Compartilhar

Prevalência e fatores associados ao tabagismo entre adolescentes,

Prevalência e fatores associados ao tabagismo entre adolescentes,

Autores:

Marilyn Urrutia-Pereira,
Vinicius J. Oliano,
Carolina S. Aranda,
Javier Mallol,
Dirceu Solé

ARTIGO ORIGINAL

Jornal de Pediatria

versão impressa ISSN 0021-7557versão On-line ISSN 1678-4782

J. Pediatr. (Rio J.) vol.93 no.3 Porto Alegre mai./jun. 2017

http://dx.doi.org/10.1016/j.jped.2016.07.003

Introdução

O uso de tabaco é a principal causa evitável de morte e doenças no mundo e estima-se que no século 21 um bilhão de pessoas morrerão por causa do tabagismo.1 Aproximadamente 80% dos fumantes em todo o mundo vivem em países com renda baixa e/ou média, onde a carga das doenças relacionadas ao tabaco tem grande impacto.2

São atribuídas ao consumo de tabaco 11% das mortes por doença isquêmica cardíaca e 70% das por câncer de pulmão, brônquios e traqueia. Acredita-se que o aumento da prevalência de tabagismo observado nos países em desenvolvimento ao longo dos anos será responsável pelo dobro de sobrecarga com os cuidados de saúde por doenças não transmissíveis.3 Assim, torna-se necessário um mecanismo de vigilância eficiente e sistemático para monitorar as tendências de consumo de tabaco e seus derivados.4

Estudo colaborativo internacional em escolares de 131 países documentou ser a adolescência o grupo de maior risco para o início do tabagismo, uma vez que a prevalência global de escolares tabagistas ativos foi 8,9%, na América (17,5%) e na Europa (17,9%) e inferior a 10% nas demais regiões avaliadas.5

No Brasil, a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) documentou que 30% dos jovens entre 13 e 15 anos começaram a fumar antes dos 12.6 É descrito que os hábitos adquiridos nessa fase da vida costumam ser mantidos na idade adulta e são difíceis de modificar7 e que apesar de os adolescentes terem conhecimentos sobre os riscos que supõe o consumo de cigarro e seus derivados, seus hábitos parecem ser contrários.8 É nos anos de transição, entre o ensino médio e o superior, que há maior iniciação de usuários do tabaco, assim como maior estabilização do seu comportamento de fumar.9

Por esse motivo, ao longo das últimas décadas, o ambiente escolar tem sido foco de esforços particulares para influenciar o comportamento dos adolescentes com intervenções competentes que os ajudem a evitar o uso de tabaco nessa etapa tão precoce de suas vidas.10,11

Assim, considerando o consumo de cigarro pelos adolescentes um comportamento de risco à sua saúde e que embora estudo brasileiro recente12 demostre redução da prevalência de tabagismo entre os jovens, em especial os em situação de vulnerabilidade socioeconômica, na cidade de Uruguaiana o tabagismo entre adolescentes ainda é um grande desafio.

Por esse motivo nos propusemos a fazer o presente estudo entre adolescentes atendidos na rede pública de ensino do município de Uruguaiana para avaliar a verdadeira dimensão do problema.

Métodos

Desenho do estudo

Estudo prospectivo feito entre março e junho de 2015 na cidade de Uruguaiana, RS, cuja população geral é estimada em 125.435 habitantes, dos quais 6% estão na faixa etária de estudo, ou seja, 12 a 19 anos.13

Das 66 escolas da cidade (31 municipais, 32 estaduais e três privadas) foram excluídas 51 (31 municipais e 20 estaduais) por não atenderem escolares da faixa etária estudada. Das 15 escolas restantes, foram sorteadas oito que participaram da pesquisa. Numa segunda etapa foram selecionadas, aleatoriamente, em cada escola, as classes que continham alunos na faixa etária em estudo e eles foram convidados a participar do estudo.

