versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.12 Rio de Janeiro dez. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320182312.32262016
A criação de sistemas integrados de saúde ganha força a partir da segunda metade do século XX com o surgimento do National Health Service – NHS1. No Brasil, a criação do Sistema Único de Saúde – SUS foi influenciada por essa modelagem, cujas dimensões mais relevantes envolveram mudanças no financiamento, na cobertura assistencial, no acesso aos serviços e na integralidade do cuidado. Nesse campo, uma das iniciativas com abrangência sistêmica é a da governança clínica, que surgiu nos anos 1990, no âmbito do NHS. Com foco na qualidade, foi definida como um sistema por meio do qual as organizações de saúde se comprometem em melhorar continuamente os seus serviços e manter elevados padrões de cuidados, criando um ambiente propício à excelência clínica2.
A governança clínica influenciou outros sistemas de saúde a definirem e implantarem políticas e diretrizes para assegurar a melhoria da qualidade da clínica, enfrentando, dentre outros fatores, a variabilidade na prestação de cuidado. Os autores que tomam como referência o NHS propõem sete pilares para a governança clínica: efetividade clínica, auditoria clínica, gerenciamento de risco, uso da informação, educação e treinamento, gerenciamento de pessoas e envolvimento do paciente/público2. Na Espanha, essa dimensão do cuidado é denominada Gestión Clínica e seu objetivo central é a garantia de atenção integral, coordenada e centrada no paciente3. Os conceitos chave são: qualidade e efetividade, objetivos comuns de todos os agentes envolvidos, descentralização progressiva, autonomia e corresponsabilização na obtenção de resultados3,4. Na Austrália, as publicações sobre governança clínica mostram como foco quatro dimensões: desempenho clínico e avaliação; desenvolvimento profissional; risco e segurança; valores e envolvimento do paciente/usuário2.
Numa revisão de literatura sobre essa temática5, que percorreu o período de 2009 a 2013, observou-se que o conjunto dos artigos encontrados revelava principalmente a permanência dos sete pilares da governança clínica, ainda que houvesse polissemia acerca da sua tradução, e discussões focadas no plano operacional, com menor ênfase às instâncias meso e macro da gestão em saúde. Segundo os autores dessa revisão, as tensões entre padronização-singularização e controle-autonomia apareceram de modo pouco problematizado, considerando a complexidade do trabalho em saúde.
No Brasil, embora as tensões relacionadas à gestão do trabalho em saúde aparecessem em publicações6-8 desde a década de 1980, o termo gestão da clínica foi empregado por Mendes9em 2001. Esse autor utilizou elementos da governança clínica e da atenção gerenciada, definindo-a como um conjunto de tecnologias de microgestão que, a partir de diretrizes clínicas visa prover:
“uma atenção à saúde de qualidade; centrada nas pessoas; efetiva; estruturada com base em evidências científicas; segura, que não cause danos aos pacientes e profissionais; eficiente, provida com os custos ótimos; oportuna, prestada no tempo certo; equitativa, de modo a reduzir as desigualdades injustas; e ofertada de forma humanizada”10.
Se considerarmos que as organizações de saúde prestam serviços a partir da tradução do conhecimento de seus profissionais em decisões clínicas, o grau de autonomia e de controle desses profissionais no processo decisório é um dos elementos mais sensíveis, tanto na governança clínica como na atenção gerenciada11. Nesse contexto, o baixo reconhecimento ou problematização das tensões produzidas pelo controle exercido pela gestão sobre a clínica, tende a introduzir tecnologias de modo verticalizado, pouco contextualizado ou singularizado12,13.
Para enfrentar esse desafio, a abordagem de gestão da clínica que defendemos dá maior ênfase aos sujeitos envolvidos nas relações estabelecidas no cuidado integral à saúde e nos consequentes processos de aprendizagem, concebidos no trinômio atenção à saúde-gestão-educação. Nesse sentido, gestores e profissionais de saúde deveriam construir objetivos comuns, para os quais compartilham conhecimento e esforço profissional e se implicam igualmente. Nesse contexto, a criticidade e o comprometimento são vetores na construção de um metaponto de vista14.
Assim, a gestão da clínica – objeto de nosso estudo – tem como centralidade a produção de uma atenção integral à saúde, com qualidade e segurança, orientada às necessidades de saúde das pessoas e populações, por meio da transformação de práticas de atenção, gestão e educação.
