versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.107 no.3 São Paulo set. 2016
https://doi.org/10.5935/abc.20160133
Mutações em genes do sarcômero são encontradas em 60-70% dos indivíduos com formas familiares de cardiomiopatia hipertrófica. (CMH). Entretanto, essa estimativa refere-se a populações de países do hemisfério norte. O perfil genético-molecular da CMH foi tema de poucos estudos no Brasil, particularmente na região sul do país.
Realizar a pesquisa de mutações dos genes sarcoméricos MYH7, MYBPC3 e TNNT2 numa coorte de CMH estabelecida no extremo sul do Brasil, assim como avaliar as associações genótipo-fenótipo.
Sequenciamento direto do DNA de todas as regiões codificantes dos três genes sarcoméricos foi realizada em 43 indivíduos consecutivos de dez famílias não-relacionadas.
Mutações para CMH foram encontradas em 25 (58%) indivíduos de sete (70%) das dez famílias estudadas, sendo 14 (56%) deles fenótipo-positivos. Todas as mutações eram missense, quatro (66%) no gene MYH7 e duas (33%) no gene MYBPC3. Não foram encontradas mutações no gene TNNT2. Mutações em MYH7 foram identificadas em 20 (47%) indivíduos de seis (60%) famílias. Duas delas não haviam sido previamente relatadas. Mutações de MYBPC3 foram detectadas em sete (16%) membros de duas (20%) famílias. Dois (5%) indivíduos apresentaram dupla heterozigose com mutações em ambos os genes. As mutações acometeram distintos domínios das proteínas codificadas e produziram expressão fenotípica variável. História familiar de CMH foi identificada em todos os indivíduos genótipo-positivos.
Nessa primeira análise genético-molecular da CMH realizada no sul do Brasil, foram encontradas mutações nos genes sarcoméricos MYH7 e MYBPC3 em 58% dos indivíduos. Doença relacionada ao gene MYH7 foi identificada na maioria dos casos com mutação.
Palavras-chave: Mutação / genética; Cardiomiopatia Hipertrófica; Epidemiologia; Sarcômeros; Etnia e Saúde
Mutations in sarcomeric genes are found in 60-70% of individuals with familial forms of hypertrophic cardiomyopathy (HCM). However, this estimate refers to northern hemisphere populations. The molecular-genetic profile of HCM has been subject of few investigations in Brazil, particularly in the south of the country.
To investigate mutations in the sarcomeric genes MYH7, MYBPC3 and TNNT2 in a cohort of HCM patients living in the extreme south of Brazil, and to evaluate genotype-phenotype associations.
Direct DNA sequencing of all encoding regions of three sarcomeric genes was conducted in 43 consecutive individuals of ten unrelated families.
Mutations for CMH have been found in 25 (58%) patients of seven (70%) of the ten study families. Fourteen (56%) individuals were phenotype-positive. All mutations were missense, four (66%) in MYH7 and two (33%) in MYBPC3. We have not found mutations in the TNNT2 gene. Mutations in MYH7 were identified in 20 (47%) patients of six (60%) families. Two of them had not been previously described. Mutations in MYBPC3 were found in seven (16%) members of two (20%) families. Two (5%) patients showed double heterozygosis for both genes. The mutations affected different domains of encoded proteins and led to variable phenotypic expression. A family history of HCM was identified in all genotype-positive individuals.
In this first genetic-molecular analysis carried out in the south of Brazil, we found mutations in the sarcomeric genes MYH7 and MYBPC3 in 58% of individuals. MYH7-related disease was identified in the majority of cases with mutation.