Cálculo amostral

O cálculo amostral teve como parâmetros: prevalência de 10% para o consumo do tabaco com nível de confiança de 95% e erro alfa de 5%. Chegou-se a 750 estudantes, que acrescidos de eventuais perdas (20%) nos fizeram considerar 900 estudantes.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital Santa Casa de Caridade de Uruguaiana e foi outorgada autorização para a pesquisa pela Secretaria de Educaçāo do estado e pelas respectivas escolas particulares de Uruguaiana.

Todos os adolescentes assinaram o termo de assentimento e os menores de 18 anos também apresentaram a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido por seus responsáveis.

Coleta de dados

Os adolescentes autorizados a participar do estudo responderam, em sala de aula, ao questionário autoaplicável e por questões de sigilo esse foi identificado apenas por idade e gênero. Os questionários foram preenchidos sob supervisão de investigador treinado (VJO, professor de educação física) presente na sala de aula nesse momento.

O questionário autoaplicável empregado foi o California Tobacco Survey,14 traduzido para o português e adaptado para a cultura brasileira segundo recomendações internacionais.15 O questionário foi traduzido para o português por dois médicos brasileiros especializados em alergia (forward translation) e de modo independente. As duas traduções foram comparadas por outros dois médicos, as divergências eliminadas após consenso e o produto foi vertido para o inglês por tradutor nativo de língua inglesa (backward translation) e comparado com o questionário original. Não houve diferenças relevantes entre ambos. A versão final obtida em português foi administrada a um grupo de adolescentes para verificar o seu entendimento e as dificuldades de respondê-lo. Foram feitas pequenas adaptações de linguística (testagem de pacientes). Poucas adaptações foram feitas e a versão final do questionário foi concluída (tabelas 1 e 2).

Tabela 1 Respostas obtidas dos adolescentes referentes ao uso e pensamento sobre o tabaco 

Questão Tentou fumar
Sim (n = 234) Não (n = 564)
Idade ao tentar fumar
Nunca fumei um cigarro 50 (21,4) -
≤ 12 anos 34 (14,5) -
≥ 13 anos 150 (64,1) -
Há quanto tempo você fumou um cigarro inteiro?
Há 30 dias 27 (11,5) -
Quantos dias você fumou no último ano?
A maioria/todos os dias 16 (6,8) -
Você fumou pelo menos um cigarro todos os dias, durante 30 dias?
Sim 31 (13,2) -
No último mês quantos dias você fumou cigarros?
Até 9 dias 62 (26,5) -
Mais de 10 dias 25 (10,6) -
Quantos cigarros/dia você fumou no último mês?
Até 5 75 (32,1) -
Mais de 5 17 (7,3) -
É fácil conseguir cigarros quando deseja fumar?
Muito/pouco fácil 188 (80,3)a 369 (65,4)
Você tentou deixar de fumar cigarros no último ano?
Sim 75 (32,1) -
Você quer parar de fumar cigarros?
Sim 49 (20,9) 1 (0,1)
Você acredita que consegue deixar de fumar, se quiser?
Sim 77 (32,9)a 0 (0,0)
Você acredita que vai fumar um cigarro alguma vez durante o próximo ano?
Definitiva/provavelmente Sim 89 (38,0)a 129 (22,9)
Fumar cigarros faz com que os jovens te olhem de uma forma "melhor" ou se sintam parte do grupo?
Definitiva/provavelmente sim 83 (35,5) 169 (30,0)
Você acredita que os jovens que fumam têm mais amigos?
Definitiva/provavelmente Sim 107 (45,7) 227 (40,2)
Os jovens correm risco de se prejudicar se fumam de 1-5 cigarros/dia?
Definitiva/provavelmente Sim 140 (59,8) 354 (62,8)
É seguro fumar somente durante um ou dois anos, se você deixar de fumar depois desse tempo?
Definitiva/provavelmente Sim 83 (35,5) 182 (32,3)
Se saísse algum novo tipo de cigarro com sustâncias que causem menos danos, você o usaria?
Definitiva/provavelmente Sim 89 (38,0)a 139 (24,6)
Você conhece cigarro eletrônico?
Já usou? 28 (12,0)a 17 (3,0)
Faz mal à saúde? 140 (59,8) 404 (71,6)a
Você conhece narguilé?
Já usou? 69 (29,5)a 30 (5,3)
Faz mal a saúde? 148 (63,2) 438 (77,7)a

Qui-quadrado/Fisher.

aSignificantemente maior do que o outro grupo.

