versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.10 Rio de Janeiro out. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320182310.24582016
The scope of this article is to estimate the prevalence and factors associated with alcohol use during pregnancy. It involved a cross-sectional study in a sample of 361 pregnant women in a reference service for gynecological and prenatal care. The data related to socio-demographic characteristics, alcohol use and potential associated factors were collected through face-to-face interviews. Poisson regression with robust variance was used to identify factors associated with the outcome analyzed. The consumption of alcohol in the sample was 17.7% (95% CI: 95% CI: 14.1% to 22.0%). A history of pre-gestational or gestational diabetes, suicidal ideation and tobacco use in the last 30 days was associated with alcohol use during pregnancy (p < 0.05). The study showed a high prevalence of alcohol use during the current pregnancy and its association with important factors. Actions such as screening for alcohol and advice on problems associated with the use of this substance, especially during the prenatal period, can contribute to effective reduction of alcohol use in pregnant women and related maternal and fetal injuries.
Key words: Alcohol consumption; Pregnant women; Risk factors
O uso de álcool durante a gestação representa um grave problema de saúde pública. Esse comportamento tem sido associado a desfechos materno-fetais, como a restrição do crescimento intrauterino, descolamento de placenta, abortos e anomalias congênitas (por exemplo: microcefalias e microftalmia)1,2. A síndrome alcoólica fetal (SAF) corresponde a uma das principais consequências da exposição do feto ao álcool, sendo caracterizada por deficiência no crescimento, disfunções no desenvolvimento do sistema nervoso, entre outras alterações3. Além disso, crianças expostas ao álcool no período fetal apresentam maiores chances de desenvolvimento de transtornos mentais (transtorno comportamental relacionado ao uso de substâncias psicoativas e depressão) e comportamentais (personalidade antissocial e hiperatividade) na adolescência e vida adulta1,2,4,5.
Alguns estudos têm mostrado elevadas taxas de uso de álcool durante a gestação em várias localidades geográficas. Em países desenvolvidos, investigações têm mostrado prevalências de 6,0% na Suécia6, 10,2% nos Estados Unidos da América (EUA)7, 10,8% no Canadá8, 40,0% na Austrália, 56,0% na Nova Zelândia e 75,0% na Inglaterra9. Estimativas do uso de álcool em gestantes em países em desenvolvimento são escassas. No entanto, alguns estudos têm demonstrado altos índices na África do Sul (34,9%)10, Uruguai (63,1%)11 e Argentina (75,2%)12. No Brasil, um estudo multicêntrico conduzido em 5.539 gestantes de ambulatórios de hospitais públicos de Manaus, Fortaleza, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre estimou uma prevalência de uso de álcool durante a gestação de 34,4%13.
Uma rede complexa de variáveis sociodemográficas, comportamentais e familiares é associada ao uso de álcool na gestação. Os fatores sociodemográficos com maior intersecção com esse comportamento incluem idade mais elevada e status socioeconômico desfavorável (renda e escolaridade baixa)13,14. Determinantes comportamentais são representados, sobretudo, pelo uso simultâneo de tabaco e/ou drogas ilícitas15,16. Variáveis familiares incluem antecedentes familiares de transtornos mentais17 e/ou com história de uso de álcool e relações familiares disfuncionais4. Além disso, fatores como presença de transtornos mentais, ideação suicida18,19, gravidez não planejada20, infecções sexualmente transmissíveis (IST) prévias21 e exposição a situações de violência1 têm sido associados ao consumo de álcool durante a gestação.
No Brasil, são poucos os estudos sobre a epidemiologia do uso de álcool durante a gestação, sendo a maioria, conduzidos na região sudeste do País22-25. Além disso, há uma lacuna na literatura sobre os preditores de uso de álcool em gestantes, especialmente no Brasil, dados que podem subsidiar políticas e ações de prevenção e controle dessa substância nessa população. Assim, o presente estudo objetivou estimar a prevalência e os fatores associados ao uso de álcool durante a gestação.
