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Produção de normas jurídicas sobre saúde no âmbito do estado democrático de direito brasileiro

Produção de normas jurídicas sobre saúde no âmbito do estado democrático de direito brasileiro

Autores:

Fernando Mussa Abujamra Aith,
Sueli Gandolfi Dallari

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão impressa ISSN 0102-311X

Cad. Saúde Pública vol.30 no.10 Rio de Janeiro out. 2014

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311XPE011014

Introdução

A produção de normas jurídicas sobre saúde é feita, de acordo com o modelo de Estado Democrático de Direito adotado pelo Brasil, pelos Poderes Legislativo (precipuamente) e Executivo (em caráter regulamentar), sendo indispensável a participação direta do povo, temperando o exercício destes poderes. As normas jurídicas assim elaboradas irão organizar o sistema de saúde brasileiro e condicionar condutas e atividades individuais, coletivas, estatais e comerciais para fins de garantia do direito à saúde.

A necessidade de divisão de poderes como condição para o exercício equilibrado do poder normativo em uma determinada sociedade já era aventada por Aristóteles em sua obra Política 1. Essa noção foi consagrada definitivamente com o advento dos Estados Modernos 2 e, principalmente, da positivação jurídica da separação de poderes nas Constituições destes Estados (US Constitution. http://1776.org/us-constitution/, acessado em 20/Ago/2014). A divisão do poder estatal em três poderes consolida o sistema de freios e contrapesos, com o objetivo principal de equilibrar seu exercício, pois cada um deles fiscaliza e impõe limites à atuação do outro poder, evitando abusos e arbitrariedades.

A complexidade da vida social, gerando tensão entre os diferentes poderes do Estado, provocou a mudança qualitativa do conceito de Estado de Direito, incorporando o adjetivo Democrático. Sinalizou-se, portanto, a necessidade de equilibrar a tradicional democracia representativa, na origem da teoria da separação dos poderes, com a democracia participativa, elemento fundamental para reforçar a busca pela justiça na sociedade contemporânea. Assim, no campo da produção de normas jurídicas sobre saúde a tensão entre os poderes é constante e deve ser acompanhada de perto pela sociedade para que o interesse público e a saúde coletiva sejam preservados.

A RDC no 52/2011 da ANVISA

Vejamos o caso da RDC no 52/2011 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), de 6 de outubro de 2011, que “dispõe sobre a proibição do uso das substâncias anfepramona, femproporex e mazindol, seus sais e isômeros, bem como intermediários e medidas de controle da prescrição e dispensação de medicamentos que contenham a substância sibutramina, seus sais e isômeros, bem como intermediários, e dá outras providências3 e as discussões que sobre ela estão sendo travadas no Congresso Nacional.

O objeto da RDC no 52/2011 suscita controvérsias técnicas e jurídicas. Desde 2006 a ANVISA vem discutindo de forma mais aprofundada uma regulação da produção e comercialização de anorexígenos. O tema foi: (i) colocado em Consulta Pública no final de 2006 4; (ii) tratado na RDC no 58/2007, que dispõe sobre o aperfeiçoamento do controle e fiscalização de substâncias psicotrópicas anorexígenas; e (iii) objeto de um estudo técnico aprofundado elaborado pelo corpo técnico da agência, condensado no Relatório Integrado sobre a Eficácia e Segurança dos Inibidores de Apetite 5, publicado em 2011.

O entendimento da ANVISA, consolidado na RDC no 52/2011, foi que o consumo humano dessas substâncias representa um risco à saúde que deve ser regulado de forma mais rígida, por meio (i) da proibição da produção e comercialização dos medicamentos anorexígenos anfepramona, femproporex e maxindol; e (ii) do controle rígido da prescrição e dispensação da sibutramina.

A decisão da ANVISA suscitou intensos debates na sociedade brasileira, a ponto de levar o Congresso Nacional a tramitar um Projeto de Decreto Legislativo com a única finalidade de sustar a validade da RDC no 52/2011. Iniciado na Câmara dos Deputados, o Projeto de Decreto Legislativo no 1.123/2013 6, de autoria do Deputado Federal Beto Albuquerque, tem como justificativa, que “a proibição da produção e comercialização dos medicamentos anorexígenos anfepramona, femproporex e maxindol e a permissão altamente restritiva para o uso da sibutramina causaram grande insatisfação entre a classe médica, constituindo-se num retrocesso ao tratamento dos obesos no país”.

Aprovado pela Câmara Federal, o Projeto de Decreto Legislativo tramita agora em fase terminativa pelo Senado Federal com a denominação de PDS no 52/2014. Esse já obteve aprovação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, baseada no Parecer no 620/2014, relatado pela Senadora Lúcia Vânia. Nela, a senadora afirma que “a RDC no 52/2011 afronta o inciso XIII do Art. 5o da Constituição da República, pois interfere no livre exercício da profissão médica. Além disso, a proibição de medicamentos para o tratamento da obesidade veda o acesso à saúde de significativa parcela da população, contrariando o Art. 196 da Carta7.

É conveniente anotar, entretanto, para bem ilustrar a tensão acima referida, que o livre exercício de qualquer profissão não exclui o poder estatal de regulamentação, a ser concretizado tanto pelo Legislativo quanto pelo Executivo. Caso o referido Projeto de Decreto Legislativo seja aprovado, a RDC no 52/2011 perderá definitivamente sua vigência e eficácia, fazendo-se “tabula rasa” dos mecanismos de democracia direta que nela influíram.

