versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.1 Rio de Janeiro jan. 2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018241.34872016
Mundialmente, a violência contra idosos atinge proporções epidêmicas, constituindo-se numa importante causa de morbidade e mortalidade, resultando em altos custos individuais e coletivos1. A subnotificação global leva à imprecisão das estatísticas e, mesmo em países desenvolvidos, estima-se que para cada caso notificado, há vários outros não relatados. Nos Estados Unidos, em torno de 4% dos maiores de 65 anos sofrem maus tratos anualmente, enquanto no Brasil, a grande variabilidade metodológica revela índices muito díspares, dependendo do tipo de população estudada e dos locais de pesquisa, se na comunidade ou em instituições2,3. Estudos realizados em Minas Gerais e Pernambuco identificaram prevalência de21% em idosos residentes em áreas urbanas4,5.
A Rede Internacional para a Prevenção dos Maus Tratos Contra o Idoso define a violência contra esse grupo etário da seguinte forma: “O mau trato ao idoso é um ato (único ou repetido), ou omissão que lhe cause danos ou aflição e que se produz em qualquer relação na qual exista expectativa de confiança”. As violências mais praticadas contra a população idosa são as de natureza física, psicológica, sexual, financeira e negligência. Essa última, embora comum, é a de mais difícil caracterização2. A autonegligência é também considerada uma violência que é perpetrada pelo idoso contra si mesmo, ao deixar de se prover dos cuidados necessários para sua saúde e segurança6.
A maioria dos casos de violência ocorre no ambiente doméstico e é cometida por membros próximos ao idoso. De modo geral, o abuso é cometido de forma sutil, sendo difícil distinguir entre o estresse interpessoal da relação cotidiana e os maus-tratos. No âmbito familiar, as violências física e psicológica podem se constituir como um padrão de relacionamento, mas também são resultantes da incapacidade do idoso para realizar o autocuidado7.
As características do indivíduo perpetrador de violência influem na ocorrência de maus-tratos para com os idosos. Transtornos psiquiátricos, uso de drogas, histórico de violência, abandono, abuso físico ou sexual na infância são fatores predisponentes2,8. Aliados à ausência de serviços domiciliares e à coabitação com o idoso, estes aspectos contribuem para o estresse emocional que, em nosso meio, atinge de 69 a 84% dos cuidadores9–12. Entretanto, a dependência do indivíduo que recebe o cuidado impõe uma sobrecarga que se constitui em um dos mais importantes fatores de risco para violência contra idosos dependentes13,14. A associação entre o nível de tensão dos cuidadores e a capacidade funcional de idosos já foi evidenciada em nosso meio15.
A identificação da violência perpetrada por cuidadores de idosos é difícil. A maioria dos profissionais de saúde sente dificuldade para identificar e encaminhar adequadamente esses casos, tanto nos serviços de saúde, como naqueles de referência nas áreas de segurança e justiça14. Além disso, crenças relacionadas à impotência para o enfrentamento da violência familiar também ocorrem entre as equipes de saúde16. Parte do problema se deve à falta de capacitação profissional, mas também ao constrangimento do idoso de relatar os episódios de violência sofridos, em virtude de culpa, medo do cuidador ou de ser institucionalizado. A pressão pela rapidez no atendimento, a confusão dos sinais apresentados pelo idoso com alguma condição médica, a pouca familiaridade com ferramentas de rastreamento e com a legislação contribuem para os problemas enfrentados pelos profissionais17,18.
Para enfrentar o problema da violência, as políticas públicas de saúde vêm incorporando diretrizes que instituem medidas como a comunicação obrigatória dos casos de violência, o atendimento interdisciplinar e intersetorial às vítimas, além da capacitação de profissionais, incluindo as equipes da Estratégia de Saúde da Família19. Embora lenta, a incorporação desse tema nas políticas oferece suporte para a construção de uma rede integrada de atendimento aos idosos, envolvendo diferentes setores e, principalmente, aquelas equipes, cuja atuação pode dar maior visibilidade ao problema, além de possibilitar a identificação de estratégias específicas para cada local14.
