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“Previne Brasil”: bases da reforma da Atenção Primária à Saúde

“Previne Brasil”: bases da reforma da Atenção Primária à Saúde

Autores:

Erno Harzheim

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.25 no.4 Rio de Janeiro abr. 2020 Epub 06-Abr-2020

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232020254.01552020

Em novembro de 2019, o Ministério da Saúde lançou uma nova política de financiamento da Atenção Primária à Saúde (APS), chamada “Previne Brasil”, com objetivo de fortalecer os atributos essenciais e derivados da APS propostos por Starfield1. O Previne Brasil busca sincronia entre o resgate aos princípios historicamente estabelecidos da APS e a modernização organizacional que o século XXI e as mudanças sociais e culturais nos impõem. Com este movimento pretendemos enfrentar os desafios não resolvidos da APS no SUS e inovar na organização dos serviços, mantendo, com solidez, os princípios que regem nosso Sistema Único de Saúde (SUS) e a APS. O texto apresentado por Massuda sugere equivocadamente que o Previne Brasil2, “(i) parece ter objetivo restritivo”, “(ii) deve limitar a universalidade”, “(iii) aumentar as distorções no financiamento”, “(iv) induzindo a focalização de ações de APS no SUS”, (v) “reverte a redução das desigualdades na saúde”. Ora, o conjunto de estratégias planejadas e oficializadas ao longo de 2019 - entre as quais o Previne Brasil é a mais importante -, caminham em direção diametralmente oposta. Propomos a radicalização dos atributos da APS, radical como raiz, como fundamento e origem, radical como Reforma Estruturante. Assim, apresentamos a seguir os cinco pontos centrais que marcam esta nova direção para o fortalecimento da APS.

O primeiro ponto se refere ao objetivo de ampliação de recursos para aumentar o número de equipes de Saúde da Família (eSF) e os tipos de equipes financiadas. Pela primeira vez, as equipes de atenção primária (eAP) passaram a receber recursos federais, ao contrário das antigas EAB, que existiam no papel, mas que na prática não possuíam recursos federais para sua implementação. Entretanto, o município só pode credenciar as eAP com manutenção da cobertura de ESF. Isto é, é impossível ter retrocesso na cobertura de Saúde da Família. Além disso, há incentivos e ações sistemicamente propostas que só podem ser aplicadas em equipes de Saúde da Família, como o incentivo para residência em Medicina de Família e Comunidade, Enfermagem de Família e Comunidade e Odontologia de Família e Comunidade. Outra ação específica para as ESF é o programa de provimento e formação de especialistas em medicina de família e comunidade, os Médicos pelo Brasil. Em números, temos um total de equipes de Saúde da Família financiadas em dezembro/2019 de 43.458, e em janeiro/2020, de 43.448. E mais 1.192 eAP que passaram a ser pagas em 2020. A primeira competência financeira com base cadastral de 2020 financiará em torno de 45.700 equipes de Saúde da Família (eSF), uma ampliação de 6% em relação a dezembro de 2019. Portanto, não há restrição na implementação do número de equipes; ao contrário, no planejamento federal até 2022, a meta é se atingir 50.000 equipes, ou seja, manter e acelerar a expansão das eSF no Brasil3.

