versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.20 no.11 Rio de Janeiro nov. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320152011.10332014
Atualmente, o principal modelo de atenção primária em saúde brasileiro é a Estratégia Saúde da Família (ESF)1. Nela, o Agente Comunitário de Saúde (ACS), que é morador do território de abrangência da Unidade de Saúde da Família (USF), integra-se à equipe como agente da instituição saúde que tem proximidade com os demais moradores do bairro. O processo de trabalho na USF organiza-se pela equipe, constituída por médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem, além dos ACS.
A educação permanente de trabalhadores da saúde faz parte da política pública do Sistema Único de Saúde brasileiro, mas está longe de se desenvolver de forma satisfatória na atenção primária em saúde. Especificamente, no caso dos ACS, a formação para o trabalho encontra-se fragilizada. Cursos de formação técnica e profissionalizante estão previstos pelo Ministério da Saúde, desde 2004, com o objetivo de melhorar a qualificação para o trabalho, elevar a escolaridade e melhorar as possibilidades de remuneração e regularização do vínculo empregatício do ACS2. Embora o curso estivesse planejado em torno de 3 módulos, há informações de que até o ano de 2010 não havia passado do primeiro3.
Dessa forma, uma certa formação ocasional acaba se concretizando no serviço, em espaços de supervisão, e em capacitações rápidas e operacionais, o que não vem possibilitando reflexões críticas acerca do processo de trabalho4. Revisão sistemática realizada pela OMS sobre as experiências dos ACS em países subdesenvolvidos também encontrou que os ACS são pouco preparados para o trabalho5.
A qualificação dos ACS brasileiros está sendo tratada na interface entre os campos da saúde e da educação3,6. De acordo com documentos reguladores do trabalho e da formação dos ACS3, o trabalho destes é considerado simples já que não requer formação específica e complexa para sua realização, como no caso dos demais profissionais.
No entanto, desgastes sofridos no trabalho têm sido referidos na literatura como decorrentes de atividade complexa. São discutidos: sobrecarga de trabalho, cansaço e estresse relacionados com a fragmentação deste e ausência de participação dos profissionais nas decisões da unidade, bem como ausência de espaços de discussão e reflexão sobre o serviço, além de condições precárias7.
Esse conjunto de questões, ainda que estudados de maneira fragmentada, denunciam práticas reiterativas, realizadas por toda equipe de saúde, baseadas na saúde pública, que utiliza tecnologias que correspondem aos chamados níveis de prevenção, elementos pertencentes à perspectiva multifatorial de saúde-doença8. Além disso, apesar de constituir proposta inovadora para a atenção primária em saúde, a ESF reproduz o modelo centrado no médico, com as equipes enfrentando limitações importantes para a elaboração de projetos intersetoriais que busquem ações associadas ao âmbito da determinação do processo saúde-doença9,10. Em revisão integrativa, realizada com ACS americanos11, concluiu-se que a equipe de saúde encontra dificuldades em definir as práticas que produziriam os resultados esperados, o que colabora para a manutenção das práticas que vêm sendo desenvolvidas.
Dentre os desafios da atenção primária à saúde e em função do despreparo dos profissionais, encontra-se a superação de condutas baseadas na queixa e o pouco espaço para educação, além da desvalorização do saber e da cultura do usuário e sua frequente culpabilização por não atingir os objetivos prescritos pela direção9.
Trabalhar com os problemas relacionados ao consumo prejudicial de drogas está, também, entre os desafios da atenção primária em saúde, tendo como agravante o alarde midiático distorcido acerca do tema12. Há ainda maiores problemas trazidos por forte julgamento moral dos usuários e por posições de senso-comum, que ajudam a marginalizar consumidores de drogas, afastando-os das instituições sociais que são referência para moradores dos territórios adscritos ou adjacentes. As equipes de saúde têm muitas dificuldades em lidar com essa questão e estão pouco ou equivocadamente capacitadas para a prestação de cuidados à saúde aos usuários de drogas13.