A investigação de maus-tratos por meio de instrumentos padronizados pode fornecer dados que auxiliem na avaliação da funcionalidade familiar, favorecendo a elaboração de estratégias multidisciplinares para a abordagem da violência contra idosos dependentes. O Caregiver Abuse Screen (CASE) é um instrumento de triagem destinado ao cuidador, contendo perguntas sobre situações relacionadas à violência sem, no entanto, interrogar diretamente sobre atos violentos20. Já adaptado ao contexto cultural brasileiro21, a ferramenta passou por avaliação de sua validade de constructo e revelou correlação com outros instrumentos para detecção de violência contra idosos, sobrecarga, abuso de álcool e depressão em cuidadores22. Na prática clínica, o desempenho no CASE pode servir como um primeiro alerta para o risco de abuso21,22.
Este estudo teve como objetivo verificar a prevalência de indícios de violência contra idosos dependentes por parte de cuidadores familiares e os fatores associados ao abuso em uma região pobre da cidade do Rio de Janeiro.
Realizou-se estudo transversal na região de Manguinhos, na cidade do Rio de Janeiro, área com extrema vulnerabilidade socioambiental, onde residiam aproximadamente 36 mil pessoas, em 2011. A maioria dos domicílios tinha apenas um cômodo, a renda média domiciliar era de aproximadamente 630 reais por mês (cerca de U$ 157) e quase 50% dos residentes haviam completado apenas o ensino fundamental23. Nessa área, as iniciativas para a redução da violência têm sido inviabilizadas devido à atuação de traficantes de drogas24.
A amostra, de conveniência, foi constituída por idosos de ambos os sexos, identificados pelos cadastros das equipes de saúde da família que atuam na área, selecionando-se os domicílios com maior facilidade de acesso e localizados em áreas de menor risco. Para esta captação, 866 domicílios foram visitados. Incluíram-se indivíduos com dependência em pelo menos duas atividades de vida diária (AVD) que dispusessem de um cuidador familiar responsável pela realização de seu cuidado. Excluíram-se os independentes ou que apresentavam apenas uma dependência para AVD. Foram selecionados 135duplas de idosos/cuidadores.
Os dados foram coletados entre janeiro de 2013 e junho de 2014. Uma assistente social aplicou os questionários ao idoso e/ou cuidador. As perguntas eram dirigidas ao idoso ou ao cuidador, nos casos de impedimento de se obter as respostas do primeiro.
Todos os instrumentos passaram por adaptação transcultural, utilizando-se as versões em português do Brasil. Nas avaliações dos idosos usaram-se as seguintes ferramentas: Escala de Independência em Atividades de Vida Diária (EIAVD) – consta de seis itens biologicamente hierarquizados em termos de complexidade, que aferem o desempenho nas seguintes atividades de autocuidado: alimentação, controle de esfíncteres, transferência, higiene pessoal, capacidade para se vestir e tomar banho. Essa última é a mais complexa. Dependência implica na necessidade de assistência para realização das tarefas. Cada dependência é considerada um ponto, definindo-se os seguintes níveis: leve- menor do que três; moderado- três ou quatro; alto- cinco ou mais pontos25,26; Mini-Exame do Estado Mental (MEEM) – para triagem cognitiva, cujos escores variam de zero, que indica maior grau de comprometimento cognitivo, até um total máximo de 30 pontos, correspondendo à melhor capacidade cognitiva. Para distinguir os indivíduos com e sem disfunção, foram utilizados os seguintes pontos de corte, definidos por estudos brasileiros, de acordo com a escolaridade: analfabetos- 19/20; 1 a 7 anos de estudo- 23/24; oito ou mais anos- 26/2727–29; Escala de Cornell de Depressão em Demência – este instrumento é aplicado ao cuidador e destina-se à identificação de sintomas depressivos em idosos com declínio cognitivo. A pontuação total na escala é determinada pela soma dos itens, até um total de 28, havendo depressão provável quando a soma é maior do que 10 e depressão definida quando acima de 18 pontos30,31; Escala de Depressão Geriátrica (EDG)- para rastreamento de depressão no idoso sem declínio cognitivo. Utilizou-se a forma reduzida com 15 perguntas, pontuadas de zero a um, considerando-se seis ou mais pontos indicativos de depressão32,33.