Entre maio de 2014 e junho de 2015, um estudo de corte transversal foi conduzido em uma amostra não probabilística de gestantes atendidas em uma unidade de referência em assistência ginecológica e pré-natal de Goiás, Região Centro-Oeste do Brasil. Foram incluídas gestantes em qualquer idade gestacional e que se encontravam em acompanhamento de pré-natal na instituição do estudo. Mulheres em estado aparente de confusão mental ou com transtornos mentais que inviabilizasse sua participação foram excluídas.
Para o cálculo amostral, considerou-se o número de gestantes cadastradas na instituição durante o período de coletas de dados. Assim, o número necessário para compor a amostra foi de 293 mulheres, considerando uma população de 566 gestantes registradas, poder estatístico de 80% (β = 20%), nível de significância de 95% (α = 0,05), efeito de desenho de 3.0, 30% de possíveis para possíveis perdas amostrais e uma prevalência de uso de álcool em gestantes de serviços de atenção primária no Brasil de 6,1%26.
As gestantes foram recrutadas na unidade de assistência integral à saúde da mulher após anuência do diretor responsável. Inicialmente, todas as mulheres potencialmente elegíveis foram convidadas a participar do estudo antes das consultas pré-natais agendadas até composição da amostra necessária. A seguir, foram entrevistadas, face a face, em local privativo na instituição, por profissionais de saúde previamente treinados. Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido, após elucidação dos objetivos, métodos, benefícios e possíveis riscos da pesquisa. Mulheres com idade inferior a 18 anos, além da obtenção do consentimento dos pais ou responsáveis, assinaram o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido.
Utilizou-se um instrumento estruturado composto de características sociodemográficas e gestacionais, consumo de álcool durante a gestação atual e potenciais fatores associados ao evento de interesse. O questionário foi elaborado por especialistas em saúde mental e baseado em variáveis descritas e validadas em estudos semelhantes1,5,6,8,11,13,18,20,24,26.
A variável dependente analisada foi o autorrelato uso de álcool na gestação atual, categorizado em não ou sim. As variáveis independentes analisadas foram: idade (anos), escolaridade (anos), idade gestacional (semanas), estado civil (solteira versus [vs.] casada), antecedentes familiares de alcoolismo (não vs. sim), presença de hipertensão arterial sistêmica (HAS) e/ou diabetes pré-gestacional ou gestacional (não vs. sim), gravidez atual planejada (não vs. sim), antecedente pessoal de transtorno mental (não vs. sim), ideação suicida nos últimos 30 dias (não vs. sim), antecedente de aborto (não vs. sim), uso de tabaco nos últimos 30 dias (não vs. sim), antecedentes de IST no último ano (não vs. sim) e disfuncionalidade familiar (não vs. sim).
As variáveis: presença de IST na vida, aborto prévio e presença de doenças crônicas não transmissíveis (HAS e diabetes) foram verificadas no cartão da gestante ou em caso de ausência desses dados por meio do autorelato. A presença de disfuncionalidade familiar foi verificada por meio do instrumento APGAR de família, recomendado pela Organização Mundial de Saúde27 e Ministério da Saúde28, e validado previamente no Brasil29,30. Esse instrumento, desenvolvido por Smilkstein31 em 1978 permite um diagnóstico da disfuncionalidade familiar por meio de cinco perguntas relacionadas à satisfação do indivíduo sobre a família sobre os seguintes aspectos: adaptação, companheirismo, desenvolvimento e capacidade resolutiva. Para cada item, um escore que varia de zero a 10 pontos é atribuído escores que variam de zero a três pontos, gerando um escore total que varia de zero a 10 pontos. Pontuação inferior a sete sugere presença de disfuncionalidade familiar.