O segundo ponto se associa à questão da universalidade. Em nenhum Sistema Universal de Saúde com base na Atenção Primária à Saúde, a capitação - proposta como parte do atual financiamento federal - limitou a universalidade. Basta ver a realidade de Portugal que também utiliza como parte de seu financiamento capitação ponderada e que está perto de atingir 100% de população coberta por médicos de família4,5. Ao contrário, a capitação ponderada expande a responsabilização do sistema de saúde pelas pessoas, permitindo melhor conhecimento e acompanhamento longitudinal das mesmas ao financiar o cuidado ofertado às pessoas efetivamente adscritas às equipes e favorece de forma transparente o planejamento e a alocação de recursos para as equipes de atenção primária. Pelo Sistema e-Gestor6, estão disponíveis as informações de cadastro de cada município e de cada equipe, com a identificação individual de todas as pessoas cadastradas, assim como os indicadores de saúde que servirão para balizar o pagamento por desempenho. Esses dados estão disponíveis e transparentes em nível nacional, regional e estadual para todos os cidadãos. Massuda afirma que a capitação ponderada coloca em risco a universalidade. Cabe aqui uma pergunta, o PAB Fixo, instituído no final de 1996, garantiu a universalidade de fato e nos fez alcançar uma cobertura de 100% de atenção primária? O que propomos é o retorno à origem da APS, ao princípio inerente da atenção primária e da medicina de família e comunidade: centralização nas pessoas, responsabilização real pelos indivíduos e comunidades, em seu contexto e sua singularidade.

O terceiro ponto, “aumentar a distorção do financiamento”, justamente o modelo misto – com capitação, pagamento por desempenho e incentivos específicos – equilibra o financiamento, reduz as distorções e produz equidade. Fato é que 4.472 municípios terão potencial de R$ 3,2 bi de recursos adicionais em 2020 comparado com 2019; enquanto 1.098 municípios receberão por 12 meses em 2020 o valor da maior competência financeira observada em 2019, aumentando também seus repasses. Dito de outra forma, serão repassados anualmente, divididos em 12 competências mensais, R$ 50,50 para cada pessoa cadastrada nas equipes7. Anteriormente, por meio do PAB Fixo, eram repassados no máximo R$ 28,00 por pessoa por ano. Esse valor de R$ 50,50 pode chegar ainda a R$ 131,30 anuais, de acordo com as características de vulnerabilidade da pessoa e do município em que ela vive. Com a definição desse valor em janeiro de 20207, aumentamos em quase R$ 3,5 bilhões o potencial de ganho dos municípios em 2020, caso cadastrem e se responsabilizem pela totalidade do parâmetro populacional por equipe, especialmente se houver maior esforço e dedicação em identificar as pessoas mais vulneráveis, como crianças menores de cinco anos, idosos maiores de 65 anos ou beneficiários de programas sociais (Bolsa-Família, Benefício de Prestação Continuada, benefício da Previdência Social até dois salários mínimos).

O quarto ponto de crítica de Massuda, “focalização”, é, ao contrário, o caminho para a equidade no sentido individual e contextual (município). Repassar mais recursos para equipes e municípios que se responsabilizam por extremos de idade que necessitam de um maior cuidado em saúde, repassar mais recursos para populações socioeconomicamente vulneráveis e repassar mais recursos para municípios mais pobres e remotos contribui para a equidade, mantendo o princípio da universalidade. Só teremos redução de desigualdades se priorizarmos a busca da equidade. E esta, justamente, é ofertar mais recursos àqueles que mais precisam. Quem seria adversário de uma Reforma que multiplica por até 2,6 vezes o custeio da Atenção Primária para aquelas pessoas e municípios que mais necessitam?

O quinto ponto de crítica, “reverter a redução das desigualdades na saúde”, não é aquilo que se espera, dada a ampliação do acesso, com o aumento de pessoas cadastradas e sob efetivo cuidado com base em cinco critérios individuais de vulnerabilidade, além do de vulnerabilidade de base municipal. Só é possível reduzir desigualdades com ganhos reais de saúde para todos se há empenho na redução das iniquidades. A partir de 2019, o Ministério da Saúde passou a fazer a gestão das listas de cadastros duplicados e linkages de bases de dados por individuo, algo inédito na história da APS no Brasil, e muito comum na rotina dos países com APS forte. Em agosto de 2018, o cadastro era de 81 milhões de pessoas vinculadas às eSF, e aproximadamente 50 milhões de cidadãos potencialmente cobertos pela Estratégia Saúde da Família (ESF) estavam fora desse cadastro. Dessas 50 milhões de pessoas, cerca de 30 milhões encontravam-se nas situações de maior vulnerabilidade social e econômica. Após o anúncio do Previne Brasil, no final de 2019, o cadastro das pessoas já havia subido em 26%, saltando para 103 milhões de brasileiros. Desse modo, o cadastro e a capitação ponderada serão os maiores responsáveis por impulsionar o acesso equânime dos brasileiros à APS.