Na entrevista com o cuidador, utilizaram-se os seguintes instrumentos: Escala de Avaliação de Sobrecarga de Zarit34,35– avalia o impacto de doenças mentais e físicas, fornecendo o nível de sobrecarga emocional dos cuidadores. Composta por 22 questões que apresentam cinco possibilidades de resposta, indicando a frequência com que o indivíduo se sente sobrecarregado em diferentes situações. Para cada alternativa, a pontuação varia de 0 (nunca) a 4 (quase sempre). Neste estudo, consideraram-se três níveis de sobrecarga: ausente ou leve (menor que 21); moderada (21 – 40) e severa (acima de 40 pontos); Questionário CAGE para rastreamento de alcoolismo- o questionário contém oito perguntas intermediárias, não pontuadas, que são adicionadas às quatro específicas. Considera-se haver problemas com álcool quando os entrevistados respondem afirmativamente a um mínimo de duas questões específicas36,37; Escala de Apoio Social do Medical Outcomes Study (MOS). Possui 19 questões que abrangem as cinco dimensões de apoio social (afetivo, emocional, material, de informação e interação social positiva). A pontuação é definida de acordo com a frequência de apoio percebida pelo indivíduo em cada uma das dimensões, podendo variar de zero (nunca) a quatro (sempre)38,39. Neste estudo foi considerado apoio social insatisfatório (ASI) quando houve mais de 50% de itens de cada dimensão com respostas iguais a zero, um (raramente) ou dois (às vezes); Caregiver Abuse Screen (CASE)- para rastreamento de violência de cuidadores contra idosos. O instrumento contém apenas oito itens e é de fácil administração. As categorias de resposta estão na forma dicotomizada, cada uma podendo receber zero ou um ponto, não havendo neutralidade, de forma que as respostas afirmativas pontuam para a possibilidade de risco de violência. No estudo original, identificou-se risco aumentado a partir de quatro pontos. Considerando-se a elevada correlação do CASE com outros instrumentos que avaliam constructos relacionados à violência do cuidador em nosso meio22, é razoável supor que a versão brasileira capte o risco de violência de forma similar à original. Assim, na ausência de estudos locais que validassem outros pontos de corte, optamos por definir risco aumentado de violência quando pelo menos 50% das questões fossem afirmativas, o que equivalia a uma pontuação de quatro ou mais.
Na análise estatística, calcularam-se as médias e desvios-padrões (DP) da idade dos idosos e dos cuidadores e a frequência de violência segundo as características dos idosos e cuidadores. Testes estatísticos foram utilizados para comparar os percentuais de violência segundo as características do cuidador e do idoso. Utilizou-se um modelo de regressão logística para investigar a associação entre a violência e as características do idoso e do cuidador. Para especificação do modelo, optou-se por utilizar métodos de seleção automática das variáveis (stepwise). Todas as variáveis associadas à violência, utilizando como ponto de corte do p-valor 0,20, foram incluídas no método de seleção automática. O modelo final resultante incluiu as seguintes variáveis independentes: 1) relacionadas ao idoso-sexo e depressão; 2) relacionadas ao cuidador –sexo, sobrecarga, alcoolismo e apoio social. Após o ajuste do modelo, utilizou-se o teste de Hoslem para avaliar se o modelo foi corretamente especificado.
