogas no último mês: tabaco – 14,5%; álcool – 57,5%; estimulantes – 5,0%; solventes – 0,5; sedativos, ansiolíticos e antidepressivos – 3,7%12.
O consumo de drogas no meio militar determina a necessidade de controle rigoroso e adequado contra esta moderna “arma química”, causadora de progressiva dependência e degradação humana13,14. Um estudo realizado na Finlândia, país em que uso de drogas ilícitas no meio militar é extremamente baixo, demonstrou que a eficiência dos testes para pesquisa de drogas em uma organização militar é um meio importante para melhorar a segurança no trabalho, devido ao êxito dessas estratégias de prevenção. As campanhas de conscientização constantes e a melhora das condições de trabalho também são ferramentas que, somadas, podem conseguir resultados positivos no sentido de diminuir os números alarmantes de usuários destas substâncias nocivas à saúde14.
Como qualquer organização civil, as forças militares não estão livres dos transtornos relacionados ao uso de drogas, como o álcool e outras drogas ilícitas. Considerando-se que elas são uma atividade específica, em que há o manuseio de armas, o consumo de drogas no meio militar determina a necessidade de um controle rigoroso e adequado, visando minimizar o desenvolvimento da dependência química, pois seu uso pode afetar a segurança da sociedade13,14.
Assim, este estudo teve como objetivo realizar o levantamento da prevalência do uso de drogas psicotrópicas em unidades da polícia militar de Goiás, Brasil, por meio da pesquisa de maconha, cocaína, anfetamina, metanfetamina, opiáceos e benzodiazepínicos em amostras de urina, a fim de oferecer subsídios para a implantação de testes de drogas aleatórios para militares em serviço.
O projeto deste estudo foi inicialmente submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Goiás, tendo sido aprovado. A pesquisa foi conduzida de acordo com a Declaração de Helsinque, revisada em 200815.
Um total de 299 amostras de urina de militares da ativa, sendo 285 do sexo masculino e 14 do sexo feminino, pertencentes ao quadro de servidores da polícia militar do Estado de Goiás, foi coletado de forma voluntária e sem identificação, no período de março a outubro de 2008. As amostras de urina foram coletadas no início da jornada de trabalho mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As amostras foram provenientes de 12 diferentes unidades da polícia militar das cidades de Goiânia e Aparecida de Goiânia. Após recebimento, as amostras foram submetidas a um teste de triagem imunocromatográfico, Multi-Drogas One Step Test da marca Inlab Diagnóstica, com os seguintes limites de detecção (cut-off): metanfetamina 500 ng/mL; anfetamina 1000 ng/mL; opiáceos/morfina 300 ng/mL; canabinoides (tetrahidrocanabinol) 50 ng/mL; cocaína (benzoilecgonina) 300 ng/mL e benzodiazepínicos 300 ng/ mL, teste validado por Costa et al.16. Estes testes foram adquiridos pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal de Goiás e permitiram a avaliação, também, da existência do uso associado de duas ou mais das drogas testadas por cada indivíduo.
As amostras positivas para drogas de abuso ilícitas foram submetidas à confirmação por GC-MS (gas chromatography-mass spectrometry) no Laboratório de Análises Toxicológicas da Universidade de São Paulo – LAT-USP (espectrômetro de massa modelo 5972, associado a um equipamento de cromatografia em fase gasosa modelo 6890 (GC/MS), ambos da Hewlett Packard (Little Falls, EUA), equipado com coluna capilar de sílica fundida HP-5MS (Hewlett Packard) com as seguintes dimensões: 30 m x 0.25 mm x 0.1 µm. Os valores de referência utilizados (cut off) para a técnica confirmatória foram: 11-nor-9-COOH-Δ9-THC 15 ng/mL; anfetamina/metanfetamina 200 ng/mL; benzoilecgonina 150 ng/mL. Em resumo, amostras foram submetidas à extração líquido-líquido, extração em fase sólida ou microextração em fase líquida, submetidas a derivação química e injetados no sistema GC-MS de acordo com métodos publicados, os quais são utilizados, rotineiramente, nas análises toxicológicas e de antidoping efetuadas pelo LAT-USP17–19. As amostras positivas para benzodiazepínicos não foram confirmadas por GC/MS, uma vez que o método imunocromatográfico apresenta sensibilidade e especificidade adequadas para sua identificação.