Tabela 2 Respostas obtidas dos adolescentes referentes à exposição ao fumo de outras pessoas 

Questão Tentou fumar
Sim (N = 234) Não (N = 564)
Nos últimos sete dias, quantos dias você esteve no mesmo quarto com alguém que estava fumando cigarros?
Nenhum dia 126 (53,8) 435 (77,1)a
Nos últimos sete dias, quantos dias você esteve em algum quarto da SUA CASA, com alguém que fumava cigarros?
Nenhum dia 151 (64,5) 467 (82,8)a
Nos últimos sete dias, quantos dias você viajou em um carro com alguém que fumava cigarro?
Nenhum dia 197 (84,2) 515 (91,3)a
Acredita que o fumo do cigarro de outras pessoas lhe faz mal?
Definitiva/provavelmente Sim 132 (56,4) 320 (56,7)
Alguém que more com você fuma?
Sim 109 (46,6)a 139 (24,6)
Quantos de seus quatro melhores amigos fumam cigarros?
Nenhum 98 (41,9) 473 (83,9)a
Se algum dos teus melhores amigos lhe oferecer um cigarro, você o fumaria?
Definitiva/provavelmente Sim 98 (41,9)a 132 (23,4)
Quanto seria difícil para você recusar ou dizer "não" a um amigo que lhe ofereça um cigarro para fumar?
Muito difícil/difícil 99 (42,3) 210 (37,2)
Que percentagem de estudantes no seu curso tem fumado cigarro pelo menos uma vez ao mês?
Nenhum 88 (37,6) 344 (61,0)a
Até 20% (poucos) 65 (27,8) 124 (22,0)
21 a 60% (alguns/metade) 60 (25,6)a 74 (13,1)
> 61% (maioria/quase todos) 21 (9,0)a 22 (3,9)
Que frase descreve melhor as regras ou normas relacionadas com o fumo dentro da sua casa?
Não é permitido fumar dentro de casa. 80 (34,2) 267 (47,3)a
É permitido fumar em alguns lugares/algumas vezes 36 (15,4)a 39 (6,9)
Não é permitido fumar em nenhum lugar na minha casa 44 (18,8) 120 (21,2)
Não há regras relacionadas com o fumo na minha casa 74 (31,6)a 138 (24,5)
Algum de seus pais (ou cuidadores) lhe falou para não fumar cigarro?
Somente minha mãe (ou cuidadora) 47 (20,1)a 70 (12,4)
Somente meu pai (ou cuidador) 42 (17,9)a 39 (6,9)
Os dois 140 (59,8) 425 (75,4)a
Nenhum 5 (2,1) 30 (5,3)

Qui-quadrado/Fisher.

ap < 0,05 - significantemente maior do que o outro grupo.

O questionário é constituído por perguntas relacionadas ao fumo e ao ato de fumar, bem como sobre pensamentos e conhecimentos sobre o tabaco (tabela 1) e sobre a exposição ao fumo de outras pessoas (tabela 2), o status de membros da família e amigos e o conhecimento de hábitos perigosos de fumo.