Limites constitucionais ao poder regulamentar do Poder Executivo

A base da limitação do poder regulamentar do Executivo está no princípio da legalidade. Esse princípio, que teve suas origens na Carta Magna inglesa de 1215 e foi consolidado pela Revolução Francesa de 1789, foi adquirindo ao longo dos séculos uma concepção bastante diferente. Pilar do direito positivo moderno, o princípio da legalidade alçou as leis a fontes primárias do Direito. Dentre as funções primordiais da lei, vale mencionar a garantia de segurança jurídica aos cidadãos; a limitação dos poderes dos governantes, que somente poderão fazer aquilo que as leis autorizam; e a garantia democrática, segundo a qual a lei expressaria a vontade popular, o contrato social.

A complexidade dos ordenamentos jurídicos modernos trouxe a proliferação das normas jurídicas decorrentes da regulamentação, ou seja, de normas jurídicas infralegais, produzidas por autoridades administrativas específicas e dotadas de poder normativo. É o caso dos Decretos expedidos pelo Presidente da República (Art. 84, IV), pelos Governadores e Prefeitos; é o caso das Portarias expedidas por Ministros de Estado, Secretários federais, estaduais e municipais, presidentes de autarquias, dentre outros; é o caso ainda das Resoluções exaradas por Conselhos e Diretorias Colegiadas de Agências Reguladoras.

Na teoria tradicional do Estado de Direito, o limite concreto do Poder normativo do Executivo é definido pelos controles que devem ser feitos com relação às normas jurídicas por ele editadas. Neste início de milênio, o Estado de Direito se quer democrático, exige mais do que os controles tradicionais. O princípio da legalidade, que nunca foi vazio de conteúdo político, encontra sua raiz na lógica segundo a qual todo poder emana do povo e por ele será exercido tanto indiretamente (elegendo representantes) quanto diretamente (Constituição Federal, art. 1o, parágrafo único).

Produção de normas jurídicas e democracia sanitária

A produção democrática da norma jurídica de direito sanitário é um princípio constitucional consagrado pelo reconhecimento da soberania popular (Constituição Federal, art. 1o, parágrafo único) e uma diretriz constitucional consagrada pelo Art. 198, III, da Constituição Federal. Pressupõe-se que, quanto mais democrática for a elaboração da norma, maior será a sua legitimação social, eficácia e efetividade. Isso vale tanto para as normas aprovadas pelo Legislativo quanto para as normas editadas pelo Executivo. A ampliação dos mecanismos de participação da sociedade no processo de produção normativa é o principal caminho que se abre para a construção de uma verdadeira democracia sanitária no país. O conceito jurídico de saúde, a real extensão deste direito e o tamanho do dever do Estado são traduzidos pelas escolhas normativas que o Estado faz com relação à efetivação do direito à saúde. Essas escolhas devem ser feitas, portanto, em um ambiente de democracia sanitária, que possibilite a participação da sociedade no processo decisório normativo e o acesso universal e igualitário aos serviços oferecidos no sistema público de saúde.

O caso da RDC no 52/2011 demonstra bem como se dá o tradicional controle feito pelo Poder Legislativo. A perspectiva que se abre para a sociedade, no entanto, deve ir para além desses controles tradicionais entre os poderes e caminhar no sentido de uma ampliação da participação da sociedade na elaboração das normas jurídicas em saúde. É necessário valorizar, portanto, a experiência democrática de elaboração da RDC no 52/2011 e cuidar para que o mecanismo formal da separação de poderes não ignore, por exemplo, a realização da consulta pública (democracia direta) e o relatório técnico de um órgão especializado (democracia representativa).

A tensão entre o Executivo e o Legislativo em saúde é inerente ao sistema jurídico vigente. O caminho para que a tensão entre o Executivo e o Legislativo na produção normativa se transforme em pacto social para a proteção do direito à saúde é o aprofundamento da democracia sanitária. O reconhecimento da saúde como direito humano fundamental e a criação de mecanismos de participação da sociedade nas decisões do Estado, inclusive nas decisões normativas, são os fundamentos da democracia sanitária.

REFERÊNCIAS

. Aristóteles. Política. Brasília: Editora da UnB; 1999.
. Montesquieu. O espírito das leis. São Paulo: Editora Martins Fontes; 2000.
3.  . Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução de Diretoria Colegiada – RDC no 52, de 06 de outubro de 2011. Dispõe sobre a proibição do uso das substâncias anfepramona, femproporex e mazindol, seus sais e isômeros, bem como intermediários e medidas de controle da prescrição e dispensação de medicamentos que contenham a substância sibutramina, seus sais e isômeros, bem como intermediários e dá outras providências. Diário Oficial da União 2011; 10 out.
4.  . Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Consulta Pública no 89, de 12 de dezembro de 2006. Diário Oficial da União 2006; 13 dez.
. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Relatório integrado sobre a eficácia e segurança dos inibidores de apetite. (accessed on 20/Aug/2014).
6.  . Albuquerque B. Projeto de Decreto Legislativo no 1.123/2013. Susta a Resolução – RDC no 52/2011, de 6 de outubro de 2011, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que “Dispõe sobre a proibição do uso das substâncias anfepramona, femproporex e mazindol, seus sais e isômeros, bem como intermediários e medidas de controle da prescrição e dispensação de medicamentos que contenham a substância sibutramina, seus sais e isômeros, bem como intermediários e dá outras providências”. http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=9F4706478BF4D98AE30E5AFA94A10091.proposicoesWeb2?codteor=1115399&filename=PDC+1123/2013 (accessed on 20/Aug/2014).
7.  . Vânia L. Parecer no 620 de 2014. http://www.senado.gov.br/atividade/Materia/getPDF.asp?t=153450&tp=1 (accessed on 20/Aug/2014).