Além disso, Starfield já afirmava que fortalecer a APS é ampliar a equidade. Várias outras estratégias sistêmicas de fortalecimento da APS estão em curso no Ministério da Saúde. A primeira foi a criação da Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS), demonstrando uma clara prioridade política pela APS. Na sequência, a remoção de obstáculos para o acesso de primeiro contato foi enfrentada com o Programa “Saúde na Hora”8, ampliação do acesso e horários de atendimento que já alcançou 1.455 unidades de saúde, propiciando acesso à APS para pessoas que antes só conseguiam atendimento nas UPAs e emergências hospitalares pela incompatibilidade de sua rotina com os horários das unidades de saúde da família. Para apoiar a coordenação do cuidado, maior informatização da APS e recursos para integração de dados clínicos pelos Programas ConecteSUS (com custeio para infomatização) e InformatizaAPS9,10. Já a fragilidade clínica e a necessidade de ampliação do escopo profissional será fortalecida com a publicação ainda em 2019, da Carteira de Serviços de Atenção Primária à Saúde11, e a seguir com as linhas de cuidado e dos protocolos clínicos para a Enfermagem. Além disso, o Ministério da Saúde oferta um novo incentivo financeiro para o padrão-ouro na formação de especialistas em Medicina de Família e Comunidade, Enfermagem de Família e Comunidade e Odontologia na APS12. Este incentivo é destinado às vagas das equipes de Saúde da Família ocupadas por residentes médicos, enfermeiros ou dentistas afiliados a Programas de Residência Médica e Multiprofissional aprovados pelo Ministério da Educação. Por fim, um das principais estratégias para dar conta da insuficiência de profissionais médicos qualificados e apoio a áreas remotas, respeitando o direito de livre arbítrio dos profissionais, é o Programa Médicos pelo Brasil (MPB)13.

O modelo de financiamento vigente até 2019

O modelo de financiamento vigente até 2019 contribuiu, após a esperada expansão da ESF até meados da década passada, para impedir a ampliação do número de pessoas sob efetiva responsabilidade das equipes. Esse modelo estava esgotado e apresentava limitações quanto à capacidade de induzir respostas primordiais aos desafios do sistema de saúde e da APS, tais como a efetivação do acesso e a produção de melhores resultados em saúde. Ele era formado por vários componentes criados em momentos distintos e com pequena integração no cuidado. O primeiro era composto em parte por uma parcela fixa, calculada a partir do tamanho populacional do município, o chamado “PAB Fixo”. Este recurso, em torno de R$4 bilhões anuais, era repassado sem nenhuma exigência auditável de contrapartida do município, uma vez que não havia registro da vinculação de pessoa a pessoa, nem critério de homogeneidade na fiscalização de sua aplicação na atenção primária pelos órgãos de controle e nem, muito menos, necessidade de ampliar serviços de APS.

O segundo componente do modelo de financiamento até então vigente era o chamado “PAB Variável”, um pout-pourri de incentivos financeiros repassados de acordo com o credenciamento e mínima atividade dos mais diversos tipos de equipes de ESF, Consultório na Rua, equipes prisionais, etc. Para receber o “PAB Variável”, o município necessitava credenciar a equipe junto à SAPS, manter o cadastro desta equipe no SCNES completo, e informar alguma atividade da equipe, mesmo que fosse apenas um procedimento ao mês, sem nenhuma exigência relacionada ao numero de pessoas sob responsabilidade da equipe. No final da década de 1990 e princípio da de 2000, esse modelo cumpriu um importante papel inicial de descentralização das ações e serviços ambulatoriais de saúde para municípios que anteriormente não possuíam capacidade instalada, conforme analisaram detalhadamente Costa e Pinto14. Contudo, com o passar das duas últimas décadas (1998-2018), o PAB variável passou a concentrar a maior parte dos recursos federais alocados na APS, apesar de apresentar limitações como o excessivo enfoque na capacidade instalada, no condicionamento do repasse a regras federais pouco flexíveis, além da profusão de programas, sendo 20 tipos diferentes em 2019.