Os dados foram analisados no programa STATA, versão 12.0. Prevalência de consumo de álcool na gestação atual foi estimada com IC 95%. Alfa de Crombach foi utilizado para avaliar a confiabilidade do instrumento APGAR de família. Análise de regressão de Poisson com variância robusta32 foi utilizada para analisar os fatores associados ao desfecho investigado. Os testes qui-quadrado (χ2) e exato de Fisher foram utilizados para verificar as diferenças entre as proporções e o teste t de student para comparar médias na análise bivariada. A seguir, variáveis com p < 0,10 foram submetidas ao modelo de regressão múltipla. Valores de p < 0,05 foram considerados estatisticamente significantes.
Esse estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Goiás e respeitou os princípios éticos da Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde.
Um total de 361 gestantes foi recrutado. Dessas, 27 recusaram a participar do estudo, resultando em uma amostra de 334 gestantes investigadas (taxa de resposta de 92,5%). As médias de idade, escolaridade e idade gestacional foram de 24,4 anos (desvio padrão [DP] + 5,9), 10,4 anos (DP + 3,1) e 21,7 semanas (DP + 11,3), respectivamente (Tabela 1).
Variáveis | Totala | Uso de álcool na gestação atual | p | |
---|---|---|---|---|
| ||||
Positivo | % (IC 95%)c | |||
Idade (anos) | 24,4 (5,9) | 24,2 (6,7) | 0,91 | |
Escolaridade (anos) | 10,4 (3,1) | 10,1 (3,0) | 0,49 | |
Idade gestacional (semanas) | 21,7 (11,3) | 23,7 (11,8) | 0,61 | |
Estado civil | ||||
Casada | 257 | 45 | 17,5 (13,4-22,6) | 0,89 |
Solteira | 77 | 14 | 18,2 (11,2-28,2) | |
Antecedente familiar de alcoolismo | ||||
Não | 184 | 27 | 14,7 (10,3-20,5) | 0,11 |
Sim | 150 | 32 | 21,3 (15,5-28,6) | |
Hipertensão Arterial Sistêmica | ||||
Não | 315 | 56 | 17,8 (14,0-22,4) | 1,00 |
Sim | 19 | 3 | 15,8 (5,5-37,6) | |
Diabetes | ||||
Não | 323 | 54 | 16,7 (13,0-21,2) | 0,01 |
Sim | 11 | 5 | 45,5 (21,3-72,0) | |
Gravidez atual planejada | ||||
Sim | 134 | 24 | 17,9 (12,3-25,3) | 0,94 |
Não | 199 | 35 | 17,6 (12,9-23,5) | |
Antecedente pessoal de transtornos mentais | ||||
Não | 293 | 51 | 17,4 (13,5-22,2) | 0,74 |
Sim | 41 | 8 | 19,5 (10,3-34,0) | |
Antecedente de ISTb | ||||
Não | 323 | 54 | 16,7 (13,0-21,2) | 0,01 |
Sim | 11 | 5 | 45,5 (21,3-72,0) | |
Antecedentes de aborto | ||||
Sim | 36 | 10 | 27,8 (16,0-44,0) | 0,09 |
Não | 298 | 49 | 16,4 (12,7-21,1) | |
Disfuncionalidade familiar | ||||
Não | 261 | 40 | 15,3 (11,5-20,2) | 0,03 |
Sim | 72 | 19 | 26,4 (17,6-37,6) | |
Ideação suicida | ||||
Não | 303 | 46 | 15,2 (11,6-19,7) | < 0,001 |
Sim | 31 | 13 | 41,9 (26,4-59,2) | |
Uso de tabaco | ||||
Não | 282 | 29 | 10,3 (7,3-14,4) | < 0,001 |
Sim | 52 | 30 | 57,7 (44,2-71,1) |
Nota: variáveis quantitativas são apresentadas como médias e desvio-padrão; a.Número de respostas válidas; b. Infecções Sexualmente Transmissíveis; c. Intervalo de confiança de 95%.