O cálculo do tamanho da amostra foi realizado utilizando a ferramenta StatCalc do programa EpiInfo™ versão 3.5, tomando como base o tamanho da população estudada e dados percentuais de uso de drogas obtidos em levantamentos epidemiológicos realizados pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas5, além de outros estudos de prevalência realizados no Brasil2,12. Dessa forma, a estimativa do tamanho da amostra, na população estudada (N = 1709), foi de 287 amostras. Foi considerado o nível de significância de 0,05 para as drogas mencionadas com expectativa de frequência em torno de 1,0%.
A distribuição dos sujeitos da pesquisa, quanto à faixa etária e sexo, está demonstrada na Tabela 1.
Tabela 1 Distribuição dos participantes
Gênero | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|
Faixas etárias (anos) | Masculino | Feminino | Total | |||
N | % | N | % | N | % | |
20 – 25 | 17 | 6 | 0 | 0 | 17 | 5,7 |
26 – 34 | 89 | 31,2 | 4 | 28,6 | 93 | 31 |
≥ 35 | 179 | 62,8 | 10 | 71,4 | 189 | 63 |
Total | 285 | 100 | 14 | 100 | 299 | 100 |
A frequência do uso de drogas psicotrópicas, obtidas por meio da realização dos ensaios nas amostras provenientes dos 299 participantes da pesquisa, está apresentada na Figura 1.
Não foi encontrado nenhum caso de associação de drogas. Dos seis casos positivos nos testes de triagem imunológicos, três foram confirmados como positivos e os outros três foram negativos na cromatografia por GC/MS.
Em relação aos casos positivos, 57,1% corresponderam ao uso de benzodiazepínicos; 28,6% ao uso de canabinoides e 14,3% ao uso de anfetaminas.
A prevalência do uso de drogas de abuso do presente estudo foi de 2,34%. Este dado é superior ao encontrado por outro estudo, feito em 20047, que avaliou o perfil de drogas de abuso ilícitas no ambiente de trabalho nas cinco regiões do Brasil, por meio de triagem por imunoens e confirmação por GC/MS, cujo percentual de amostras positivas foi de 1,8%. No entanto, esta diferença pode ser devido à inclusão de drogas prescritas neste estudo, que avaliou, além das de abuso ilícitas, a presença de benzodiazepínicos, que perfizeram um total de 1,34%, enquanto canabinoides e anfetaminas representaram 1,0% do total.
Em relação ao II Levantamento Sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas, realizado em 2005, por meio de questionário validado, ficou demonstrado que a região Centro-Oeste apresentou o percentual de dependentes de maconha de 0,6%; benzodiazepínicos de 0,2% e estimulantes de 0,2%. Nesse mesmo levantamento, considerando todas as regiões brasileiras, o percentual de dependentes de maconha foi de 1,2%; benzodiazepínicos 0,5% e estimulantes 0,2%5. No grupo estudado identificou-se a presença de 0,67% de maconha; 0,33% de anfetaminas e 1,34% de benzodiazepínicos, portanto com valores próximos, quando se consideram anfetaminas e maconha, na região Centro-Oeste, e superior, no caso dos benzodiazepínicos. Entretanto, o percentual de dependentes para maconha no Brasil (1,2%) é superior ao percentual de sujeitos da pesquisa que faziam uso de maconha, encontrados neste trabalho5.
O resultado encontrado neste estudo vai de encontro ao de Souza et al.20 que avaliou o consumo de drogas lícitas e ilícitas entre policiais civis e militares do Rio de Janeiro/RJ, Brasil, por meio de questionário pré-testado. Dentre estes, o consumo de substâncias psicoativas é mais alto até 10 vezes entre os policiais militares.
Quando se considera a natureza da atividade militar, notadamente nas atividades operacionais, muitas vezes é observado o desenvolvimento de desequilíbrio emocional, que necessita ser tratado por meio de psicofármacos21–23, situação que pode ser observada pela maior prevalência do uso de benzodiazepínicos neste estudo. Outro aspecto relevante é que a maioria (63,2%) dos participantes deste estudo possui meia-idade (≥ 35 anos de idade). Esse fato corrobora as observações de um estudo feito em 200522, que verificou, por meio de entrevistas, que os usuários de benzodiazepínicos apontam como indicações terapêuticas o tratamento dos distúrbios do sono e de transtornos da ansiedade.