O terceiro componente estava relacionado ao incentivo repassado aos municípios para a implantação e manutenção de Agentes Comunitários de Saúde nas eSF. Este incentivo é da ordem de mais de R$4 bilhões anuais, e está atrelado a deveres legais dos gestores em assegurarem pagamento de piso nacional, mas desprovido de vinculação e proporcionalidade ao desempenho alcançado pela estratégia.

O quarto e último componente era o Programa de Melhoria de Acesso e Qualidade (PMAQ), que inovou positivamente em 2011 ao abordar explicitamente a necessidade de ampliar o acesso e de melhorar a qualidade do cuidado na ESF e trazer a cultura da avaliação na APS. Apesar deste grande avanço, o PMAQ possuía um método com inúmeras limitações. Um de seus componentes é baseado em coletas presenciais de baixa periodicidade (2 a 3 anos), sem cronograma transparente pré-estabelecido, com uso de diversos questionários sem qualquer validação nacional estatística e científica, que geravam mais de 1.000 variáveis que compunham a avaliação final de cada equipe de ESF. Ora, todos nós pesquisadores sabemos que quando se pretende medir tudo, não se mede nada! Quase R$2 bilhões eram repassados por meio da avaliação do PMAQ apenas para as equipes que aderiam, visto que era uma avaliação opcional que atingia cerca de 36 mil equipes de ESF, cerca de 80% do total das equipes existentes em 2019. O que significa que para 20% das ESF não havia qualquer tipo de avaliação do cuidado prestado à população brasileira.

Sobre os modelos de financiamento de sistemas de saúde e pagamento por serviços de saúde

Ao contrário do que afirma Massuda, o Ministério da Saúde não está direcionando a APS e os programas de saúde pública para que sejam “focalizados em doenças específicas”. Ao incluir na avaliação da APS três macro indicadores como parte da avaliação geral – Net Promoter Score (NPS)15, PDQR916 e o Primary Care Assessment Tool (PCATool)17 criamos uma estratégia de avaliação que mede os princípios e os atributos da APS. O NPS mede afiliação, fidelização e confiança, isto é, a força da relação interpessoal (longitudinalidade) entre as pessoas e as equipes de APS, princípio original e insubstituível da APS. O PDRQ9 mede a qualidade e a confiança da relação entre as pessoas e o médico de família e comunidade (longitudinalidade). E o PCATOOL-Brasil mede a presença e a extensão dos quatro atributos essenciais (acesso de primeiro contato, longitudinalidade, coordenação e integralidade) e dois atributos derivados (orientação familiar e comunitária). Além de incorporar instrumentos validados no Brasil e no exterior, amplamente utilizados na produção científica em APS, possibilita comparações temporais e de base geográfica, tanto dentro do país, como em comparações internacionais. Essa estratégia traz ampla transparência para os resultados alcançados ou não por cada gestão do MS e possibilitará uma régua inequívoca para medir o sucesso de políticas públicas. Não é apenas uma inovação em curso, mas também um resgate do IBGE como grande avaliador externo da Saúde e da APS no Brasil, iniciando pela Pesquisa Nacional de Saúde (PNS-2019) que incluiu em seu Módulo de “Atendimento Médico”, as questões da versão reduzida para adultos do PCATool-Brasil18.