A partir dessa definição foram identificados princípios que caracterizam uma abordagem problematizadora e extrapolam os marcos iniciais atribuídos à expressão “gestão da clínica” no Brasil. O objetivo desse artigo é apresentar a validação desses princípios.
Neste estudo – que consiste num trabalho opinativo – partimos de nossa experiência e, em seguida, buscamos a sua validação por especialistas no assunto, ampliando assim o fórum de opiniões com vistas a alcançar um consenso. Para isso, adaptamos a técnica de conferência de consenso de Souza et al.15.
Inicialmente, revisitamos a nossa prática de capacitar profissionais de saúde em gestão da clínica e desenvolver projetos de atenção integral, com qualidade e segurança no SUS. Essa prática revelou os desafios da articulação dos três eixos “estruturantes” e da produção de criticidade para singularizar processos de melhoria de qualidade nos serviços de saúde16. Para o enfrentamento desses desafios, elaboramos um quadro de princípios, com descritores. Os princípios foram compreendidos como bases ou fundamentos que norteiam uma gestão da clínica voltada à transformação de práticas.
Em seguida selecionamos especialistas para o papel de validadores. O primeiro critério de seleção foi identificar autores de artigos de temas relacionados, direta ou indiretamente à gestão da clínica, cadastrados na Scientific Eletronic Library Online (SciELO), em maio de 2015. Essa biblioteca foi escolhida por concentrar as principais publicações nacionais de artigos em saúde pública. Além disso, identificamos profissionais envolvidos com a implantação de propostas de gestão da clínica no SUS, no âmbito do Ministério da Saúde. Com base nesses dois critérios, foram escolhidos 15 especialistas, três deles não responderam ao convite para participarem da estudo e cinco declinaram.
O grupo de especialistas foi constituído por sete validadores, sendo cinco autores de artigos sobre o tema e dois gestores. Entre os autores, dois eram editores associados de periódicos científicos. Como não estávamos trabalhando exclusivamente com a dimensão quantitativa, não consideramos a perda de oito especialistas como requisito para a não-continuidade do estudo.
Após essa etapa, enviamos aos validadores, por correio eletrônico, o quadro de princípios, em junho de 2015. Nesse quadro, cada princípio poderia ser pontuado numa escala de 0 a 10, onde 0 significava sem importância ou exclusão e 10 importância máxima. Além disso, seria possível incluir observações ou sugestões.
As pontuações atribuídas pelos especialistas aos princípios foram tratadas por meio de cálculo de médias e desvio padrão. Para aprofundarmos o entendimento dos resultados obtidos, realizamos um encontro presencial no qual contamos com a presença de quatro dos sete validadores, em agosto de 2015. Nesse encontro, foram apresentadas as pontuações atribuídas e sugestões de supressões ou acréscimos de princípios, sem que fossem divulgados os seus autores. Cada participante apresentou seu posicionamento acerca do quadro e, individualmente, atribuiu, novamente, notas de 0 a 10 para os princípios.
Após esse encontro, sintetizamos as opiniões e sugestões para recalcular as médias e o desvio padrão (DP) de cada princípio. No novo quadro foram incluídos apenas os princípios com média igual ou maior a sete, com DP igual ou menor do que dois. Reenviamos o novo quadro para os sete especialistas, em novembro de 2015, e utilizamos os mesmos critérios estatísticos na segunda rodada de validação, que ocorreu em dezembro de 2015.
Dos dez princípios apresentados inicialmente aos especialistas, cinco deles tiveram desvio padrão superior a 2,0, não sendo portando validados, (Tabela 1).
Tabela 1 Princípios da Gestão da Clínica (Primeira Versão).