Keywords: Mutation / genetics; Cardiomyopathy, Hypertrophic; Epidemiology; Sarcomeres; Ethnicity and Health
A cardiomiopatia hipertrófica (CMH) é a doença cardiovascular de origem genética mais prevalente, acometendo um em cada 200 indivíduos.1-3 Apresenta distribuição geográfica universal, incidindo em diversos grupos étnicos, sem distinção de gênero.3 É transmitida predominantemente por herança autossômica dominante com penetrância incompleta, idade e gene-dependentes.4,5 Na atualidade, já foram descritas mais de 1500 mutações causadoras que, em sua maioria, envolvem 11 genes codificantes de proteínas do sarcômero e de discos Z.4-6 Mais recentemente, foram identificadas mutações em proteínas de outras estruturas celulares relacionadas ao sarcômero, cuja patogenicidade ainda não foi comprovada.5,6 Mutações causadoras costumam ser identificadas em 60-70% dos pacientes com formas familiares e em 30-40% dos casos esporádicos.2,4,6-10 O acometimento dos genes codificantes da cadeia pesada da β-miosina cardíaca (MYH7) e da proteína C de ligação à miosina (MYBPC3) é evidenciado em, respectivamente, 25% a 35% dos casos avaliados no hemisfério norte.4,6,10,11 O gene da troponina T (TNNT2) seria responsável por 5% dos pacientes, sendo que aos demais, atribui-se reduzida frequência individual, < 1%.5,6
O substrato molecular heterogêneo e a expressão fenotípica variável, características da CMH, podem ser influenciados por fatores étnicos e geográficos. Todavia, o perfil genético da doença foi definido com base em estudos desenvolvidos predominantemente em populações do hemisfério norte,7-9,12-30 enquanto que, no hemisfério sul, análises semelhantes são em número ainda restrito.31-34 A população urbana brasileira, em relação à de outros países, apresenta estrutura genética definida por alto grau de miscigenação entre ancestrais europeus, africanos e indígenas.35 Características étnicas próprias do sul do Brasil, expressas por reduzido grau de miscigenação entre indivíduos de ancestralidade diversa, justificam nosso interesse em definir o perfil genético da CMH nessa região.36
O objetivo deste estudo é realizar a pesquisa de mutações nos genes sarcoméricos MYH7, MYBPC3 e TNNT2 e avaliar as associações genótipo-fenótipo numa coorte de CMH estabelecida no extremo sul do Brasil.
Foi realizado um estudo transversal em uma amostra de conveniência de 43 indivíduos consecutivos, pertencentes a 10 famílias não-relacionadas, registrados no Ambulatório de CHM de um hospital terciário no sul do Brasil. Os familiares em primeiro grau incluídos no estudo correspondem àqueles que primeiro se apresentaram para avaliação no período de recrutamento. Todos os indivíduos integrantes desta análise eram originários desta região do país.
O fenótipo foi definido pela identificação ao ecocardiograma de hipertrofia ventricular esquerda (HVE) assimétrica, expressa por espessura parietal máxima ≥ 15 mm em qualquer segmento com razão septo/parede posterior ≥ 1,3 na ausência de dilatação da câmara e outras condições capazes de determinar alterações semelhantes. Na avaliação dos familiares, o critério adotado para identificação da doença foi de espessura parietal máxima do ventrículo esquerdo (VE) ≥ 13 mm no septo anterior ou parede posterior. Todos os indivíduos foram submetidos à avaliação cardiovascular incluindo eletrocardiograma convencional em repouso e ecocardiograma. Dez pacientes foram submetidos à cineangiocoronariografia. O protocolo do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição, e todos os pacientes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
A extração de DNA do sangue periférico foi realizada de acordo com a técnica descrita por Miller et al.37 A amplificação de todas as regiões codificantes dos genes sarcoméricos MYH7 (38 exons), MYBPC3 (33 exons) e TNNT2 (15 exons) foi realizada por PCR.38 Os fragmentos foram purificados por meio de Exo-SAP, de acordo com instruções do fabricante (USB Corporation, USA), seguido de sequenciamento direto com BigDye Terminator v3.1 Cycle Sequencing Kit (Applied Biosystems, USA) e eletroforese capilar analisada por meio de ABI3500 Genetic Analyzer (Applied Biosystems, USA). As sequências obtidas foram comparadas às consideradas de referência: MYH7 - NM_000257, NP_000248; MYBPC3 - NM_000256, NP_000247; TNNT2 - NM_000364, NP_000355. A nomenclatura para a descrição das variações de sequências seguiu a recomendação do Human Genome Variation Society.39 Em alguns casos, a análise de cosegregação da mutação e dos dados clínicos foi efetuada para definição da patogenicidade.