Concordamos com Massuda quando afirma que “os diferentes modelos de remuneração apresentam vantagens e desvantagens”. Essa frase resume a expressão e a necessidade de se combinar modelos mistos integrados e em equilíbrio19,20, quando se constrói uma política de financiamento federal para a APS e uma política de monitoramento e avaliação do SUS. Por exemplo, quando o autor menciona os índices de cobertura de equipes de Saúde da Família entre 1998 e 2018 esquece de citar que a cobertura – historicamente falando – sempre considerou uma média de 3.000 a 4.000 pessoas cobertas por uma equipe de SF. Ora, o trabalho de higienização das bases de dados e linkages realizadas ao longo de 2019 demonstrou que milhões de cadastros eram na verdade de “registros duplicados”, ou seja, estimava-se arbitrariamente o numerador para o cálculo da taxa de cobertura. E isso era absolutamente legítimo, pois não se conhecia o verdadeiro numerador com a exclusão dos cadastros duplicados e gestão das inconsistências que passou a ser possível com o registro do indivíduo no cálculo desse indicador a partir da nova política de financiamento federal para a APS e do monitoramento proposto pelo código Identificador Nacional de Equipe (INE) de cada eSF a partir de 2020. Contribuiu para isso a utilização do número único de identificação das pessoas mais conhecido pelos brasileiros que é o número do Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) fortalecido pelo Governo Federal21, que a partir de fevereiro/2020 passou a ser obrigatório para identificação unívoca das pessoas na ficha de cadastro das equipes de atenção primária no prontuário eletrônico do cidadão (versão 3.2.21), o eSUS-APS22. Mesmo que se utilize outro sistema de prontuário eletrônico ou o registro em fichas de papel (CDS), o mecanismo de transporte de informação e o modelo de dados são os mesmos.

Um outro exemplo, contrastando com o texto do autor, se refere à redução das desigualdades em saúde, na medida em que, na contramão do apresentado por Massuda, com o Previne Brasil, houve aumento de recursos e financiamento de mais de 2 mil equipes já em 2019, quando comparado ao ano de 2018. Além disso, responsavelmente o Previne Brasil instituiu uma regra de transição dos modelos de financiamento, evitando-se a perda de recursos por parte dos municípios23.

Sobre os apoios recebidos pela nova política de financiamento da APS no Brasil

Ao contrário do que afirma o autor, não foi somente a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) que apoiou a nova política de financiamento. Tanto o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (CONASS), o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS) e a Confederação Nacional dos Municípios (CNM) publicaram diversas notas técnicas e, não só apoiaram, como participaram ativamente e repercutiram24-26 as reuniões presenciais que o Ministério da Saúde realizou ao longo do 2º semestre de 2019, em todas as 26 unidades da federação e Distrito Federal, contando com a presença de mais de 10 mil técnicos e gestores dessas secretarias. Além disso, realizamos um Seminário Internacional com a participação de especialistas das Universidades de Harvard e York, que contribuíram e apoiaram na elaboração do novo modelo de financiamento. E também na 9ª Reunião da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), instância de pactuação entre os gestores federal, estaduais e municipais em 31 de outubro de 2019, houve aprovação por unanimidade do novo modelo misto de financiamento e o próprio CONASEMS desenvolveu uma ferramenta intitulada “Painel de Apoio à Gestão”27 - para dar maior transparência aos municípios e à população brasileira no acompanhamento do novo modelo. Ou seja, ao considerar que o SUS não é gerido unicamente pelo Ministério da Saúde, mas sim, de maneira democrática, pelos representantes das três esferas de poder – federal pelo Ministério da Saúde, estadual pelo CONASS, e municipal pelo CONASEMS –, pode-se afirmar que o Previne Brasil é uma nova proposta para a APS construída, debatida e aprovada pela gestão do SUS como um todo.