Do total de participantes, 68,6% (IC 95%: 63,4-73,3%) fizeram uso de álcool alguma vez na vida e 17,7% (IC 95%: 14,1-22,0%) reportaram uso de álcool na gestação atual. As taxas de gestantes com antecedentes de HAS, diabetes, de IST e de aborto foram de 5,7%, 3,3%, 3,3%, 11,0%, respectivamente. Ideação suicida e uso de tabaco nos últimos 30 dias foi relatado por 9,3% e 15,5% das mulheres, respectivamente. Aproximadamente 19,9% das gestantes apresentaram escores compatíveis com a disfuncionalidade familiar no APGAR de família. Esse instrumento apresentou boa confiabilidade na amostra investigada (Alfa de Crombach: 0,851).
A Tabela 1 mostra a análise bivariada dos fatores associados ao consumo de álcool na gestação atual. Verificou-se maior proporção de uso de álcool em gestantes com autorrelato de diabetes gestacional ou pré-gestacional (p = 0,01), com antecedente de IST (p = 0,01), com disfuncionalidade familiar (p = 0,03), com ideação suicida nos últimos 30 dias (p < 0,001) e que faziam uso de tabaco (p < 0,001). Essas variáveis e antecedente de aborto (p = 0,09) foram incluídas no modelo de regressão múltipla.
Em análise multivariável, os fatores associados ao uso de álcool na gestação atual foram: idade (RP ajustada [RPaj]: 1,06; p = 0,03; diabetes (RPaj: 1,24; p = 0,03), ideação suicida (RPaj: 1,19; p = 0,03) e uso de tabaco (RPaj: 1,37; p < 0,001) (Tabela 2).
Variáveis | Razão de prevalência | p | |
---|---|---|---|
| |||
Não ajustada (IC 95%)a | Ajustada (IC95%)a | ||
Idade (anos) | 1,06 (0,99-1,13) | 1,06 (1,00-1,13) | 0,03 |
Diabetes | 1,24 (1,01-1,53) | 1,24 (1,01-1,51) | 0,03 |
Antecedente de IST | 1,24 (1,01-1,53) | 1,11 (0,87-1,41) | 0,40 |
Antecedente de aborto | 0,91 (0,80-1,02) | 0,90 (0,81-1,00) | 0,05 |
Disfuncionalidade familiar | 1,09 (1,00-1,19) | 1,00 (0,92-1,09) | 0,89 |
Ideação suicida | 1,23 (1,08-1,39) | 1,19 (1,04-1,35) | 0,03 |
Uso de tabaco | 1,42 (1,30-1,56) | 1,37 (1,24-1,52) | < 0,001 |
*Modelo ajustado por idade, antecedente familiar de alcoolismo, diabetes, antecedentes de aborto, APGAR de família, ideação suicida e uso de tabaco na gestação atual; a. Intervalo de confiança de 95%
O presente estudo analisou a prevalência e fatores associados ao uso de álcool em uma amostra de gestantes, contribuindo para o conhecimento dos determinantes do consumo dessa substância nessa população. Do nosso conhecimento, essa investigação apresenta os primeiros dados sobre a epidemiologia do álcool em gestantes de Goiás, Região Centro-Oeste do Brasil. Os resultados evidenciaram elevada prevalência de uso de álcool durante a gestação e sua associação com diabetes, ideação suicida e consumo de tabaco.
A prevalência do uso de álcool durante a gestação (17,7%; IC 95%: 14,1-22,0%) foi superior à estimada em gestantes dos EUA (10,2%)7 e Canadá (10,8%)8. Além das diferenças metodológicas e amostragem entre os estudos, alguns fatores como características sociodemográficas, nível de desenvolvimento econômico, efetividade das políticas públicas de saúde e disparidades culturais podem contribuir para desigualdades na epidemiologia do uso dessa substância entre os países33. Em geral, em países mais desenvolvidos como os EUA, o consumo de álcool é visto de forma mais negativa do que em culturas dos países da América Latina34, o que pode contribuir para menores índices de uso dessa substância.