A análise in silico foi aplicada para avaliar o efeito da substituição de um aminoácido da proteína com base na conservação das regiões afetadas por meio dos seguintes sistemas computacionais: PolyPhen2,40 SIFT,41 PROVEAN,42 MutationTaster43 e MutPred.44 O sistema MutPred foi utilizado como gerador de hipótese sobre as propriedades estruturais e funcionais da mutação. Mutações sinônimas e substituições intrônicas em exons codificantes, não relatados como polimorfismos (SNPs) ou encontrados no 1000 Exome Variant Server (EVS) database, foram também submetidas à análise in silico para identificação de possível alteração do tipo splice site. NetGene245e Human Splicing Finder46 foram adotados para cálculo dos valores de consenso de potenciais sítios de splice.
Os dados quantitativos foram expressos por média e desvio-padrão, e as variáveis categóricas por frequências relativas e absolutas. A normalidade dos dados foi analisada pelo teste de Shapiro-Wilk, e a diferença entre dois grupos baseada em variáveis contínuas e simétricas pelo teste t de Student para amostras independentes. Variáveis categóricas foram comparadas por meio do teste qui-quadrado. Os dados foram processados utilizando o software SPSS, versão 18.0 (SPSS Inc., Chicago Illinois, USA). O nível de significância estatística adotado foi de p <0,05.
A população estudada foi constituída por 10 probandos consecutivos de famílias não-relacionadas e 33 familiares em primeiro grau. Todos eram caucasianos. As características clínicas da coorte estão apresentadas na tabela 1.
Características | Probandos (n = 10) | Familiares (n = 33) | |
---|---|---|---|
Fenótipo-positivo (n = 7) |
Fenótipo-negativo (n = 26) |
||
Idade (anos) | 53 ± 7 | 42 ± 20 | 32 ± 17 |
Grupo racial | |||
Caucasianos | 10 (100%) | 7 (100%) | 26 (100%) |
Gênero feminino | 5 (50%) | 4 (57%) | 17 (65%) |
História familiar | |||
CMH | 7 (70%) | 7 (100%) | 15 (58%) |
Morte súbita cardíaca | 2 (20%) | 4 (57%) | 8 (30%) |
Idade de início da doença (anos) | 44 ± 12 | 39 ± 20 | - |
Classe funcional NYHA | |||
I/II | 5 (50%) | 5 (71%) | - |
III/IV | 5 (50%) | 2 (29%) | - |
Ecocardiograma | |||
Diâmetro do átrio esquerdo (mm) | 46 ± 5 | 38 ± 8 | 32 ± 7 |
Diâmetro diastólico final do VE (mm) | 43 ± 5 | 47 ± 5 | 45 ± 4 |
Diâmetro sistólico final do VE (mm) | 25 ± 3 | 26 ± 3 | 25 ± 3 |
Espessura parietal máxima do VE (mm) | 20 ± 4 | 20 ± 5 | 9 ± 7 |
Fração de ejeção % | 72 ± 6 | 74 ± 5 | 71 ± 5 |
Obstrução da via-de-saída do VE | 7 (70%) | - | - |
Obstrução médio-ventricular esquerda | 1 (10%) | 2 (29%) | - |
Gradiente na via-de-saída do VE (mmHg) | 45 ± 33 | - | - |
Tratamento | |||
Ablação alcoólica do septo | 3 (30%) | - | - |
Miectomia | 1 (10%) | - | - |
Marca-passo de dupla-câmara | 4 (40%) | - | - |
Cardiodesfibrilador automático implantável | 2 (20%) | 1 (14%) | - |
Dados apresentados como média ± desvio padrão. CMH: cardiomiopatia hipertrófica; NYHA: New York Heart Association; VE: ventrículo esquerdo.