Foi considerado experimentador do fumo o adolescente que fumou cigarro em algum momento da vida (Alguma vez tentou fumar um cigarro, mesmo que uma ou duas tragadas). Os adolescentes que fumaram cigarros em "um ou mais dias nos últimos trinta dias" foram considerados fumantes atuais conforme preconizado pelo Center for Disease Prevention and Control (CDC) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS).15

Análise estatística

Após a revisão dos questionários devolvidos, foram descartados 102 por erros de preenchimento e restaram 798. Os dados obtidos foram transferidos à planilha Excel para posterior análise estatística. Tomando-se o tabagismo como variável dependente, os resultados foram apresentados em relação à exposição ou não ao fumo e empregou-se o teste do qui-quadrado ou exato de Fisher. As variáveis identificadas como significantes (p < 0,05) foram lançadas em modelo de regressão logística (stepwise backward) e as significantes foram identificadas.

Resultados

Foram preenchidos de forma adequada 798 questionários, com igual distribuição segundo o gênero, uma vez que foram distribuídos em número igual para ambos os gêneros, em cada sala de aula.

De acordo com a resposta afirmativa à pergunta Alguma vez você tentou fumar um cigarro, mesmo que uma ou duas tragadas?, os adolescentes foram caracterizados como "tentaram fumar" (n = 234) e os com resposta não em nunca fumaram (n = 564).

A tabela 1 reúne as respostas dos adolescentes com relação ao ato de fumar. Referiram ter tentado fumar 29,3% (234/798) deles, 21,4% (50/234) referiram nunca ter fumado um cigarro inteiro, 14,5% começaram a fumar antes dos 12 anos e 64,1% após os 13.

Inquiridos sobre havia quanto tempo fumaram um cigarro inteiro, 11,5% referiram ter sido no último mês (tabela 1). Embora no mês anterior 6,8% (16/234) adolescentes referiram ter fumado a maioria/ou todos os dias, 13,2% (31/234) consumiram pelo menos um cigarro todos os dias e 32,1% (75/234) consumiram pelo menos cinco cigarros nos últimos 30 dias (tabela 1). Além disso, 32,1% (75/234) referiram ter tentado parar de fumar no último ano e 32,9% (77/234) acreditam que conseguem deixar de fumar se assim o desejarem (tabela 1).

A análise comparativa entre os dois grupos mostrou de modo significante que 80,3% dos que tentaram fumar referiram achar muito/pouco fácil deixar de fumar se desejarem, 32,9% (77/234) acreditam conseguir deixar de fumar se o quiserem e 20,9% (49/234) referiram querer parar de fumar.

Com relação aos pensamentos sobre o tabaco (tabela 1) entre os que tentaram fumar, houve relato significativamente maior de adolescentes que acreditam que fumarão no próximo ano. Entretanto, ambos os grupos acreditam que fumar cigarros faz com que sejam olhados por seus pares de forma melhor ou se sentem integrantes do grupo, que os fumantes têm mais amigos, apesar de achar que fumar um a cinco cigarros por dia não os coloca em risco e que fumar por um a dois anos seria seguro se parassem após esse período (tabela 1).

Inquiridos sobre o uso de um tipo novo de cigarro que contivesse substâncias que causassem menos danos, 38% dos que tentaram fumar e 24,6% dos que não fumaram afirmaram que os usariam (tabela 1). Entre os adolescentes que tentaram fumar houve relato significativamente maior de conhecimento de cigarros eletrônicos e sobre o narguilé quando comparados com os que nunca fumaram, é também maior o uso desses pelos que tentaram fumar (tabela 1). Em contrapartida, entre os que nunca fumaram houve maior relato de ambos (cigarro eletrônico e narguilé) serem prejudiciais à saúde (tabela 1).

Com relação à exposição ao fumo de outras pessoas, verificamos que os que tentaram fumar estiveram significativamente mais expostos à fumaça de tabaco de outras pessoas em casa, no quarto ou no carro (tabela 2). Apesar disso, não houve diferença significante entre os dois grupos com relação ao pensamento que o fumo de outras pessoas cause mal: 56,4% para os que tentaram fumar e 56,7% para os que nunca fumaram (tabela 2).