Princípios | Descritores | Média | Desvio Padrão |
---|---|---|---|
1. Orientação às necessidades de saúde e à integralidade do cuidado | Necessidades de saúde – historicamente construídas – compreendidas como fenômenos complexos que abrangem as dimensões biológica, psicossocial e cultural. Integralidade do cuidado como resposta articulada de profissionais, de serviços e de diferentes lógicas para o atendimento das necessidades de saúde individuais e coletivas. Atendimento igualitário, independente de idade, sexo, religião, opção sexual, política ou inserção socioeconômica e cultural. Pactuação e compartilhamento da responsabilidade pelos profissionais e gestores da rede de atenção à saúde, com vistas ao cuidado integral à saúde das pessoas e populações. | 10,00 | 0,00 |
2. Orientação a resultados que agreguem valor à saúde e à vida | Emprego de padrões para a melhoria da eficiência, eficácia e efetividade clínica, visando reduzir uso de recursos desnecessários e considerando o valor agregado à qualidade de vida e à saúde dos usuários. Uso de indicadores de resultado voltados para a promoção de estilos de vida saudável e a redução de riscos, vulnerabilidade e danos | 8,14 | 1,57 |
3. Orientação e responsabilização com os interesses coletivos | Tomada de decisões orientadas pelas diretrizes dos sistemas de saúde, por meio da utilização de diversas perspectivas. Petição e prestação de contas nos serviços/instituições envolvidos na rede de atenção à saúde. Garantia de espaços formais e de voz/escuta para os distintos grupos de interesse. Transparência na comunicação/ informações com as pessoas, populações, mídia e sociedade. Promoção do controle social por meio de instâncias colegiadas representativas. | 8,14 | 2,41 |
4. Obtenção do máximo benefício, sem causar danos, no cuidado em saúde. | Redução do risco inerente ao processo do cuidado e aumento da segurança dos profissionais e dos usuários dos serviços de saúde. Redução do dano ao mínimo possível. Redução da variabilidade nas decisões clínicas e otimização dos resultados com base nas melhores evidências disponíveis. | 9,57 | 0,79 |
5. Articulação das racionalidades da gestão e clínico-epidemiológica | Incorporação das perspectivas clínico-epidemiológica e da gestão na produção do cuidado. Implementação de processos de monitoramento das decisões clínicas com a participação dos envolvidos, promovendo autonomia e responsabilização dos profissionais e equipes. Perfis de competência de profissionais de saúde que incluam capacidades de gestão como estratégia na busca por melhores respostas em relação às necessidades de saúde das pessoas e sociedades. | 8,43 | 1,13 |
6. Articulação e valorização dos diferentes saberes e práticas em saúde para o enfrentamento da complexidade dos problemas de saúde | Valorização do reconhecimento dos valores das pessoas sob cuidado, dos usuário, da família, visando maior efetividade. Elaboração de planos terapêuticos orientados por necessidades de saúde. Parceria ensino-serviço para atuar na formação e capacitação de profissionais de saúde, articulando diferentes visões dos envolvidos. Trabalho em equipes multiprofissionais com abordagem interdisciplinar. Diálogo com saberes populares no cuidado da saúde. Articulação com as práticas integrativas e complementares. | 8,00 | 3,65 |
7. Compartilhamento de poder e corresponsabilização entre serviços e profissionais que atuam conjuntamente na gestão de cuidado | Responsabilidade compartilhada pelo cuidado entre profissionais, pessoas sob cuidado, usuários, famílias, comunidade e gestores. Processo decisório das redes de atenção com participação dos serviços/ profissionais envolvidos e mecanismos de gerenciamento que promovam a corresponsabilização e articulação entre diferentes ambientes e níveis de cuidado. Sistemas de informação e comunicação acessíveis, oportunos, eficazes para profissionais e serviços com vistas à qualificação do cuidado. Definição e pactuação da responsabilidade de cada ponto da rede de atenção à saúde na promoção de um cuidado integral voltado aos interesses coletivos. Estabelecimento de processos articulados e de cooperação entre atores (incluindo usuários) e instituições envolvidos na rede de atenção à saúde. Valorização da participação e estímulo à autonomia e criatividade dos profissionais na construção coletiva dos planos de cuidado. Trabalho em equipe, respeitando diferentes saberes e potencialidades. | 7,86 | 3,67 |
8. Reconhecimento do outro como sujeito legítimo no compartilhamento da decisão | Pessoa sob cuidado/usuário como sujeito na gestão do cuidado, considerando legítimas suas opiniões e desejos. Decisão sobre o cuidado compartilhada na equipe. Ações educacionais orientadas ao respeito e à aceitação das pessoas como sujeitos legítimos na tomada de decisões sobre a própria saúde e modo de lidar com a vida. | 7,57 | 3,82 |