Mutações causadoras foram encontradas em 25 indivíduos (58%), compreendendo sete (70%) probandos e 18 (54%) familiares, pertencentes a sete (70%) das dez famílias avaliadas. Nas famílias com mutação conhecida, 18 (82%) dos 22 familiares examinados apresentavam mutação, mas somente sete (32%) eram fenótipo-positivos. Todos os familiares genótipo-negativos (n = 15;45%) apresentavam-se normais à avaliação clínica. Em todos os 11 (33%) carreadores de mutação sem evidências de HVE ao ecocardiograma, foram identificadas anomalias eletrocardiográficas incluindo ondas Q patológicas ≥ 3 mm e/ou > 40 ms em duas ou mais derivações, com exceção de aVR (n = 10;90%), bloqueios fasciculares (n = 6; 54%), ondas S profundas em V2 > 25 mm (n = 3;27%) e ondas T negativas > 3 mm (n = 1;1%).
Todas as mutações encontradas eram missense, quatro (66%) no gene MYH7 e duas (33%) em MYBPC3. Não foram identificadas mutações em TNNT2. Duas das mutações do gene MYH7 não haviam sido previamente relatadas na literatura. Mutações desse gene foram identificadas em 20 (47%) indivíduos de seis (60%) famílias, afetando os probandos e 14 familiares. As mutações do gene MYBPC3 foram detectadas em sete (16%) indivíduos de duas (20%) famílias, acometendo os probandos e cinco familiares. Em uma única família, dois (5%) membros, o probando e um familiar, apresentaram dupla heterozigose com mutações simultaneamente nos genes MYH7 e MYBPC3 (Figura 1). Nas três (30%) famílias genótipo-negativas, todos familiares eram clinicamente normais, enquanto que, nas sete famílias com mutação, 32% dos familiares avaliados eram fenótipo-positivos. As características das mutações encontram-se descritas na tabela 2 e a análise de patogenicidade na tabela 3.
Gene/Exon | Mutação/Domínio | Alteração do aminoácido | Famílias | No. de indivíduos afetados fenótipo + / fenótipo – | Cosegregação | Fenótipo |
---|---|---|---|---|---|---|
MYH7 | ||||||
9 | Missense/Cabeça | p.lle263Thr | IX | 1/0 | NT | HVE leve, forma obstrutiva |
21 | Missense/Domínio IQ | p.Ala797Thr | VI | 1/1 | NT | HVE moderada, forma obstrutiva |
22 | Missense/Pescoço | p.Met877lle | V | 3/0 | Sim | HVE leve à grave, formas não-obstrutivas ou com obstrução de via-de-saída ou médio- ventricular |
32 | Missense/Haste | p.Glu1468Lys | IV, VIII, X | 6/8* | Sim | HVE leve à moderada, formas não-obstrutivas ou com obstrução de via-de-saída ou médio-ventricular, morte súbita tardia |
MYBPC3 | ||||||
18 | Missense/C4 | p.Arg495Gln | III | 3/2 | Sim | HVE moderada à maciça, formas não-obstrutivas de início precoce, morte súbita prematura |
25 | Missense/C6 | p.Val896Met | VIII | 1/1** | NT | HVE moderada, formas obstrutivas |
Domínio IQ: domínio de ligação à calmodulina; NT: não testado; HVE: hipertrofia ventricular esquerda;
*associada à p.Val896Met (MYBPC3), n = 2;