Os indivíduos que tentaram fumar foram significantemente mais expostos ao fumo por morar e conviver com fumantes, o que facilitaria aceitar a oferta de um cigarro por um amigo (41,9% para os que tentaram fumar e 23,4% para os que nunca fumaram) (tabela 2). Além disso, os que tentaram fumar acusam percentagem elevada de amigos de escola que fumam, lhes é permitido fumar em casa ou não há regras sobre restrição de fumo em 47% deles (tabela 2). Já entre os que nunca fumaram 47,3% afirmam ser proibido fumar dentro de casa. Em ambos os grupos esse controle é feito pela mãe e/ou pai (tabela 2).

As variáveis identificadas como significantemente associadas ao tabagismo após análise de regressão logística são apresentadas na tabela 3. Foram identificados como fatores de risco para o tabagismo: ter amigos fumantes, receber oferta de cigarro deles, além da facilidade de conseguir cigarros (tabela 3). Ter orientações dos pais sobre tabagismo, não ser exposto ao tabagismo no domicílio na última semana e conhecer os malefícios do cigarro eletrônico foram identificados como fatores de proteção (tabela 3). Já o fato de não ser permitido fumar no interior do domicílio apresentou valor limítrofe para significância.

Tabela 3 Fatores identificados como relacionados ao tabagismo na adolescência após análise de regressão logística 

Variáveis OR IC95% p
Tabagismo entre os melhores amigos 5,67 (2,06-7,09) < 0,001
Oferta de cigarro pelo melhor amigo 4,21 (2,46-5,76) < 0,001
Facilidade para conseguir cigarros 3,82 (1,22-5,41) < 0,001
Não é permitido fumar dentro de casa 0,89 (0,17-1,11) 0,075
Malefícios do cigarro eletrônico 0,88 (0,21-0,92) < 0,001
Malefícios do narguilé 0,78 (0,32-1,48) 0,127
Orientações dos pais sobre o tabagismo 0,67 (0,45-0,77) < 0,001
Sem tabagismo domicílio nos últimos sete dias 0,51 (0,11-0,79) < 0,001

OR, odds ratio; IC95%, intervalo de confiança de 95%.

Discussão

A adolescência é uma fase marcante na vida, na qual, em decorrência das descobertas, das inquietações, da necessidade de explorar o desconhecido e de se aventurar sem preocupações com as consequências, os adolescentes adotam comportamentos de risco, entre eles o consumo de cigarro.8 Todavia, nem todos os adolescentes que experimentam cigarros se tornam fumantes, mas a experimentação é o primeiro passo para uma futura adesão ao consumo regular dos produtos de tabaco.7

Na definição de fumante empregamos a preconizada pela OMS15 e verificamos ser 37,2% a prevalência de fumantes entre os adolescentes avaliados e que 13,2% o consumiram todos os dias, valor superior aos previamente observados em outras localidades.5 Essas taxas foram inferiores às observadas entre população geral de várias localidades do Brasil (22,3% a 29,3%).16 Entretanto, foram muito superiores aos observados em Porto Alegre: 7,4% entre homens e 9,1% entre mulheres.11

É interessante destacar que entre os adolescentes aqui avaliados 14,5% iniciaram o consumo de cigarro antes dos 12 anos e 64,1% o fizeram após os 13, à semelhança do previamente observado entre alunos da rede pública de ensino de 10 capitais brasileiras ao documentar que 11,6% dos alunos já haviam experimentado o cigarro entre os 10 e 12 anos,17 assim como no Estudo dos Riscos Cardiovasculares em Adolescentes brasileiros (Erica),11 no qual 30% dos jovens experimentaram fumar antes dos 12 anos e mais precocemente do que o observado por outros autores.18

A iniciação precoce no consumo de tabaco é importante fator de prognóstico para o adoecimento e deve ser evitada. O atraso de alguns anos no início do consumo pode reduzir, em quase o dobro, os riscos de danos provocados pelo tabaco à saúde.6 Por outro lado, demonstra-se que com o avançar da idade o adolescente que experimenta tabaco, e não interrompe o hábito, passa a configurar-se como consumidor de tabaco, consolida consequentemente o hábito de fumar.7