No Brasil, a prevalência do uso de álcool na gestação varia conforme localização geográfica. Estudos evidenciam taxas de 6,1% em Maringá (Paraná)26, 22,3% em São Luís (Maranhão)35, 23,1% em Uberlândia (Minas Gerais)24, 7,4% a 40,6% no Rio de Janeiro36,37 e 23,0% a 33,3% em São Paulo23,25. Assim, a prevalência encontrada em Goiás encontra-se dentro da variação evidenciada em estudos conduzidos em gestantes de outras regiões do País.
Nessa investigação, o uso de tabaco foi associado ao consumo de álcool na gestação, assim como evidenciado na literatura nacional e internacional12,23,38. De fato, mulheres que fazem uso regular de tabaco na gravidez possuem maior vulnerabilidade ao consumo de álcool, o que potencializa o risco de desenvolvimento de eventos adversos gestacionais e efeitos negativos para o feto1,38. O uso simultâneo de tabaco e álcool pode ser explicado pela legalidade e ampla disponibilidade dessas substâncias39, valores e significados culturais similares7 e fatores de risco comuns12,38. Além disso, estudos têm identificado moléculas cerebrais, como neurotransmissores e receptores de nicotina, que fazem interação com ambas substâncias e medeiam o efeito e a sensibilidade dessas drogas no cérebro40.
Verificou-se associação entre ideação suicida nos últimos 30 dias e uso de álcool. Mulheres no período gravídico sofrem mudanças psicológicas, físicas e hormonais, tornado-as vulneráveis a agravos psiquiátricos41 e consumo de substâncias psicoativas, fatores de risco para ideação suicida. O uso de álcool agrava traços na personalidade negativos (por ex.: aumento da impulsividade e agressividade), propicia eventos negativos na vida (por ex.: separação conjugal e isolamento social) e aumenta o risco de comorbidades psiquiátricas (por ex.: depressão), o que aumenta o risco de comportamentos suicidas42,43. Uma recente meta-análise mostrou que desordens relacionadas ao uso de álcool apresentam forte associação com ideação suicida (Odds ratio [OR]: 1,86), tentativas de suicídio (OR: 3,13) e suicídios (OR: 2,59)44. Nesse contexto, estratégias que visem à redução do uso de álcool na gestação podem ter impacto, além da diminuição de agravos materno-fetais associados, na redução de taxas de comportamentos suicidas nessa população.
No presente estudo, autorrelato de diabetes gestacional ou pré-gestacional foi associado ao uso de álcool na gestação atual. Aproximadamente 90% dos casos novos de diabetes tipo 2 podem ser atribuídos a fatores relacionados ao estilo de vida, incluindo o consumo de álcool45. Apesar da natureza transversal não permitir o estabelecimento da relação de causa e efeito, o uso e abuso de álcool representa um dos principais fatores de risco para diabetes mellitus, uma vez que tem efeito no pâncreas, interferindo no sistema metabólico e levando à resistência insulínica46. Nesse contexto, intervenções intensivas que visem promoção de estilo de vida saudável, incluindo diminuição do uso do álcool, pode retardar ou impedir a ocorrência de diabetes45, doença com graves conseqüências materno-fetais.
Nessa investigação, IST não permaneceu associado ao uso de álcool após ajuste por outras variáveis. Dados da literatura apontam uma forte associação entre consumo de álcool e IST21,47. Apesar da natureza transversal do estudo não permitir inferências causais, o uso dessa substância potencializa o risco de aquisição dessas infecções, pois aumenta a chance de comportamentos de risco, como uso inconsistente do preservativo e diminuição da capacidade de negociação do uso do mesmo, além de contribuir para aumento da susceptibilidade biológica do organismo à IST21. Por outro lado, a um diagnóstico de IST pode contribuir para aumento da taxa de uso de álcool durante a gestação, pois gera estresse relacionado à exposição da divulgação da doença, transmissão de IST ao feto e medo da morte48.