**associada à p.Glu1468Lys (MYH7), n = 2.
Mutação | PolyPhen2 | SIFT | PROVEAN | MutationTaster | MutPred |
---|---|---|---|---|---|
p.lle263Thr | Benigno | Deletério | Deletério | Deletério | Deletério |
p.Ala797Thr | Benigno | Benigno | Benigno | Benigno | Deletério |
p.Met877lle | Benigno | Benigno | Benigno | Deletério | Benigno |
p.Glu1468Lys | Deletério | Deletério | Deletério | Deletério | Deletério |
p.Arg495Gln | Deletério | Benigno | Benigno | Deletério | Deletério |
p.Val896Met | Benigno | Deletério | Benigno | Benigno | Deletério |
Nas seis (60%) famílias com doença causada pelo gene MYH7, somente 11 (55%) eram fenótipo-positivos, o probando e cinco familiares. Nos indivíduos fenótipo-positivos, a espessura parietal máxima do VE apresentou variação de 13 a 26 mm, média de 20 ± 4 mm. Nesse gene, foram mapeadas quatro mutações. A substituição p.Ile263Thr foi identificada em apenas uma família, afetando exclusivamente o probando. O único familiar submetido à genotipagem era clinicamente normal e não exibia mutação. A mutação p.Ala797Thr foi detectada somente em dois indivíduos de uma família, no probando e em um familiar, fenótipo-negativo. Essa substituição, considerada patogênica apenas pelo sistema MutPred, foi relatada no 1000 EVS com a frequência alélica de 0,0002 na população afro-americana. Ambas as mutações associaram-se à HVE de grau leve ou moderado e às formas obstrutivas. A mutação p.Met877Ile, não descrita previamente, foi identificada em três indivíduos de uma família de quatro membros. A mutação foi considerada como uma alteração benigna por quatro dos cinco sistemas computacionais consultados. Entretanto, mostrou cosegregação com o fenótipo da CMH nos indivíduos com a doença, o que sugere seu efeito patogênico. O probando apresentava fenótipo moderado com obstrução de via-de-saída do VE. Obstrução médio-ventricular grave foi evidenciada em um dos membros da família e HVE leve em outro. Nenhuma dessas três mutações relacionou-se à história familiar de morte súbita. A mutação p.Glu1468Lys, identificada em três famílias, não apresentava registro prévio na literatura ou nas bases de dados EVS e SNP. No entanto, todos os programas consultados favoreceram seu potencial patogênico. A análise de cosegregação demonstrou que todos os membros das famílias afetadas com exceção de um, considerado normal, eram carreadores da mutação. Em uma das famílias, a mutação foi encontrada no probando e em seis dos sete familiares avaliados, mas somente três eram fenótipo-positivos. O probando e um dos familiares apresentavam formas não-obstrutivas com HVE moderada. Obstrução médio-ventricular foi identificada em outro membro desta família, posteriormente acometido por morte súbita aos 66 anos durante o período de seguimento. Em outra família com essa mutação, o probando e os quatro familiares examinados apresentavam o genótipo, mas apenas dois eram fenótipo-positivos. Dois membros, o probando e um familiar jovem fenótipo-negativo, exibiam dupla heterozigose com mutação nos genes MYH7 e MYBPC3. O probando evidenciava HVE moderada e obstrução grave da via-de-saída, enquanto que o familiar com mutação isolada de MYH7, demonstrava forma leve não-obstrutiva. Na terceira família acometida, o probando e um familiar jovem fenótipo-negativo eram carreadores dessa mutação, a qual se associou à HVE moderada e obstrução grave da via-de-saída do VE.
Nas duas (20%) famílias com mutações do gene MYBPC3, quatro (57%) dos carreadores eram fenótipo-positivos, os probandos e dois familiares. As mutações determinaram HVE com marcada variação inter- e intrafamiliar, expressa por espessura parietal máxima do VE de 17 a 34 mm, média 23 ± 7 mm. A mutação p.Arg495Gln foi identificada em uma família, no probando e em quatro dos cinco membros submetidos à genotipagem, dois dos quais eram fenótipo-positivos. A análise de cosegregação nessa família e três sistemas computacionais favoreceram o seu papel patogênico na CMH. A mutação relacionou-se à HVE de moderada à maciça, em formas não-obstrutivas de início precoce, associadas à história familiar de morte súbita prematura. A mutação p.Val896Met foi encontrada em dois indivíduos de uma família de seis membros, os quais eram também carreadores da mutação p.Glu1468Lys no gene MYH7. Dois programas distinguem o caráter patogênico desta variante, relatada no EVS com uma frequência alélica de 0,0015 e 0,0048 em indivíduos de origem africana e europeia, respectivamente.