Diante da realidade apresentada, este estudo objetiva descrever e analisar o trabalho de ACS, voltado para o desenvolvimento de práticas de atenção primária em saúde, relativas ao consumo prejudicial de drogas.
Neste trabalho, adotou-se o Materialismo Histórico e Dialético ou Marxismo para compreender o consumo prejudicial de drogas e as propostas de práticas em saúde que seriam coerentes com essa compreensão.
Nesse sentido, parte-se da compreensão que dentro do conjunto de mercadorias que respondem às necessidades de acumulação capitalista, encontra-se também a droga lícita ou ilícita8,14, o que coloca o usuário de drogas na condição de consumidor, assim lhe sendo atribuída condição diversa da de doente ou “desviante”. Portanto, as ações indicadas para o enfrentamento dessa problemática vão muito além da proposta de mudança do comportamento frente à droga. O que se apoia, a partir desta leitura, é a proposição de políticas estatais que respondam às necessidades de saúde dos diferentes grupos sociais, com atenção especial aos que se encontram em frações de classe a tal ponto exploradas, que ficam quase que completamente apartadas de usufruir dos bens sociais. Propõe-se ações voltadas para a garantia de acesso à saúde, educação, moradia, emprego, entre outros direitos, que teriam potencial para transformar situações sociais que estão na base do consumo prejudicial de drogas15,16.
Este estudo toma por base a pesquisa-ação na perspectiva marxista, que propõe o investimento em pesquisa associado à mudança, uma vez que parte do pressuposto de que o conhecimento é produzido de forma a expor as contradições nem sempre apresentadas de maneira clara na realidade concreta, tendo como consequência a transformação da práxis social8.
Coerentemente com o marco teórico, utilizou-se a educação emancipatória em saúde, construção feita no interior da saúde coletiva e inspirada em proposições metodológicas de Paulo Freire17 e na educação histórico-crítica de Dermeval Saviani18, entre outros autores críticos19.
Saviani, educador Marxista, compreende a educação como como trabalho, prática social, e afirma que mesmo na perspectiva participativa, que prevê o envolvimento efetivo de todos no processo educativo, o educador tem papel de instrumentalizador, já que inicia a práxis educativa carregado de conteúdos anteriormente acumulados pelos conhecimentos adquiridos nos livros, em insights e/ou em experiências anteriores18. Dessa forma, coube aos pesquisadores proponentes da pesquisa-ação direcionar e mediar as atividades propostas, trazendo elementos de instrumentalização, com base nas discussões ocorridas desde a primeira oficina e nos fundamentos teóricos que nortearam a pesquisa.
A contribuição humanista de Freire parte do reconhecimento do caráter político e ideológico da relação entre sujeitos (“um que ensinando aprende e outro que aprendendo ensina”) e objetos (conteúdos). Para ele, a educação se configura como processo mútuo e horizontal de aprendizado, que embasa a reflexão e a ação transformadora através do diálogo. A horizontalidade se refere à condição humana propriamente dita já que concretamente há diferenças que oprimem. Essa relação está baseada na pertinência, isto é, naquilo que provoque sentimentos e mova os sujeitos para as ações17.
Enquanto Freire coloca o foco das contradições na opressão do homem sobre o homem, Saviani o localiza no modo de produzir em sociedade. Enquanto Freire indica a igualdade entre os homens como ideal, Saviani reconhece as diferenças concretas entre as classes sociais, o que implica em transformação revolucionária. No entanto, ambos apresentam as contradições sociais como base para o desenvolvimento do processo educativo e apresentam propostas no interior da sociedade capitalista, com a finalidade de transformá-la. Nesse sentido, exerceram influência na formulação de educação emancipatória em saúde. Essa formulação advoga, portanto, que o processo educativo não é gerado espontaneamente, mas que deve partir da realidade concreta, que perfaz o contexto e a prática social dos participantes, implicando todos os sujeitos envolvidos na reflexão, discussão e elaboração de instrumentos para transformar a realidade e/ou a prática social19. Tem como intencionalidade o aprofundamento do conhecimento sobre um determinado fenômeno de saúde-doença, e não a partir do controle empírico, da quebra da realidade em fatores que podem ser medidos ou do isolamento do pesquisador em relação a quem está sendo pesquisado. Essa concepção é coerente com a recusa metodológica que distancia sujeito e objeto de pesquisa20, propondo a “participação efetiva da população pesquisada no processo de geração de conhecimento, concebido fundamentalmente como um processo de educação coletiva”19.