Os principais fatores associados ao fumo de cigarro pelos adolescentes aqui avaliados foram: ter amigos que fumam, receber oferta de cigarros deles, além de ter facilidade de conseguir cigarros (tabela 3). Apesar de, no Brasil, haver leis que dificultem o aceso e o consumo de cigarro por crianças e adolescentes, como o Estatuto da Criança e do Adolescente que proíbe a venda, o fornecimento ou a entrega de cigarros à criança ou ao adolescente,19 confirmamos pelos nossos dados que tal prática não tem sido respeitada e foi identificada como fator de risco para o tabagismo, uma vez que 80,3% dos adolescentes fumantes afirmaram conseguir cigarro "avulso" quando tiveram vontade de fumar (tabela 1).

Entretanto, não se pode onerar exclusivamente o comércio legal do produto, há que lembrar a obtenção do cigarro de forma clandestina, como ocorre com os que são fruto do contrabando e mesmo na obtenção de amigos e/ou parentes tabagistas. Além disso, fica claro o papel das redes sociais na influência e no reforço dos hábitos de fumar, cada vez mais estudado, e demonstra que ter amigos que fumam aumenta a tolerância a esses hábitos, assim como a possibilidade de adotá-los,20 identificada como o principal fator de risco para tabagismo entre os adolescentes aqui avaliados (tabela 3). Esses dados são corroborados por estudo americano ao observar que adolescentes não fumantes que têm amigos fumantes têm maior probabilidade de começar a fumar no futuro do que os sem amigos fumantes.21

É interessante notar que apesar de o hábito de fumar pelos pais ser mais frequente entre os adolescentes fumantes (tabela 2), não foi identificado como fator de risco para o tabagismo atual. Isso se contrapõe à observação de outros estudos que apontam influência crítica dos pais sobre o comportamento de fumar do adolescente. Sabe-se que as crianças são mais propensas a reproduzir os comportamentos e as atitudes de seus pais, que são considerados por eles como modelos. Além disso, os pais que fumam são mais propensos a permitir o fumo dentro de casa.22

Por outro lado, ter orientações dos pais sobre tabagismo, não ser exposto ao tabagismo no domicílio na última semana e conhecer os malefícios do cigarro eletrônico foram identificados como fatores de proteção (tabela 3). De certo modo todos esses fatores são derivados de educação sobre os malefícios do cigarro.

Embora tenha sido documentada redução nas taxas de tabagismo entre os pais, o mesmo não ocorreu entre os adolescentes.23 Isso sugere que as intervenções sobre o controle do tabagismo devem ser mais abrangentes e direcionadas a outras influências, tais como amigos,20 escola,9 mídia visual,24 ou sobre a aquisição de novos hábitos como o uso de narguilé25 ou de cigarros eletrônicos,26 esses últimos como importantes agentes iniciadores do tabagismo, e ao aumento da taxa de impostos.2

Assim, na confrontação dos resultados observados pelos estudos Erica11 e PeNSE-2012,27 a prevalência de experimentação foi de 18,5% versus 19,6%, respectivamente, inferiores à nossa de 29,3%, e de tabagismo atual 5,7% versus 5,1%, contra 13% entre os nossos adolescentes. Apesar disso, não podemos descartar a possibilidade de subnotificação por parte dos próprios adolescentes, apontada como comum em estudos sobre tabagismo. As taxas baixas observadas por esses estudos nacionais,11,27 possivelmente, são o reflexo do pioneirismo do país na condução de políticas abrangentes e de grande impacto na redução do consumo de tabaco entre jovens, como a legislação que instituiu a proibição de fumar em ambientes públicos fechados, a proibição da propaganda em todas as mídias, exceto em pontos de venda, e a proibição de descritores enganosos light ou ultra-light nos maços de cigarros.28