Desafios esperados

São inegáveis os desafios que teremos pela frente, contudo, acredita-se que o Previne Brasil induzirá estados e municípios a seguir o mesmo modelo misto de financiamento, resgatando inclusive o papel de apoiador dos estados para os municípios de menor capacidade institucional para a implementação dos serviços de atenção primária à saúde. Afinal, o papel das unidades da federação com as equipes de SF foi se reduzindo ao longo das décadas e com a nova política de financiamento alguns estados poderão criar mecanismos de indução semelhantes para complementar o novo per capita federal, potencializar o componente de pagamento por desempenho e incentivar ainda mais a informatização, a ampliação do acesso e a formação de recursos humanos por meio da residência médica e multiprofissional.

Quanto ao papel do Governo Federal, será fundamental para a redução do risk selection, bem lembrado pelo autor, um monitoramento potente e transparente baseado em indicadores confiáveis. Por outro lado, no SUS atual, como na era do PAB, não faltavam barreiras de acesso, e não será, portanto, somente o cadastro adequado que irá ampliá-las; ao contrário, irá mapeá-las para que possam ser enfrentadas pelos gestores. Aliás, com a meta prevista de 50.000 equipes até 2022, o Ministério da Saúde direciona a continuidade da expansão das equipes de Saúde da Família para a totalidade da população brasileira, para corrigir a defasagem existente nas estatísticas oficiais, que, como foi mencionado, contava com duplicidade: as pessoas ditas “com cobertura pelas equipes de eSF”, mas que na realidade não possuíam equipes e serviços de APS para cuidá-las. A busca pelo registro de outras 50 milhões de pessoas é uma correção de rumo, assim como a ampliação de acesso e viabilização do cálculo estatístico para uma cobertura populacional real.

Quanto à “efetividade do cadastro”, na era da informação e da informática, chegou o momento de encarar esse grande desafio no País e ainda com novos recursos federais para apoiar esse cadastramento (que sempre foi atribuição dos gestores locais)28. Neste sentido, os recursos repassados aos municípios contemplam um maior valor para aqueles municípios mais pobres e remotos, a partir da tipologia do IBGE29 que será usada no Censo Demográfico de 2020. Também serão ponderados considerando a população mais vulnerável – crianças e idosos. O detalhamento dos fatores de ajuste para repasses dos valores do financiamento federal estão detalhados em outro texto no prelo que compõe esse número temático30.

Uma das afirmativas mais utilizadas para dizer que a nova política deixará de financiar as equipes de Núcleo de Apoio ao Saúde da Família (NASF) não se sustenta, uma vez que apenas cerca de 35% dos profissionais (entre as categorias multiprofissionais possíveis) estão registrados no NASF, segundo o CNES. Estando os demais trabalhando também na APS, mas fora deste tipo de equipe, demonstrando que há vários arranjos institucionais já em curso nos municípios para o exercício da prática multiprofissional em APS, incluindo o apoio à Saúde da Família. E há previsão de monitoramento da presença desses profissionais que permanecerão trabalhando e poderão ser contratados com autonomia pelos gestores municipais de acordo com o perfil epidemiológico de cada cidade, tal como também explicitado em nota técnica do CONASEMS31.

Considerações finais

O novo modelo de financiamento da Atenção Primária à Saúde (APS), o Previne Brasil, está em processo de implantação desde o início de 2020. O programa enfrenta o desafio de ampliar o acesso, melhorar a qualidade e trazer mais equidade para APS no país, baseado nas melhores experiências de qualidade da APS no mundo, dentro de sistemas universais de saúde. É um modelo de financiamento misto, que busca equilibrar valores financeiros per capita referentes à população efetivamente cadastrada nas equipes de Saúde da Família e de Atenção Primária, com o grau de desempenho assistencial dessas equipes somado a incentivos para ações estratégicas, como ampliação do horário de atendimento (Programa Saúde na Hora), informatização (Infomatiza-APS) e formação de especialistas em APS por meio de residência médica e multiprofissional.