O estudo seguiu as recomendações estabelecidas pelo Conselho Nacional de Saúde, que regulamenta pesquisas com seres humanos. Foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Participaram do estudo 135 duplas de idosos e cuidadores. Perdas de informações representaram 2% do total. O grupo de idosos era formado predominantemente por mulheres viúvas com menos de quatro anos de estudo. Quase metade sofria de depressão e a grande maioria apresentava disfunção cognitiva, com nível de dependência moderado a alto (Tabela 1).
Tabela 1 Características gerais dos idosos participantes do estudo, Manguinhos (Rio de Janeiro), 2013-2014.
Características | Idosos* | Violência | p-valor | ||
---|---|---|---|---|---|
Sim | Não | ||||
Idade – média (DP) | 80,5 (10,0) | 77,3 (10,3) | 82,1 (9,7) | 0,01 | |
Sexo – n (%) | 0,05 | ||||
Feminino | 95 (70,4) | 27 (28,4) | 68 (71,6) | ||
Masculino | 40 (29,3) | 19 (47,5) | 21 (52,5) | ||
Estado Civil – n (%) | 0,74 | ||||
Solteiro/divorciado/separado | 17 (12,7) | 6 (35,3) | 11 (64,7) | ||
Viúvo | 74 (54,8) | 23 (31,5) | 50 (68,5) | ||
Casado | 44 (32,8) | 17 (38,6) | 27 (61,4) | ||
Escolaridade – n (%) | 0,09 | ||||
0 | 49 (36,6) | 11 (22,4) | 38 (77,6) | ||
1-4 anos | 56 (41,4) | 23 (41,8) | 32 (58,2) | ||
5 anos ou mais | 30 (22,4) | 12 (40,0) | 18 (60,0) | ||
Depressão – n (%) | 65 (48,1) | 35 (53,8) | 30 (46,2) | 0,0001 | |
Déficit cognitivo – n (%) | 119 (88,8) | 41 (89,1) | 78 (88,6) | 0,99 | |
Nível de dependência – n (%) | 0,39 | ||||
Leve | 18 (13,3) | 8 (47,1) | 9 (52,9) | ||
Moderado | 50 (37,0) | 14 (28,6) | 35 (71,4) | ||
Alto | 67 (49,6) | 22 (33,3) | 44 (66,7) |
*Total de participantes = 135.
No grupo de cuidadores houve predomínio de mulheres de meia idade, sendo que 70% coabitavam com os idosos e quase 60% evidenciaram sinais de sobrecarga moderada a severa. Aproximadamente um terço desses indivíduos apresentou apoio social insatisfatório, sobretudo afetivo, e indícios de violência doméstica na relação com o idoso. Além disso, índices preocupantes de problemas com álcool foram identificados (Tabela 2).
Tabela 2 Características gerais dos cuidadores participantes do estudo, Manguinhos (Rio de Janeiro), 2013-2014.
Características | Cuidadores* | Violência | P-valor | ||
---|---|---|---|---|---|
Sim | Não | ||||
Violência – n (%) | 46 (34,1) | ||||
Idade – média (DP) | 55,0 (14,2) | 55,0 (15,3) | 54,9 (13,6) | 0,97 | |
Sexo – n (%) | |||||
Feminino | 115 (85,2) | 43 (37,4) | 72 (62,6) | 0,07 | |
Masculino | 20 (14,8) | 3 (15,0) | 17 (85,0) | ||
Estado Civil – n (%) | 0,18 | ||||
Solteiro/divorciado/separado | 58 (43,0) | 17 (29,3) | 41 (70,7) | ||
Viúvo | 12 (8,9) | 7 (58,3) | 5 (41,7) | ||
Casado | 65 (48,1) | 22 (33,8) | 43 (66,2) | ||
Coabitação com idosos | 97 (71,9) | 34 (35,1) | 63 (64,9) | 0,84 | |
Problemas com álcool – n (%) | 25 (18,5) | 12 (48,0) | 13 (52,0) | 0,16 | |
ASI – n (%) | |||||
Afetivo | 20 (14,8) | 12 (60,0) | 8 (40,0) | 0,01 | |
Emocional | 47 (34,8) | 19 (40,4) | 28 (59,6) | 0,26 | |
Interação Social | 53 (39,3) | 23 (43,4) | 30 (56,6) | 0,10 | |
Informações | 51 (37,8) | 22 (43,1) | 29 (56,9) | 0,09 | |
Material | 53 (39,3) | 22 (41,5) | 31 (58,5) | 0,19 | |
Total | 40 (29,6) | 19 (47,5) | 21 (52,5) | 0,05 | |
Sobrecarga – n (%) | |||||
Ausente ou leve | 54 (40,0) | 7 (13,0) | 47 (87,0) | 0,0001 | |
Moderada | 57 (42,2) | 22 (38,6) | 35 (61,4) | ||
Severa | 24 (17,8) | 17 (70,8) | 7 (29,2) |
*Total de participantes = 135; ASI- apoio social insatisfatório.