Na cidade de Uruguaiana (Região Sul) os resultados foram diferentes. Possivelmente o encontro de prevalências mais elevadas na região sul do país pode ser decorrente de essa região concentrar o cultivo e produção de fumo e também ter maior influência de migração europeia, que tradicionalmente apresenta prevalências elevadas de hábitos de fumo que podem ser transferidos através de gerações.11 A tudo isso deve ser acrescentada a facilidade de obtenção do cigarro de forma clandestina como ocorre com os que são fruto do contrabando, como recentemente declarado acontecer na cidade de Uruguaiana.29

É importante que os programas educacionais antitabagismo sejam incentivados dentro das escolas, para que os alunos recebam orientação e ajuda profissional, sobretudo para os que querem deixar de fumar.9,30 A procura por serviços de saúde especializados, fora do ambiente escolar, pode acarretar em aumento do absenteísmo escolar e ainda dificultar o acesso e a adesão dos adolescentes aos programas.

Os resultados aqui apresentados reforçam a necessidade do fortalecimento, quer em nível municipal ou estadual, de políticas públicas voltadas para a redução ou eliminação do contato das crianças e/ou adolescentes com o cigarro. O cumprimento das leis de restrições de venda e consumo de cigarro, o aumento da maioridade legal para sua obtenção, a promoção de estilos saudáveis de vida, o envolvimento da família em programas de prevenção dos hábitos de fumo, a majoração do preço, a implantação de programas antifumo dentro das escolas, bem como a garantia de tratamento adequado para os fumantes, são algumas das medidas que poderiam ser tomadas.

O pediatra, por ser o primeiro profissional a assistir a criança, conhece sua exposição ambiental, acompanha seu desenvolvimento, tem papel primordial como educador e promotor de hábitos saudáveis.

Embora as consequências do tabagismo sejam observadas na vida adulta, deve-se destacar que a redução ou a restrição do consumo na adolescência terá impacto educativo para a saúde e poderá diminuir a possibilidade de contato com outras restrições ou drogas ilícitas, por isso é fundamental que o médico esteja atento, bem informado e participe da elaboração de novas abordagens para o combate ao fumo, de forma integrada e interdisciplinar.