Estudos realizados em instituições militares de outros países demonstram que o uso de drogas psicoativas (principalmente maconha e anfetaminas) é responsável por transtornos graves tanto no local de trabalho como no ambiente familiar, e que merecem atenção especial, por meio da implementação de programas e/ou políticas de prevenção para dissuadir o uso de drogas24–27. Estes dados corroboram os de Souza et al.20, segundo os quais, após o consumo das substâncias em questão, mais agentes militares tiveram problemas no trabalho (4,9%) ou faltaram ao serviço (4,4%).
A prevalência do uso de drogas de abuso, encontrada neste estudo, alerta sobre a possibilidade da implantação de testes aleatórios para a detecção de substâncias psicoativas no efetivo ativo da polícia militar, como uma alternativa adicional para o encaminhamento dos usuários para tratamento com equipe multiprofissional de saúde e, obtendo sucesso, para a reinserção laboral. Dessa forma, é possível colaborar para a diminuição dos problemas de saúde, atrasos, absenteísmos, baixo desempenho no trabalho (alternância entre elevada e baixa produtividade, capacidade de julgamento prejudicada, indisciplina, falhas de memória) e más relações interpessoais.
Os resultados positivos evidenciaram que os testes imunológicos (triagem) para pesquisa de drogas de abuso devem ser confirmados por metodologia em GC-MS, mais sensível, em virtude da possibilidade de ocorrência de resultados falsos-positivos que podem classificar erroneamente uma amostra28–30. Este fato foi verificado em três amostras, sendo duas para metanfetamina (500 ng/mL) e uma para opiáceos (300 ng/mL), provavelmente pelos limites de detecção dos testes utilizados30,31.
É importante ressaltar que os resultados obtidos foram de sujeitos que cederam de forma voluntária suas amostras de urina para análise, e que, mesmo assim, foram encontrados casos positivos. Sendo a análise toxicológica incluída no ambiente de trabalho, esta deve ser aplicada em momentos diferentes do vínculo empregatício, como na admissão ao trabalho, nos acidentes ou incidentes de trabalho, quando existir suspeita razoável em um membro da tropa, nas análises voluntárias e aleatórias e, finalmente, durante a reabilitação do indivíduo32.
O uso de substâncias psicoativas é classificado de acordo com a frequência e a quantidade do consumo, as características do indivíduo e do seu contexto sociocultural, podendo variar da simples experimentação ao uso ocasional, uso abusivo até a dependência. Sendo assim, uma limitação deste estudo é o fato de apenas uma coleta de amostras ter sido realizada, não sendo possível, desta forma, classificar os indivíduos analisados como dependentes. Alguns autores ponderam que nem todas as pessoas que experimentam algum tipo de substância psicoativa tornam-se usuários habituais ou são dependentes dela. A maioria das pessoas faz apenas um uso experimental dessas substâncias, contrariando os defensores da teoria da escalada, em que o uso de uma droga é sucedido por outra mais forte e com frequência mais intensa33–35.
A delicada questão do uso de drogas no meio policial demanda a necessidade de um Estado mais engajado em atender às expectativas desses agentes da segurança pública. Isso conferirá uma vantagem direta à sociedade, uma vez que esta é a primeira afetada pela qualidade dos serviços de segurança e ordem prestados pelos policiais36,37. Como afirmou Minayo38, o êxito de organizações tão importantes como as Corporações Policiais dependem do fato de manterem, sempre, seus agentes motivados, oferecendo boas condições de trabalho e ambiente psicologicamente favorável.
A partir dos resultados encontrados foi possível verificar a prevalência do uso de substâncias psicoativas em profissionais de segurança pública, lotados em unidades da polícia militar do Estado de Goiás, que pode ser considerada significativa, se comparada à média da população em geral. Desta forma, este estudo chama a atenção para a necessidade da elaboração de leis específicas, que permitam a implantação de testes em amostras biológicas para verificar a exposição a substâncias psicoativas no efetivo da corporação, como uma alternativa adicional, visando contribuir para minimizar o uso de tais substâncias por parte dos profissionais desta área.