A comparação de variáveis clínicas entre os indivíduos genótipo-positivos e genótipo-negativos demonstrou que história familiar de CMH e/ou morte súbita foi mais frequente naqueles com mutação identificada (Tabela 4). Indicadores clínicos não diferiram significativamente entre os carreadores de mutações dos dois genes, exceção feita à menor idade de apresentação e história familiar de morte súbita, que se associaram à doença causada por MYBPC3 (Tabela 5).
Características | Genótipo-positivo (n = 25) |
Genótipo-negativo (n = 18) |
p |
---|---|---|---|
Idade (anos) | 41 ± 19 | 35 ± 17 | 0,3 |
Gênero | |||
Masculino | 13 (52%) | 4 (22%) | 0,08 |
Feminino | 12 (48%) | 14 (78%) | |
História familiar | |||
CMH | 25 (100%) | 4 (22%) | 0,0001 |
Morte súbita cardíaca | 12 (48%) | 2 (11%) | 0,019 |
Dados apresentados por média ± desvio padrão. CMH: cardiomiopatia hipertrófica.
MYH7 (n = 20) |
MYBPC3 (n = 7) |
p | |
---|---|---|---|
Idade (anos) | 48 ± 19 | 32 ± 16 | 0,102 |
Idade de apresentação (anos) | 47 ± 13 | 25 ± 13 | 0,0001 |
Gênero | |||
Masculino | 13 (65%) | 5 (71%) | 0,127 |
Feminino | 7 (35%) | 2 (29%) | |
História familiar | |||
CMH | 20 (100%) | 7 (100%) | - |
Morte súbita | 7 (35%) | 5 (71%) | 0,016 |
Classe funcional NYHA | |||
I/II | 15 (75%) | 6 (86%) | 0,246 |
III/IV | 5 (25%) | 1 (14%) | |
Diâmetro do átrio esquerdo (mm) | 40 ± 6 | 33 ± 7 | 0,082 |
Diâmetro diastólico do VE (mm) | 45 ± 5 | 40 ± 4 | 0,06 |
Diâmetro sistólico do VE (mm) | 26 ± 4 | 24 ± 2 | 0,195 |
Espessura parietal máxima do VE (mm) | 15 ± 6 | 19 ± 10 | 0,274 |
Fração de ejeção (%) | 67 ± 19 | 70 ± 3 | 0,497 |
Obstrução na via-de-saída do VE | 6 (30%) | 1 (14%) | 0,133 |
Dados apresentados por média ± desvio padrão; CMH: cardiomiopatia hipertrófica; VE: ventrículo esquerdo; NYHA: New York Heart Association.
O presente estudo representa a primeira análise genético-molecular da CMH realizada em população do extremo sul do Brasil, a qual compreendeu a avaliação de membros de famílias não-relacionadas. Foi estudada uma amostra de pacientes-índices consecutivos e seus respectivos familiares, considerados como representativos de uma coorte ambulatorial não-referenciada de CMH. Mutações causadoras foram detectadas em 58% dos indivíduos e em 70% das famílias. As mutações do gene MYH7, identificadas em 47% dos indivíduos, foram predominantes em relação àquelas do gene MYBPC3, presentes em apenas 16% dos casos. A maioria dessas mutações demonstrou serem privativas de uma única família. Duas mutações do gene MYH7 foram consideradas como novas. A presença de teste genético positivo no probando possibilitou a identificação molecular da doença em até 82% dos respectivos familiares, dos quais 39% eram fenótipo-positivos. Todos os carreadores de mutação sem evidências de HVE ao ecocardiograma apresentaram anomalias eletrocardiográficas, expressas majoritariamente por ondas Q patológicas, as quais podem ser indicativas da doença em fase pré-clínica.47
A CMH é considerada uma doença universal, que acomete diferentes populações expostas a uma ampla variedade de fatores ambientais e geográficos. Embora a expressão fenotípica da CMH não evidencie aspectos distintos em populações do hemisfério norte e sul, ainda não está claramente definido se ambas compartilham o mesmo substrato genético. A análise molecular de indivíduos com a doença, originários de múltiplas regiões geográficas e de etnia diversa, certamente contribuirá para o entendimento das complexas características desta entidade. O perfil genético da CMH foi definido com base no estudo de populações não-relacionadas da Europa e América do Norte.7-9,12-24 Mais recentemente, a análise genético-molecular foi estendida a coortes da Ásia,25,26,28,30 África Setentrional27 e Austrália.32 Todavia, dados gerados a partir da avaliação de populações do hemisfério sul, são comparativamente escassos.31-34 Em nosso país, as características moleculares da CMH foram determinadas em indivíduos oriundos das regiões sudeste, norte e nordeste.34 A assimilação de testes genéticos mais resolutivos à prática clínica deverá certamente favorecer a sua aplicação em maior escala em coortes de todos os continentes.