Dentre as diferentes modalidades de metodologias de caráter participativo, recorreu-se à pesquisa-ação, pois esta possibilita e tem como princípio a participação dos grupos sociais no processo de tomada de decisões21. De forma geral, a pesquisa-ação é um procedimento teórico-metodológico que tem variações conforme as diferentes vertentes epistemológicas. A comunalidade, independente da abordagem, fica por conta do envolvimento dos sujeitos21.
Nesta investigação, a pesquisa-ação desenvolveu-se através de 15 oficinas emancipatórias, tipo de oficina compreendida como instrumento que proporciona espaço de reflexão sobre a prática e sobre as contradições da realidade para que possa haver transformação social16.
A pesquisa-ação foi dividida em duas etapas. A primeira foi composta pela realização de 9 oficinas, cujo objetivo principal foi analisar o consumo de drogas na contemporaneidade e instrumentalizar os participantes, através do desenvolvimento de processo educativo que tomou por base os fundamentos da saúde coletiva e como estratégia a problematização da realidade do bairro em que atuam. Na segunda, foram realizadas outras 6 oficinas com o objetivo de construir material de apoio para o enfrentamento do consumo prejudicial de drogas, direcionado aos trabalhadores da ESF.
O material produzido nas oficinas foi denominado “Álcool e drogas: um milhão de ações. Caderno de Trabalho do Agente Comunitário de Saúde: em foco as necessidades de Saúde e o Consumo Prejudicial de drogas”, o qual se encontra disponível em http://www.ee.usp.br/noticias/2013/alcool_drogas.asp.
Na concepção da pesquisa ação, todos seus sujeitos são considerados participantes, de maneira que, nesta investigação, os temas e as propostas não foram previamente definidos, o que ocorria em função do problematizado na oficina imediatamente anterior, isto é, a partir da avaliação das necessidades teórico-práticas apresentadas pelos participantes, o que conduzia às próximas etapas da investigação.
O processo educativo, eixo condutor da pesquisa-ação, foi descrito e avaliado em outros espaços22,23.
Todos os momentos foram gravados (áudio). Foi realizada a transcrição das falas dos participantes, e a partir disso procurou-se seguir as etapas propostas por Bardin24 para análise de conteúdo, com apoio do método dialético, que valoriza a análise a partir de uma categoria teórica que se expressa na realidade através de outras empíricas.
As práticas de trabalho do ACS foram analisadas a partir da categoria processo de trabalho, nos moldes da proposição Marxista, conforme leitura de Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves25. Nessa leitura, foram tomadas como sociais, cujos elementos (objeto, finalidade, trabalho em si e meios e instrumentos) foram sendo apreendidos durante o processo educativo, o qual norteou a pesquisa-ação. Tomou-se como referência estudo anterior de Santos et al.26, que buscou analisar o cotidiano de trabalho de trabalhadores da ESF26. Dessa forma, nesta pesquisa foram analisadas as práticas, suas críticas e as propostas de mudanças. Procurou-se evidenciar ao longo das oficinas as descobertas dos ACS sobre a estrutura e a dinâmica do seu trabalho.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria da Saúde da Prefeitura Municipal de São Paulo. Os participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Participaram da pesquisa-ação 18 ACS de quatro Unidades de Saúde da Família do distrito de Sapopemba, município de São Paulo. A maioria foi composta por mulheres (17 participantes), com idades entre 22 e 59 anos.