9. Adoção da reflexividade onde pensamento e ação coexistem, se influenciam mutuamente na reprodução e transformação das práticas | Diálogo reflexivo entre as ações da gestão da clínica e as informações acerca da realidade onde se insere tais ações. Compreensão das atividades da gestão da clínica como passíveis de serem revistas à luz de novas informações. Avaliação e reformulação permanentes das práticas da gestão da clínica à luz de informações renovadas sobre elas próprias. | 8,00 | 3,70 |
10. Reconhecimento da capacidade de aprender a aprender das pessoas e das organizações frente à incompletude do saber | Valorização da inovação e da melhoria de processos de cuidado. Reconhecimento do esforço para a superação de dificuldades ou limitações no trabalho em saúde. Promoção da autonomia de pacientes, familiares e equipes na produção de saúde. Investigação ampliada das necessidades de saúde com formulação de questões e hipóteses na identificação dos problemas e na produção do cuidado. Desenvolvimento de práticas educativas que respeitam e consideram o conhecimento prévio de todos os envolvidos. Práticas educativas que levam em conta o contexto sociocultural individual, do serviço, da instituição ou rede. Produção do conhecimento e da aprendizagem a partir da realidade do trabalho em saúde e dos problemas do cotidiano, com estímulo ao pensamento crítico e reflexivo e transformação das práticas. Geração e disseminação de conhecimentos relevantes à produção do cuidado da saúde das pessoas e à qualidade dos serviços produzidos. Utilização de erros e acertos como subsídios para a melhoria de desempenho. Facilitação do acesso às informações e política de comunicação que favoreçam canais de comunicação entre profissionais e serviços da rede de atenção à saúde. Desenvolvimento da auditoria clínica na perspectiva de uma aprendizagem problematizadora | 9,83 | 0,41 |
Com base na discussão realizada no encontro com os especialistas, foi elaborado novo quadro de princípios (Tabela 2). Nesse quadro, foram incorporadas sugestões para supressão e acréscimos, bem como renomeação de alguns princípios validados no primeiro momento, resultando sete princípios. Na segunda rodada, os sete princípios foram validados.
Tabela 2 Princípios da Gestão da Clínica.
Princípios | Descritores | M | DP |
---|---|---|---|
1. Orientação às necessidades de saúde e à integralidade do cuidado | As necessidades de saúde de pessoas e coletivos são fenômenos complexos e historicamente construídos, abrangendo as dimensões biológica, psicossocial e cultural, assim como a integralidade do cuidado como orientadora da organização da atenção à saúde. | 10,00 | 0,00 |
2. Qualidade e segurança no cuidado em saúde | A obtenção do máximo benefício por meio da melhoria contínua da qualidade e segurança do cuidado ocorre pela redução: do risco inerente ao processo do cuidado para todos os envolvidos; do dano ao mínimo possível; da variabilidade das decisões clínicas segundo as melhores evidências e aumento da segurança. | 9,71 | 0,49 |
3. Articulação e valorização dos diferentes saberes e práticas em saúde para o enfrentamento dos problemas de saúde | A elaboração dos planos de cuidado é orientada às necessidades de saúde, ao trabalho em equipes multiprofissionais, com abordagem interdisciplinar, compatível com a natureza complexa dos problemas a serem enfrentados. O diálogo entre as diferentes práticas e saberes de cuidado à saúde e o reconhecimento dos valores e preferências das pessoas sob cuidado – usuário e família – visam maior efetividade da atenção à saúde. O compartilhamento das perspectivas do ensino e do serviço contribuem para a formação e capacitação de profissionais de saúde no contexto do trabalho. | 9,43 | 0,79 |
4. Compartilhamento de poder e corresponsabilização entre gestores, profissionais de saúde e cidadãos na produção da atenção em saúde | O processo decisório nas redes de atenção com participação dos serviços/profissionais envolvidos e os mecanismos de gerenciamento promovem a corresponsabilização e articulação entre diferentes ambientes e níveis de cuidado. A definição e pactuação da responsabilidade de cada ponto da rede de atenção à saúde leva em consideração: a promoção de um cuidado integral voltado aos interesses coletivos; a integração de sistemas de informação e comunicação para a tomada de decisão compartilhada; o estabelecimento de processos articulados e de cooperação entre atores e instituições envolvidas; a valorização da participação e estímulo à autonomia e criatividade dos profissionais na construção coletiva dos planos de cuidado; o trabalho em equipe, respeitando diferentes saberes e potencialidades, e a responsabilidade compartilhada pelo cuidado entre profissionais, as pessoas sob cuidado, as famílias, a comunidade e os gestores. | 9,29 | 1,25 |