As respostas positivas no CASE dão um panorama das dificuldades vivenciadas pelos cuidadores no trato com idosos dependentes: metade deles se perceberam incapazes de prover o cuidado adequado ao idoso, 43% evidenciaram sinais de exaustão relacionada ao cuidado e mais de 30% apresentaram indícios de uso de violência física, psicológica e negligência (Tabela 3).
Tabela 3 Distribuição das respostas positivas indicativas de risco aumentado de violência no Caregiver Abuse Screen (CASE).
CASE (N=135) | n (%) |
---|---|
1. Você às vezes encontra dificuldade em fazer com que o(a) idoso(a) controle sua irritação? | 64 (47,4) |
2. Você muitas vezes se sente forçado(a) a agir contra sua própria natureza ou a fazer coisas que lhe desagradam? | 55 (40,7) |
3. Você acha difícil controlar o comportamento do(a) idoso(a)? | 55 (40,7) |
Você às vezes se sente forçado(a) a ser bruto(a) com o(a) idoso(a)? | 43 (31,8) |
4. Você às vezes sente que não consegue fazer o que é realmente necessário ou o que deve ser feito para o(a) idoso(a)? | 68 (50,3) |
5. Você muitas vezes acha que tem de rejeitar ou ignorar o(a) idoso(a)? | 41 (30,3) |
6. Você muitas vezes se sente tão cansado(a) e exausto(a) que não consegue dar conta das necessidades do(a) idoso(a)? | 58 (42,9) |
7. Você muitas vezes acha que tem de gritar com o(a) idoso(a)? | 49 (36,2) |
A análise da relação entre violência e os outros indicadores do cuidador revelou associação significante com apoio social insatisfatório e sobrecarga (p < 0,05). Quanto aos idosos, verificou-se associação estatisticamente significante entre depressão, sexo masculino e presença de violência (dados não demonstrados).
No modelo ajustado, as características dos idosos que influenciaram a ocorrência de violência foram sexo e depressão. Os homens apresentaram chance quase três vezes maior de sofrerem violência do que as mulheres (OR = 2,92), enquanto idosos deprimidos tiveram chance quase sete vezes maior de sofrerem violência, quando comparados aos não deprimidos (OR = 6,93). Com relação ao cuidador, os fatores associados aos maus-tratos foram alcoolismo e sobrecarga. Idosos, cujos cuidadores apresentaram sobrecarga moderada e severa tiveram chances de sofrerem violência 2,9 e 11 vezes maiores, respectivamente, que aqueles cujos cuidadores tinham sobrecarga leve; e idosos, cujos cuidadores apresentam problemas com álcool, tiveram chance 3,8 vezes maior de sofrerem maus-tratos, em relação àqueles cujos cuidadores não apresentaram esse problema. A análise de resíduos revelou ajuste satisfatório do modelo ajustado. (Tabela 4). O modelo especificado não foi rejeitado no teste de Hoslem (p-valor = 0.45).