Durante o procedimento, os ACS discutiram suas práticas cotidianas, formulando críticas aos processos de trabalho dos quais participam, o que permitiu perceber o rico processo de desalienação, por meio da discussão da rotina da USF, do trabalho que desenvolvem e dos casos vivenciados. Esse processo foi revelando o abandono social do território e propondo práticas complexas, para além do espaço da USF e das orientações sobre prevenção de doenças.
Entre as questões concernentes ao processo de trabalho, os ACS compartilharam dificuldades referentes à relação hierárquica e à ausência de respaldo da equipe técnica, sobretudo em casos difíceis, nos quais a equipe se via “sem saída”.
Os ACS discutiram a precariedade da formação, retratando as contradições existentes no trabalho, visto que executam sua parcela mais complexa, embora sejam os que apresentam menos capacitação técnica em saúde. Os participantes se deram conta de que com frequência deixam de mediar a relação entre os moradores do bairro e a equipe técnica, para ser anteparo dos problemas sociais que existem no território em que atuam, e para os quais a equipe não tem resposta, dada sua formação eminentemente clínica.
Percebeu-se que os ACS trouxeram para o espaço educativo suas angústias em relação ao trabalho como um todo, e não se restringiram àquelas referentes às intervenções sobre o consumo problemático de drogas. Os ACS deram depoimentos de que as capacitações desenvolvidas em serviço enfocam as doenças a serem tratadas na atenção primária em saúde (hipertensão e diabetes, por exemplo), e nesse sentido não amenizam o desconforto com a total ausência de instrumentos para lidar com as demandas sociais do território.
Ademais, os ACS passam a expor, de maneira clara, contradições no trabalho que eram anteriormente apenas sensações que os rondava há muito tempo e que causavam desconforto. Exemplo das contradições é que a prática desenvolvida se baseia na repetição de conteúdos que lhes foram ensinados de maneira aligeirada, a partir do conhecimento clínico, o qual faz parte da formação de enfermeiros e médicos que estudaram em universidades.
Além disso, os participantes se ressentem de que seus conhecimentos, abordagens e contribuições nas discussões de casos com a equipe técnica pouco são levados em conta. Não conseguem compartilhar sequer que são eles que sofrem o maior desgaste do trabalho na ESF, seja enfrentando ações policiais no território, fazendo visitas em casas com condições insalubres, ou outras situações.
Como resultado dessa dinâmica da equipe, os ACS tentam resolver individualmente problemas de toda sorte. Nesse sentido, as práticas tendem a ser desgastantes e passam a ter como objeto um indivíduo ao invés da coletividade. Persegue-se, dessa forma, a preservação ou a proteção de alguns moradores individualmente, em geral crianças, no que calculam estar ajudando.
Os ACS também debateram o quanto seu trabalho, mesmo no setor público, é atravessado pela lógica privada, com avaliações sendo realizadas através de cumprimento de metas quantitativas (visitar número determinado de famílias, detectar determinada porcentagem de doentes, etc.). Os participantes refletiram sobre os interesses das empresas privadas quando incentivam e investem no funcionário.
No início do processo educativo, os ACS sentiam que as práticas que realizavam eram frágeis e que não davam conta do volume de trabalho e das questões demandadas. No decorrer das oficinas, eles identificaram as causas dessa fragilidade, o que possibilitou fundamentar melhor suas críticas e até mesmo propor ações em saúde menos precárias, com práticas criativas e ampliadas em relação à prática clínica. Essa síntese, que construíram, permitiu que se aproximassem da discussão sobre as raízes dos problemas de saúde, ocasionando, dessa forma, a busca por soluções. Além disso, essa compreensão fez com que os participantes se sentissem menos frustrados com o serviço, e se motivassem a compor novas propostas de trabalho.
A análise dos dados a partir da categoria “processo de trabalho” demonstra os desgastes sofridos pelos ACS no dia-a-dia dos serviços.