Na presente análise, mutações causadoras foram identificadas com maior frequência do que em estudos prévios, que incluíram formas familiares e esporádicas de CMH.18,9,18,19,22-27 A maior positividade de nossos resultados pode ser atribuída ao fato de termos avaliado uma amostra bem caracterizada da doença, ainda que a identificação de mutações apresente variação de acordo com a população estudada.10 Todas as mutações dos genes MYH7 e MYBPC3 detectadas eram missense. A ausência de acometimento no gene TNNT2 pode ser atribuída à sua menor prevalência na população em geral e a idade mais avançada dos indivíduos integrantes dessa amostra, considerando que esse gene apresenta relação com início precoce e morte súbita prematura.4,6,13 As mutações de MYH7 foram predominantes em relação àquelas que envolveram MYBPC3, ao contrário do referido em estudos prévios baseados em populações independentes do hemisfério norte.7,8,11,22,23,27,48 Essa característica foi descrita em pacientes com CMH originários de outras regiões do Brasil e pode representar uma particularidade da doença em nosso país.34
As mutações de MYH7 foram encontradas em 47% dos indivíduos submetidos à genotipagem e em 60% das famílias. O rastreamento de todas as regiões codificantes deste gene identificou a presença de quatro mutações missense em diferentes domínios da proteína. A mutação p.Ile263Thr foi previamente relatada na França,7,22 em Portugal,23 e mais recentemente em outras regiões do Brasil.34 A mutação p.Ala797Thr, previamente descrita na África do Sul31 com provável efeito fundador, também foi referida em coortes da América do Norte,8 África Setentrional27 e Europa9,23,24 assim como no Brasil.34 A mutação p.Met877Ile, nova, foi mapeada em uma família com alto grau de penetrância, acometendo três dos quatro membros genotipados em duas gerações. A mutação associou-se à HVE de leve à grave e à obstrução médio-ventricular e de via-de-saída, assim como também a formas não-obstrutivas. A mutação p.Glu1468Lys, também considerada nova, foi identificada em três famílias não-relacionadas. Variação fenotípica inter e intrafamiliar foi observada em formas obstrutivas e não-obstrutivas com HVE de grau leve a moderado. Essa mutação relacionou-se, igualmente, à obstrução médio-ventricular associada à morte súbita tardia em um familiar.