Tabela 4 Associação entre as características dos idosos e cuidadores com a violência contra o idoso, Manguinhos (Rio de Janeiro), 2013-2014.
Característica | Violência | ||
---|---|---|---|
Odds Ratio | IC 95% | ||
Do Idoso | |||
Sexo (referência: feminino) | 2,92 | 1,09 – 8,23 | |
Depressão | 6,93 | 2,66 – 20,26 | |
Do Cuidador | |||
Sexo (referência: feminino) | 0,19 | 0,03 – 0,82 | |
Sobrecarga | |||
Leve vs. moderada | 2,94 | 1,02 – 9,22 | |
Leve vs. severa | 11,10 | 2,93 – 48,18 | |
Alcoolismo | 3,80 | 1,17 – 13,21 | |
ASI Total | 2,13 | 0,79 – 5,86 |
ASI = Apoio Social Insatisfatório. §Foi construído um modelo logístico. Variável resposta: violência contra o idoso. Fatores incluídos no modelo os preditores: 1) relacionadas ao idoso: sexo, depressão; 2) relacionadas ao cuidador: sexo, sobrecarga do cuidador, alcoolismo e apoio social ao cuidador.
A violência contra a pessoa idosa é frequente, muitas vezes fatal, gera alto custo ao sistema de saúde, e, ainda assim, tem sido pouco estudada. Além disso, idosos vítimas de maus-tratos têm três vezes mais chances de morrerem nos três anos seguintes ao evento traumático8,40. As verdadeiras incidência e prevalência de violência contra esse grupo social podem nunca ser conhecidas, devido ao pouco reconhecimento e consequente subnotificação dos casos2. A utilização de diferentes instrumentos e definições operacionais contribui para dificuldades nos registros sobre a frequência de violência dentro de uma mesma população8. Neste estudo, a prevalência de indícios de violência por parte de cuidadores foi de mais de 30%, taxa similar à identificada em familiares de idosos dementes no Reino Unido13. Nos Estados Unidos, estima-se que 11% dos idosos tenham sofrido algum tipo de violência no ano anterior41, mas essa proporção quadruplica quando os idosos sofrem de demência42. Transtornos mentais também ocasionaram uma prevalência de abuso igual a 24% no estudo de Hughes et al.40, que reuniu dados de mais de 21 mil indivíduos dependentes ao redor do mundo. No Brasil, Fonseca et al.43 visitaram quase oito mil domicílios brasileiros e identificaram violência em 33,5% deles, enquanto no estudo de Bolsoni et al.44 este percentual foi de 13%, considerando-se uma amostra de 1705 indivíduos idosos residentes em Florianópolis. Apratto Júnior45, em um bairro de Niterói, no Rio de Janeiro, encontrou relatos de pelo menos um episódio de violência em 43% dos idosos. Entre os seis estudos de melhor qualidade identificados na revisão sistemática da literatura científica nacional sobre a prevalência da violência contra idosos, entre os anos 2008 e 2013, o maior percentual de violência, 21%, foi encontrado por Duque et al. em Pernambuco, ao entrevistar 274 idosos em seus domicílios4,46. Recentemente, Paiva e Tavares5 entrevistaram 729 idosos em Uberaba e também identificaram prevalência de 21%. Deve-se destacar que, ao contrário de nosso estudo, nenhum dos outros se dedicou exclusivamente à investigação da violência contra idosos vulneráveis. Portanto, é plausível que a prevalência de abuso contra idosos dependentes encontrada por nós seja maior do que aquela cometida contra idosos independentes, como os entrevistados nos estudos mencionados acima.