Os ACS se consideram, e são reputados pela equipe técnica, como profissionais da saúde. No entanto, constituiriam um grupo separado, segundo eles, devido à dedicação, ao compromisso e ao vínculo com a população, conforme já descrito na literatura27.
Apesar da prerrogativa de que se desenvolva trabalho interdisciplinar na atenção básica, buscando interação, não somente entre os diversos profissionais, mas também entre estes e usuários1, os ACS apontam falta de apoio dos demais trabalhadores da ESF24. As equipes na ESF trabalham a partir de diferentes dinâmicas, revelando a inexistência de responsabilidade coletiva, o que leva à descontinuidade e à desarticulação das ações desenvolvidas no território27-30.
Dessa forma, apartados de participar das discussões de casos e do planejamento das atividades da USF, os ACS vão participando do processo de trabalho de maneira instrumental, basicamente reproduzindo orientações de conduta aos moradores. Nesse contexto, a equipe técnica monitora esse instrumento, que reproduz a lógica de controle sanitário da população, sem considerar as necessidades locais ou as demandas das famílias que não correspondam às indicações e protocolos previamente definidos nas unidades de saúde27,29. A esse respeito, a OMS sugere que os ACS sejam supervisionados continuamente de forma que possam participar ativamente das decisões e práticas propostas. Ademais, devem receber equipamentos e suprimentos adequados para a realização do trabalho5.
Tendo o ACS a condição de morador do território em que trabalha, consegue vivenciar as duas pontas da relação hierárquica imposta: na equipe da USF ocupa posição instrumental, de inferioridade, de pouco saber; no território e nas visitas domiciliares é detentor de conhecimento, sendo o responsável pela transmissão do saber técnico-simplificado à população. A argumentação utilizada na proposição de mudança de comportamento é o convencimento, este baseado na possibilidade de morte ou de consequências desastrosas caso suas orientações não sejam acatadas6,31.
Por atuar e fazer parte do território, comumente são chamados pela população para serem ouvidores do serviço de saúde, tornando-se depositários dos anseios desta32. Ademais, com frequência são abordados pelos usuários da USF fora do horário de serviço para responder questões referentes ao trabalho, para as quais nem sempre há recursos previstos pela gestão. Denotam-se componentes toyotistas de organização do trabalho, como a exploração da subjetividade do trabalhador, conforme exposto em outro estudo na ESF26.
O papel do ACS não é claramente definido, seu trabalho nem sempre é documentado, embora provoque altas expectativas1 1. Ademais, as raras ações coletivas e de educação desenvolvidas nos serviços, consideradas potenciais de fortalecimento, são pouco valorizadas na ESF em geral, já que a ênfase está voltada na produtividade medida através de metas estabelecidas26,31.
Os ACS são cobrados pela equipe técnica e também pela população, encontrando dificuldades em ambas as pontas. Com frequência são acionados pelos moradores a solucionar os problemas sociais em que se encontram, sendo que não recebem formação sólida ou, em muitos casos, supervisão apropriada, e não encontram espaços de discussão consolidados para essas questões28. “O agente se vê imbricado em um trabalho que vai além de suas competências e possibilidades de resolução”32.
O ACS, então, encontra-se na linha de frente da ESF e se depara com a ambiguidade de ser, por um lado, o profissional com menos formação e menor salário da ESF, e, por outro, o “super-herói”33 diante das expectativas da população e da própria instituição. Esse lugar ocupado pelo ACS gera sentimentos contraditórios e desgaste.
Como reiterado pelos participantes desta pesquisa, é comum que se sintam fracassados e frustrados, principalmente quando não conseguem encaminhar os problemas detectados no território (por exemplo, marcação de consulta com especialista), assumindo sozinhos a responsabilidade da instituição e do Estado, como identificado em outro trabalho26 em pesquisa sobre o processo de trabalho com enfermeiros da ESF.