5. Educação de pessoas e da organização | As práticas educativas consideram os contextos sociocultural, individual, do serviço, da instituição ou rede que estão presentes na aprendizagem como construção de conhecimento. Os problemas e desafios em saúde são disparadores da aprendizagem que levam em conta os saberes prévios dos envolvidos, seus valores, desejos e interesses. O diálogo reflexivo entre as ações de gestão da clínica e as informações acerca da realidade oportuniza a compreensão das práticas como passíveis de serem revistas à luz de novas informações. A educação organizacional é vista como um processo articulado, ascendente e descendente, envolvendo todos os âmbitos do trabalho. A cultura de educação permanente e de avaliação contínua no cotidiano do trabalho, reorienta as práticas em saúde, numa perspectiva de uma organização que se transforma. A utilização de erros e acertos como subsídios para a melhoria de desempenho incluí a auditoria clínica, que assume uma perspectiva de aprendizagem problematizadora e formativa. A geração e a disseminação do conhecimento relevantes à produção de saúde valoriza a inovação de produtos e processos no cuidado à saúde, com vistas à ampliação do acesso às inovações. | 9,00 | 0,82 |
6. Orientação aos resultados que agreguem valor à saúde e à vida | O emprego de padrões para a melhoria da eficiência e efetividade da atenção, por meio do uso de indicadores de resultados voltados à promoção de estilos de vida saudável, visa reduzir o uso de recursos desnecessários e a produção de saúde e autonomia dos usuários. | 9,00 | 1,15 |
7. Transparência e responsabilização com os interesses coletivos | A transparência na informação e comunicação com as pessoas, populações, mídia e sociedade está presente na tomada de decisões e na prestação de contas dos serviços e das instituições envolvidos na rede de atenção à saúde. A responsabilização com os interesses coletivos se expressa no compromisso com as diretrizes do sistema de saúde contemplando a diversidade de perspectivas e a promoção do controle social. | 8,86 | 1,46 |
O primeiro princípio da Tabela 2 obteve absoluto consenso, tendo média 10 e DP 0. Nos demais, o consenso foi alto, uma vez que a menor média foi 8,86 e o maior DP 1,46.
Ao considerarmos os princípios validados da gestão da clínica, há expressivas distinções na aplicabilidade desses, segundo a modelagem do sistema de saúde (Quadro 1). Considerando elementos relevantes destacados por Mendes10na caracterização de sistemas fragmentados e de redes de atenção à saúde, os sistemas fragmentados inviabilizam cinco dos sete princípios da gestão da clínica.
Quadro 1 Características dos sistemas de saúde.
Sistemas fragmentados | Sistemas integrados |
---|---|
Organização hierárquica entre serviços | Organização em rede referenciada a um território sanitário |
Gestão verticalizada focada no comando-controle | Gestão sistêmica, compartilhada e corresponsável |
Financiamento por procedimentos | Financiamento por resultados |
Atenção desarticulada, descontínua, orientada às doenças e centrada no cuidado profissional | Atenção integral, orientada às necessidades de saúde e centrada no cuidado multiprofissional |
Segurança e qualidade inconstantes | Padrões de segurança e qualidade |
Informação fragmentada | Informação Integrada |
Fonte: Adaptado de Mendes10.
No que se refere aos sistemas integrados, destacamos as características dos três eixos “estruturantes” que orientaram a construção dos sete princípios validados: (i) modelo de atenção à saúde; (ii) modelo de gestão em saúde; e (iii) concepção de educação na saúde.
No primeiro eixo, o deslocamento da doença para as necessidades de saúde de sujeitos ou grupos sociais reorienta a atenção à saúde. Nesse sentido, a clínica não se reduz apenas ao diagnóstico e tratamento da doença como entidade patológica, com seus aspectos etiológicos e nosológicos. Canguilhem17chamou a atenção para o desafio de não se considerar a existência do patológico em si e sim apreciá-lo numa relação com o indivíduo e a sociedade. Cecílio18 observa que, quando se toma como referência as necessidades de saúde, as equipes de profissionais e os níveis de gerência conseguem alcançar “um bom dispositivo para qualificar e humanizar os serviços de saúde”. Para que a gestão da clínica consiga operar na lógica das necessidades de saúde não pode restringir-se à dimensão biológica12, ou agir isoladamente, uma vez que “nenhuma instância isolada dos sistemas de saúde possui competência ou a totalidade dos recursos necessários para resolver as necessidades de saúde de uma população”19.
O segundo eixo diz respeito ao modelo de gestão. Paula20 apresenta uma comparação entre o gerencialismo e a gestão social que, de certa forma, relaciona-se a esse deslocamento. Para a autora, o primeiro modelo se alinha à concepção funcionalista, sem levar em conta processos políticos. Segundo ela, há limites e pontos positivos nos dois modelos. Sem reduzir o gerencialismo ao fato de se ater à tarefa pela tarefa, entendemos que os princípios validados se vinculam a uma gestão democrática e coparticipativa, requerendo, segundo Campos21, uma combinação de autonomia e responsabilidade, com criatividade e compromisso sanitário.