Dentre as características dos idosos associadas à violência por parte dos cuidadores, o sexo masculino e a presença de depressão aumentaram o risco de violência em quase três e cinco vezes, respectivamente. A associação com o sexo masculino é um achado de frequência variável. Recente revisão sistemática de Johannesen e Lo Giudice47 sobre os fatores de risco para violência contra idosos identificou 49 estudos de boa qualidade, não havendo uma tendência clara de abuso em relação ao gênero, idade e nível educacional dos idosos. Já a depressão, apresenta associação inequívoca com maus-tratos por parte de cuidadores8. Ela pode ser tanto uma causa como uma consequência do abuso. Lichtenberg et al.48 identificaram a depressão como um dos fatores associados ao abuso financeiro em 4.440 idosos (OR = 1,09, IC = 95% 1,01- 1,18), enquanto Strasser et al.49 verificaram que a chance de ocorrência de violência foi seis vezes maior em um grupo de 112 idosos que apresentavam sintomas depressivos (OR = 6,07, IC 95% 1,54-23,09). Na China, onde a compaixão filial é um traço cultural, Wu et al.50 identificaram chance de ocorrência de maus-tratos 5,5 vezes maior em 2.039 idosos deprimidos versus não-deprimidos, residentes em comunidades rurais. No Brasil, Apratto Júnior45 evidenciou associação de violência com depressão e outras condições desencadeadoras de vulnerabilidade para os idosos.
A constatação da associação entre depressão e violência doméstica fez com que Lachs e Pillemer51 indicassem a necessidade do uso de instrumentos formais para investigação de depressão em todas as possíveis vítimas de maus-tratos. Sugere-se, aqui, a mesma conduta em situações de incapacidade, concedendo à triagem de depressão um papel relevante na prevenção da violência, ao emitir um sinal de um alerta para a equipe de saúde sobre o risco em que se encontra o idoso dependente.
Dentre os fatores relacionados ao cuidador, verificou-se que a presença de altos níveis de sobrecarga proporcionou um aumento de 11 vezes nas chances de ocorrência de violência. Johannesen e LoGiudice47 também verificaram associação entre violência contra idosos dependentes e sobrecarga dos cuidadores em sete estudos, mas tal incremento não chegou a duplicar as chances de maus-tratos. Em nosso meio, Queiroz et al.15 analisaram os fatores potencialmente associados a negligência doméstica em 40 cuidadores e idosos assistidos por um programa de assistência domiciliar e encontraram correlação entre tensão geral do cuidador e diminuição da capacidade funcional dos idosos.
O escandaloso aumento no risco de maus-tratos evidenciado em nossa amostra talvez seja o achado mais importante deste trabalho, pois demonstra a realidade perversa a que estão submetidos os cuidadores familiares com poucos recursos para lidarem com a situação de dependência de seus parentes. Segundo o Ministério da Saúde, os cuidadores devem receber atenção apropriada, dada a significativa carga representada pelo cuidado ao idoso, que costuma recair sobre apenas um membro da família14. O papel de orientação familiar, assim como a avaliação formal periódica do nível de sobrecarga dos cuidadores, cabe aos profissionais de saúde, possibilitando a identificação de fatores de risco para abuso, de modo a propor intervenções preventivas para atos de violência.
Neste estudo, problemas com álcool se associaram ao abuso por parte dos cuidadores, aumentando em mais de três vezes as chances de ocorrência de violência, fato que não se constitui em novidade. Reichenheim et al. identificaram correlação entre o CASE e o CAGE (p < 0,01) ao entrevistarem 507 cuidadores em três serviços de saúde no Rio de Janeiro22. Fonseca et al.43 verificaram que, no momento da violência, 17% dos agressores estavam alcoolizados sendo que, entre as vítimas, 7,7% eram um dos pais do agressor(43). E, ao analisarem as 3593 notificações de violência contra idosos do Sistema de Informações de Agravos de Notificação, em 2010, Mascarenhas et al.52 verificaram maior ocorrência de violência psicológica por filhos com suspeita de uso de álcool (Razão de Proporção = 1,60). Esses dados demonstram a necessidade de se examinar de perto a participação do uso de álcool na origem dos maus-tratos a idosos. A busca ativa de casos de violência e de abuso de álcool por meio das equipes de saúde pode ser uma estratégia eficiente de auxílio às famílias na prevenção da violência53.