Os desgastes sofridos pelos ACS no trabalho, citados pelos participantes desta investigação e também comumente relatados na literatura, são resultado da construção das condições de trabalho vigentes no processo de produção em saúde. Esse processo de produção acompanha os de produção em geral, favorecendo a precarização do trabalho, com crescimento da informalidade, das formas flexíveis de contratação e do desemprego, e transferindo responsabilidades ao trabalhador32. Evidencia-se, dessa forma, a entrada da lógica privada no setor público de serviços, com a chamada reestruturação produtiva, o processo de flexibilização do trabalho que desregulamenta os direitos sociais e trabalhistas por meio da redução do número de operários, do aumento da produtividade, da terceirização dos serviços e da primazia do operário polivalente34.
Autores apontam precariedade e instabilidade nas contratações de profissionais da ESF, principalmente de ACS7,9,35. Considerando que o processo saúde-doença é socialmente determinado, isto é, tem relação direta com as formas de reprodução social36, é consenso que a submissão a condições de trabalho precarizado e instável, além de comprometer a qualidade do serviço prestado, leva ao frequente adoecimento do trabalhador.
Há também agravante em relação à fragmentação do trabalho no processo de produção em saúde, no qual a função do trabalhador se reduz a uma tarefa específica ou a várias tarefas também fragmentadas. Dessa forma, tal como em toda produção capitalista, que rouba a intencionalidade de transformação do objeto, o trabalhador perde a compreensão da totalidade do processo de trabalho, tornando-se mero instrumento da produção33.
A divisão social e técnica do trabalho estabelece as condições a que os ACS são submetidos no cotidiano do trabalho, conforme aqui relatadas: ocupar a posição mais baixa na relação hierárquica estabelecida na ESF e ter um precário respaldo do restante da equipe; a desconsideração do conhecimento que trazem; a insegurança da formação; a escassez tecnológica e de outros recursos no trabalho; a realização de práticas reiterativas; e as metas de produtividade como finalidade do trabalho. Estes se configuram como potenciais de desgaste para esses trabalhadores, sendo que impactam diretamente na produção do serviço de saúde.
Os ACS recebem os menores salários da equipe da ESF, pois seu trabalho é considerado o mais simples ou de menor exigência em termos de qualificação. Essa situação está relacionada com o lugar que ocupam na divisão social do trabalho, ou seja, sua classe social, a de moradores dos espaços urbanos mais marginalizados e com menos acesso à infraestrutura. Do lado oposto ao de “elo mais fraco na cadeia”, a pesquisa mostra a complexidade do processo de trabalho em que os ACS estão envolvidos, já que se defrontam com os mais graves problemas sociais, o que os obriga a mobilizar conjunto expressivo de recursos emocionais e afetivos, quando não materiais também.
Além de participarem apenas da execução das tarefas, fica visível que, como esperado nos processos de produção capitalistas em geral, os ACS estranham o objeto do trabalho na atenção primária e passam a se constituir apenas como instrumentos. Percebe-se, por seu turno, que a evidenciação dessa condição de instrumentos potencializa a discussão sobre o que seria a condição de sujeitos; isto é, a de coprodutores das transformações do objeto de trabalho.
Nesse sentido, o processo educativo, eixo da pesquisa-ação desta investigação, permitiu que os ACS formulassem críticas organizadas acerca da posição em que são colocados na ESF. Os resultados apresentados contribuem com o conhecimento na área ao evidenciar que é possível politizar a discussão sobre o processo de trabalho em saúde através de processos educativos.
Como desafio para a atenção primária em saúde, e particularmente para a ESF, coloca-se a necessidade de estabelecer espaços de discussão sobre o processo de trabalho que contribuam para o fortalecimento dos trabalhadores e o desenvolvimento de práticas criativas intersetoriais, que tenham impacto sobre as causas dos problemas do setor. No campo do consumo prejudicial de drogas, tais espaços poderiam contribuir para o estabelecimento de práticas de redução de danos emancipatórias, incentivando atos políticos que visem transformações sociais.