Essa investigação encontrou associação entre disfuncionalidade familiar e uso de álcool na gestação na análise bivariada, porém essa associação não se manteve após ajuste por outras variáveis. Há uma lacuna na literatura nacional e internacional sobre a relação entre a disfuncionalidade familiar e consumo de álcool em gestantes, utilizando instrumentos validados como o APGAR de família, sugerindo a necessidade de estudos futuros para verificar essa intersecção. No entanto, algumas evidências mostram que indivíduos pertencentes a famílias disfuncionais e com problemas familiares (por exemplo: conflitos parentais) apresentam maiores chances de envolvimento em comportamentos de risco para a saúde, incluindo o uso de substâncias49. Por exemplo, no México, um estudo conduzido em mulheres em idade reprodutiva encontrou uma associação entre uso de álcool e disfuncionalidade familiar no APGAR de família (OR: 2,98; p = 0,001)50.
Esse estudo apresenta algumas limitações que devem ser levadas em consideração na interpretação dos seus resultados. A natureza transversal da investigação não permite estabelecimento de relações de causa e efeito entre o evento e variáveis investigadas. Desenhos longitudinais são mais indicados para verificar relação entre preditores e o consumo de álcool em gestantes, além de possibilitar o acompanhamento de tendências ao longo do tempo51. Os dados foram autorrelatados, passíveis de vieses de resposta e memória. A prevalência pode estar subestimada, uma vez que a medida do desfecho foi baseada no autorrelato52 e o fato do uso de álcool ser socialmente menos aceito em mulheres. No entanto, a detecção dessa substância em exames laboratoriais de sangue e/ou urina é muito difícil e limitada, por causa da meia-vida curta do álcool, podendo, também, subestimar os resultados53. Os resultados não podem ser generalizados para gestantes de outras localidades geográficas, pois só considerou gestantes atendidas em um serviço de assistência ginecológica e pré-natal. Apesar das limitações, o estudo mostrou fatores com estreita relação ao uso de álcool, podendo contribuir para estratégias de redução e agravos relacionados ao uso dessa substância em gestantes.
Em conclusão, o estudo apontou elevada prevalência de uso de álcool na gestação atual. Além disso, verificou-se associação entre diabetes pré-gestacional ou gestacional, ideação suicida e uso de tabaco. A intersecção entre uso de álcool e variáveis como diabetes e ideação suicida em gestantes necessita de estudos mais robustos e devem ser alvos de investigações mais detalhadas, uma vez que existem poucos estudos sobre essa relação. Além disso, o instrumento APGAR de família deve fazer parte da avaliação em gestantes, pois a disfuncionalidade pode funcionar como mediador do uso de álcool nessa população.
Esse estudo apresenta importantes implicações na prevenção do uso de álcool em gestantes. Sabe-se que não há um nível seguro do uso de álcool em qualquer fase da gestação, devendo-se evitar qualquer tipo de álcool nesse período7. Assim, sugere-se o rastreio do padrão de consumo de álcool entre mulheres em idade fértil como rotina na área de saúde da mulher, planejamento familiar e pré-natal, com objetivo de verificar situação epidemiológica e traçar medidas de intervenção. Além disso, ações como aconselhamentos sobre os problemas associados ao uso dessa substância principalmente no pré-natal podem contribuir para redução efetiva ou anulação do uso de álcool em gestantes e agravos materno-fetais relacionados. Em especial, considera-se que os serviços de atenção primária a saúde e de assistência pré-natal possuem papel impar nessas intervenções, incluindo triagem de consumo em todas as gestantes cadastradas, educação em saúde e encaminhamentos para serviços especializados. Por fim, determinantes associados ao consumo de álcool na gestação devem ser levados em consideração por profissionais de saúde na assistência integral às gestantes.