A despeito da elevada frequência com que os idosos vítimas de violência interagem com o sistema de saúde, em especial com os médicos, é pouco frequente o registro de tais ocorrências8. Esta dificuldade ficou aparente no trabalho de Deslandes e Souza54, ao analisarem a atenção pré-hospitalar aos idosos vítimas de violência em cinco capitais brasileiras, onde a falta de capacitação para o atendimento se tornou aparente. Nesse sentido, a introdução de um instrumento de triagem na rotina dos serviços, adaptado ao contexto cultural, pode contribuir para o preenchimento desta lacuna. A identificação dos maus-tratos aos idosos é uma oportunidade única para melhorar a qualidade do cuidado deste grupo.
Um dos obstáculos para lidar com a violência é a pouca integração entre os serviços de saúde e aqueles de proteção aos idosos, e isto não é exclusividade de nosso país. Recentemente, O’Brien55 alertou para a necessidade de integração entre as instituições, antes de se proceder ao rastreamento de violência contra idosos nos Estados Unidos. Ainda assim, em nosso meio, esforços na qualificação das equipes para identificar, atender e notificar os casos de violência que chegam às unidades do Sistema Único de Saúde são necessários para proteger os idosos. Isto inclui a formação, tanto na graduação dos profissionais de saúde, quanto na educação continuada56.
Esta pesquisa apresenta algumas limitações. Por ser derivada de um estudo transversal, não é possível concluir-se a existência de associação causal entre a violência contra idosos dependentes e os fatores aqui considerados, factível em desenhos longitudinais. A natureza local dos dados, extraídos de uma amostra de conveniência, não possibilita a generalização dos resultados e, por conseguinte, extrapolações para outros municípios, mas é importante frisar que retrata uma realidade facilmente observada em outras regiões do país. Além disso, considerando-se a necessidade de contextualização cultural da violência, é possível que questões culturais relacionadas ao ambiente de vulnerabilidade socioambiental a que estão submetidos os indivíduos entrevistados, tenham aumentado a prevalência de violência. Entretanto, o viés de seleção imposto pelo perigo existente na região, deixando fora do estudo indivíduos residentes em áreas com maior exposição à violência pelo tráfico de drogas e menor assistência pelas equipes de saúde, pode ter subestimado a real prevalência de violência contra idosos dependentes por parte de cuidadores. Esses aspectos apontam para a necessidade de estudos em ambientes distintos.
Este trabalho apresenta pontos fortes, dentre os quais o fato de ser um estudo de base populacional, cuja amostra possibilitou a investigação de associação entre a violência perpetrada pelo cuidador e variáveis relacionadas tanto ao cuidador como ao idoso dependente. Além disso, nossos resultados são comparáveis aos de outros estudos e as avaliações utilizaram instrumentos que já passaram pelo processo de adaptação transcultural.
A violência contra idosos dependentes continua a ser pouco diagnosticada e notificada. Neste estudo, realizado em uma área pobre e violenta de uma grande cidade, foi identificado risco elevado de violência por parte de cuidadores, utilizando-se um instrumento de triagem simples. O risco de maus tratos se associou a sobrecarga e a problemas com álcool por parte dos cuidadores, e a depressão nos idosos que recebiam o cuidado. Avaliar o grau de dificuldade para realizar o autocuidado e a presença de depressão em idosos dependentes, assim como o nível de estresse e de problemas com álcool nos cuidadores desses indivíduos, pode evidenciar a existência de fatores de risco para a ocorrência de violência contra aqueles idosos. Dar suporte às famílias, identificando-se e tratando-se esses problemas,são atitudes promissoras na prevenção e redução da ocorrência de violência familiar.