Por último, a concepção de educação, como um terceiro eixo, implica a compreensão de que a aprendizagem ocorre como resultado de processos de interação social, nos quais saberes e práticas são construídos na relação entre sujeito que aprende e objetos a serem aprendidos22. Essa concepção desloca os processos educacionais de relações hierarquizadas para relações dialógicas entre sujeitos que trocam conhecimentos, valores, desejos e interesses e, por isso, transformam práticas.
Além dos deslocamentos nos três eixos, há aspectos transversais dos princípios em questão. Um deles refere-se ao modo de lidar e considerar o outro nas relações no trabalho em saúde. Quando as pessoas são consideradas legítimas na sua singularidade23, há a construção de um metaponto de vista14 em relação às diferentes perspectivas atribuídas ao processo saúde-doença. No modelo de atenção, essa orientação amplia o foco dado pela perspectiva do profissional e do saber biomédico, incluindo as dimensões subjetiva e social da produção de saúde, na explicação dos fenômenos e na pactuação de intervenções, contemplando interesses e desejos das pessoas sob cuidado. Nos modelos de gestão e de educação, a construção de protagonismo e corresponsabilização dos sujeitos envolvidos requer ampliação da consciência crítica e reflexiva e o compartilhamento de poder.
Outro aspecto que atravessa os princípios é a transformação de práticas. Essa, nas sociedades humanas ocorre por meio da aprendizagem. Embora Polanyi24 e Hobsbaum25apontem a produção de riqueza material como sendo o determinante último das transformações sociais, reconhecem a influência de componentes políticos, culturais e educacionais nesses processos. Segundo Piketty26, a difusão de conhecimento e competência é um dos mais expressivos mecanismos de convergência para a melhoria da distribuição de riquezas e diminuição de desigualdades. Nesse sentido, a educação possibilita a reflexão crítica sobre o modo como a sociedade se organiza, potencializando essa força de convergência para processos de transformação.
Assim como as pessoas aprendem, as organizações formadas por pessoas também podem fazê-lo27. Uma organização, onde o poder é compartilhado, pode gerar movimentos ascendentes e descendentes tanto na gestão como na educação permanente dos envolvidos, bem como promover a construção de uma cultura de avaliação, visando reorientar as práticas em saúde, por meio da utilização de erros e acertos como subsídios para a melhoria de desempenho.
Finalmente, o terceiro aspecto transversal diz respeito à produção de um cuidado integral. Aqui a integralidade deve ser entendida num sentido amplo. Partilhamos do posicionamento de Ayres et al.28 que consideram tal expressão a partir de quatro eixos voltados para às necessidades, finalidades, articulações e interações. Para Ayres29, cuidado e integralidade são ideias congêneres, mesmo que no limite inatingível da utopia e, por isso, imprescindíveis. A integralidade como princípio, é para este autor, o que nos desafia a fazer o que e como para responder às necessidades de saúde.
As possíveis conexões entre gestão, atenção à saúde e educação que se configuram no âmbito da gestão da clínica podem ser compreendidas à luz da contemporaneidade social. Ao buscarmos essa compreensão, fazemos associação com aspectos da concepção de Bauman30. Para esse autor as relações entre os indivíduos e instituições tendem a ser menos frequentes e duradoras, uma vez que se inserem numa época de fluidez, volatilidade, incertezas e inseguranças (modernidade líquida) que veio substituir uma época anterior marcada por referenciais mais sólidos.
Ao colocarmos em prática os princípios da gestão da clínica, aqui propostos, acreditamos que conviveremos com as tensões entre permanências e mudanças, uma vez que esses princípios traduzem uma abordagem problematizadora das práticas de saúde, cujo vetor se encontra na criticidade e na dialogia para a produção de intervenções transformadoras. As transformações nos três eixos estruturantes devem ser construídas pela articulação de diferentes saberes e pelo compartilhamento do poder de decisão entre gestores, profissionais e usuários, no sentido de uma atenção integral, de qualidade e com segurança, orientada às necessidades de saúde de pessoas e populações. Para que possamos conviver com esses desafios, é importante aprendermos a vivenciar a simultaneidade entre supostas certezas e incertezas, por meio de uma consciência crítica e aberta às mudanças.