A proposta do programa tem como princípio fundamental a estruturação de modelo de financiamento que coloca as pessoas no centro do cuidado, a partir de composição de mecanismos que induzem à responsabilização dos gestores e dos profissionais pelas pessoas que assistem. A oferta de atenção de qualidade com equidade é um dos pilares do Previne Brasil e inova ao premiar e reconhecer eficiência e efetividade, sem deixar de primar pelo acesso. Para tanto, apresenta como componentes a capitação ponderada, o pagamento por desempenho, e incentivos para ações estratégicas e populações vulneráveis.

Em 2019, 1.098 municípios não apresentavam condições de ampliar seu custeio com o novo financiamento devido ao modelo de organização local da APS. Eles representam 19% dos municípios brasileiros com população ao redor de 20 milhões de pessoas (10% da população brasileira). Para não haver risco de perda financeira e para que nenhum cidadão seja potencialmente prejudicado, em decisão tripartite, o Ministério da Saúde manterá o valor recebido em 2019 relativo à melhor competência financeira mensal para cada município, gerando ganho real a estes municípios já em 2020. Com essa decisão, ao longo de 2020 não há perda no recurso, pelo contrário, há a possibilidade de ganho real para o conjunto total de municípios na ordem de R$ 3,5 bilhões de reais.

O Previne Brasil é a estratégia mais potente da Reforma da APS do Brasil proposta pela atual gestão do Ministério da Saúde. Além dele, diversas outras estratégias, metodológica e sistemicamente integradas, foram desenvolvidas ou encontram-se em fase final de elaboração, entre elas, podemos citar: a criação da SAPS, a ampliação de acesso (Saúde na Hora); a informatização (ConecteSUS e InformatizaAPS); o provimento médico e a formação em larga escala de médicos de família e comunidade (Médicos pelo Brasil); o incentivo à formação profissional via Residência Médica e Multiprofissional; a Carteira de Serviços da APS (CasAPS); a produção de linhas de cuidado para toda a Rede de Atenção à Saúde, ordenada pela APS; a criação de protocolos clínicos de enfermagem; a instituição do Prêmio APS Forte; e o fortalecimento metodológico e as parcerias com IBGE e Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para melhor monitoramento e avaliação da APS. Essas estratégias respondem, inclusive, a 12 das 20 recomendações para fortalecimento da APS feitas por Massuda em outro artigo publicado em janeiro de 2020 na Revista Panamericana de Saúde Pública32. A reversão do Previne Brasil certamente reverterá também a possibilidade de fortalecimento da APS e impedirá que essas 12 recomendações sejam atendidas.

Uma Atenção Primária forte se faz com princípios e atributos sólidos e coerentes, com financiamento potente que prioriza a equidade, com transparência. A Reforma da APS que propomos é coerente com os princípios da APS e do SUS, assim como com as evidências científicas sólidas produzidas no Brasil e no mundo e com a defesa intransigente da busca pela equidade em um país muito desigual. Junto com todos os profissionais das equipes de Saúde da Família e Atenção Primária, com os gestores municipais e estaduais, com o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (CONASS) e com o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS) estão formadas as bases para que 2020 seja o ano da maior qualificação da APS brasileira e início da Reforma da Atenção da Primária à Saúde, após mais de 25 anos do então “Programa de Saúde da Família” e após 40 anos de Alma-Ata. O Brasil, enfim, construirá o equilíbrio necessário entre a clínica e a saúde coletiva para o bem de seus cidadãos, reconstruindo uma atenção primária forte, coordenadora do cuidado e resolutiva. A expressão maior desse compromisso do Governo Federal encontra-se no Plano Plurianual 2020-2023, promulgado como Lei nº 13.971, de 27 de dezembro de 2019, que institui a meta de ampliação da cobertura populacional das equipes de Saúde da Família, tendo como direção ter 50 mil equipes em 202233.

REFERÊNCIAS

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