REFERÊNCIAS

1 Jha P, Peto R. Global effects of smoking, of quitting, and of taking tobacco. N Engl J Med. 2014;370:60-8.
2 World Health Organization WHO Report on the global tobacco epidemic. Geneva, Switzerland: WHO; 2015. Available from: [cited 31.01.16].
3 Boutayeb A, Boutayeb S. The burden of non communicable diseases in developing countries. Int J Equity Health. 2005;4:2.
4 Vigitel Vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico: percentual de fumantes no Brasil. Available from: [cited 26.01.16].
5 Warren CW, Jones NR, Eriksen MP, Asma S. Patterns of global tobacco use in young people and implications for chronic disease burden in adults. Lancet. 2006;367:749-53.
6 Barreto SM, Giatti L, Oliveira-Campos M, Andreazzi MA, Malta DC. Experimentation and use of cigarette and other tobacco products among adolescents in the Brazilian state capitals (PeNSE 2012). Rev Bras Epidemiol. 2014;17:S62-76.
7 Borraci RA, Mulassi AH. Tobacco use during adolescence may predict smoking during adulthood: simulation-based research. Arch Argent Pediatr. 2015;113:106-12.
8 Smalley SE, Wittler RR, Oliverson RH. Adolescent assessment of cardiovascular heart diseases risk factor attitudes and habits. J Adolesc Health. 2004;35:374-9.
9 Thomas RE, McLellan J, Perera R. Effectiveness of school-based smoking prevention curricular: systematic review and meta-analysis. BMJ Open. 2015;5:e006976.
10 Vigescola - Vigilância de tabagismo em escolares. Dados e fatos de 12 capitais brasileiras. Rio de Janeiro: INCA; 2004. Available from: [cited 20.06.15].
11 Figueredo VC, Szklo AS, Costa LC, Kuschnir MC, Silva TL, Bloch KV, et al. ERICA: smoking prevalence in Brazilian adolescentes. Rev Saude Publ. 2016;50:12.
12 IBGE-CIDADES. Available from: [cited 16.08.16].
13 California student tobacco survey; 2011-2012. Available from: [cited 16.08.15].
14 Grove A, Martin M, Eremenco S, McElroy S, Verjee-Lorenz A, Erikson P, et al. Principles of good practice for the translation and cultural adaptation process for Patient-Reported Outcomes (PRO) measures: report of the ISPOR Task Force for Translation and Cultural Adaptation. Value Heart. 2005;8:94-104.
15 Johnson NB, Hayes LD, Brown K, Hoo EC, Either KA. CDC National Health Report: leading causes of morbidity and mortality and associated behavioral risk and protective factors - United States, 2005-2013. MMWR Suppl. 2014;31:3-27.
16 INCA. A situação do tabagismo no Brasil: dados dos inquéritos do Sistema Internacional de Vigilância, da Organização Mundial da Saúde, realizados no Brasil, ente 2002 e 2009. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA); 2011. Available from: [cited 20.06.15].
17 Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas. V levantamento nacional sobre o consumo de drogas entre estudantes do ensino fundamental e médio da rede pública de ensino nas 27 capitais brasileiras; 2004. Available from: [cited 20.06.15].
18 Demir M, Karadeniz G, Demir F, Karadeniz C, Kaya H, Yenibertiz D, et al. The impact of anti-smoking laws on high school students in Ankara, Turkey. J Bras Pneumol. 2015;41:523-9.
19 Brasil, Presidência da República. Lei Federal n. 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial (da) República Federativa do Brasil; 1990. Available from: Sec.1:1. [cited 20.06.15].
20 Schaefer DR, Haas SA, Bishop NJ. A dynamic model of US adolescents' smoking and friendship networks. Am J Public Health. 2012;102:e12-e8.
21 Bricker JB, Peterson AV, Andersen MR, Rajan KB, Leroux BG, Sarason IG. Childhood friends who smoke: do they influence adolescents to make smoking transitions?. Addict Behav. 2006;31:889-900.
22 Scragg R, Laugesen M, Robinson E. Parental smoking and related behaviors influence adolescent tobacco smoking: results from the 2001 New Zealand national survey of 4th form students. N Z Med J. 2003;116:U707.
23 INCA. Número de fumantes no Brasil cai 20,5% em cinco anos. Available from: [cited 20.06.15].
24 Morgenstern M, Sargent JD, Engels RC, Scholte RH, Florek E, Hunt K, et al. Smoking in movies and adolescent smoking initiation: longitudinal study in six European countries. Am J Prev Med. 2013;44:339-44.
25 Ward KD. The water pipe: an emerging global epidemic in need of action. Tob Control. 2015;24:i1-2.
26 Leventhal AM, Strong DR, Kirkpatrick MG, Unger JB, Sussman S, Riggs NR, et al. Association of electronic cigarette use with initiation of combustible tobacco product smoking in early adolescence. J Am Med Assoc. 2015;314:700-7.
27 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE): 2012. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2013. Available from: [cited 30.06.15].
28 Levy D, de Almeida LM, Szklo A. The Brazil Sim Smoke policy simulation model: the effect of strong tobacco control policies on smoking prevalence and smoking-attributable deaths in middle income nation. PLoS Med. 2012;9:e1001336.
29 Garcia P. Caminhos do Contrabando. Argentina o novo corredor para o RS. Diario da Fronteira; 2015. Available from: [cited 21.06.15].
30 Thomas RE, McLellan J, Perera R. School-based programmes for preventing smoking. Cochrane Database Syst Rev. 2013, April;4:CD001293.