Mutações missense do gene MYBPC3 foram encontradas em 16% dos indivíduos e em 20% das famílias avaliadas. A mutação p.Arg495Gln, descrita na América do Norte20 e na população portuguesa,23 foi referida como frequente em uma coorte brasileira de CMH.34 A mutação foi identificada em uma família com história de morte súbita prematura associada à HVE de moderada à maciça. A mutação p.Val896Met foi previamente detectada em coortes europeias,7,23 assim como na África do Sul.31 Dois carreadores dessa mutação de uma família, o probando com HVE moderada e obstrução de via-de-saída grave, assim como um familiar jovem fenótipo-negativo, também exibiam a mutação p.Glu1468Lys no gene MYH7. O familiar fenótipo-negativo demonstrava ondas Q patológicas no eletrocardiograma em repouso. Heterozigose dupla ou composta costuma ser identificada em famílias com mutações de MYBPC3, correspondendo de 3 a 5% dos pacientes com CMH.7,20 Múltiplas mutações estão usualmente relacionadas à fenótipos graves e doença de início precoce,4,6,7 entretanto, graus variáveis de HVE já foram relatados em alguns desses indivíduos.34
Todas as mutações dos genes MYH7 e MYBPC3 demonstraram marcada variação fenotípica intra e interfamiliar relacionada ao grau de HVE. Variação fenotípica em pacientes carreadores de uma mesma mutação é considerada característica da CMH.10 Os padrões de HVE e a idade de início da doença podem diferir mesmo entre indivíduos relacionados, considerando que o fenótipo é determinado não só pela mutação, mas também pela interação de polimorfismos, genes modificantes, fatores epigenéticos e ambientais.6,10 A metanálise das associações genótipo-fenótipo na CMH demonstra que, devido ao fato de muitas mutações serem privativas de uma só família, os estudos já realizados ainda não possuem poder estatístico suficiente para obtenção de conclusões definitivas.48 Entretanto, algumas variáveis clínicas podem estar relacionadas ao genótipo, tais como idade de apresentação, espessura parietal máxima do VE e história familiar da doença ou de morte súbita. Na amostra avaliada, houve predomínio de história familiar de morte súbita e idade de apresentação mais precoce nos carreadores de mutação do gene MYBPC3, características que diferem daquelas relatadas na literatura, mas que podem representar uma particularidade da população em estudo.
Em 30% das famílias, não foram identificadas mutações causadoras. Em todos esses casos, foi evidenciada ausência de história clínica prévia de CMH. A presença de um teste genético negativo pode resultar da existência de mutações em genes não conhecidos ou não sequenciados. A HVE, por não constituir fenótipo específico, é identificada em outras formas de cardiopatia como nas doenças metabólicas consideradas fenocópias da CMH. A detecção de mutações em genes sarcoméricos relacionados à doença associa-se à história familiar, início precoce da doença, prognóstico desfavorável e maior grau de HVE em relação aos casos com teste genético negativo.9,25,27 Dados recentes indicam que essa associação manifesta-se independentemente do gene acometido, mas estudos adicionais são necessários para comprovar esses achados.2 No presente estudo, história familiar de CMH ou morte súbita foi mais frequente em indivíduos genótipo-positivos em relação àqueles genótipo-negativos.
Neste estudo, mutações causadoras de CMH foram identificadas em expressivo número de indivíduos. Entretanto, o perfil genético da população aqui analisada não diferiu essencialmente daquele descrito em coortes de etnia diversa, originárias de outras regiões geográficas, exceto pelo fato de que o acometimento de MYH7 foi mais frequente em relação à MYBPC3.
O estudo compreendeu o rastreamento dos três genes mais prevalentes na CMH, mas não se estendeu aos demais, considerados como de reduzida frequência. Não obstante, a análise restringiu-se a uma amostra de famílias não-relacionadas registradas em um único centro terciário situado no sul do Brasil.
Nesta primeira análise genético-molecular de uma coorte de pacientes com CMH do extremo sul do Brasil, mutações foram identificadas em 58% dos indivíduos consecutivos de famílias não relacionadas. As mutações afetaram de forma predominante o gene MYH7, característica que diverge do relatado em países do hemisfério norte. O estudo corrobora que as mutações em MYH7 e MYBPC3 devem constituir o enfoque inicial da análise genético-molecular na CMH, mutações no gene TNNT2 seguem um padrão de baixa prevalência na população brasileira. Todas as mutações detectadas eram do tipo missense, enquanto que duas do gene MYH7 não haviam sido previamente descritas. As mutações caracterizaram-se por acometer distintos domínios das proteínas codificadas e determinar expressão fenotípica variável. Foi identificada relação entre teste genético positivo e história familiar de CMH ou morte súbita. Predomínio de mutações do gene MYH7 pode representar uma característica da população local.