Compartilhar

Produção textual de crianças sem dificuldades de aprendizagem

Produção textual de crianças sem dificuldades de aprendizagem

Autores:

Maria Aparecida Gonçalves dos Santos,
Simone Rocha de Vasconcellos Hage

ARTIGO ORIGINAL

CoDAS

versão On-line ISSN 2317-1782

CoDAS vol.27 no.4 São Paulo jul./ago. 2015

http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20152014037

INTRODUÇÃO

Muito mais do que dominar técnicas ou regras gramaticais, saber escrever é engendrar uma proposta de sentido/leitura. O ato de escrever pressupõe ter o que dizer, razões para dizer, constituir-se enquanto sujeito do dizer e dispor dos mecanismos e estratégias desse dizer. Exige de quem escreve a tomada de decisões em vários níveis - semântico, pragmático, discursivo, gramatical(1).

Professores de língua materna constantemente se queixam das dificuldades dos alunos em produzir textos, sendo que tal dificuldade não é exclusiva da aula de português, mas parece agravar-se nesse espaço, onde é mais visível a desarticulação da linguagem do seu contexto de produção(2).

Uma escrita competente implica em habilidades distintas, incluindo a produção rápida e precisa de letras e palavras, a geração de ideias, a seleção de vocábulos, o uso apropriado de gramática e pontuação, ortografia exata, planejamento, tradução do planejamento para sequências de linguagem, avaliação e revisão(3). Nos primeiros anos escolares, o enfoque do ensino da escrita situa-se, sobretudo, no código escrito para escrever letras e palavras. Após o mecanismo das correspondências grafo-fonéticas ser adquirido, a instrução sobre a escrita passa a incidir sobre o desenvolvimento de competências mais avançadas, como produzir frases complexas, planejar a escrita e escrever com clareza e concisão(4 , 5 ).

No campo clínico, tem ocorrido significativo avanço das pesquisas sobre a investigação da leitura, seja sobre a avaliação, seja sobre os mecanismos subjacentes a ela(6 - 8 ), mas a verificação da escrita no que tange a produção de texto é pouco explorada. Em relação à escrita ou à leitura parece ainda não haver um consenso sobre quais desempenhos são esperados a cada ano escolar, além de existir uma grande diversidade de formas de avaliação dessas habilidades(9).

Apesar de a leitura e a escrita de crianças serem tema predominante nos meios educacionais, elas têm sido foco também de pesquisas em áreas como a Linguística, a Psicologia Cognitiva e a Fonoaudiologia. Conhecer as estratégias de leitura e escrita utilizadas por crianças nos anos iniciais de escolarização é um requisito essencial para a prevenção, a identificação e o tratamento das dificuldades de leitura e escrita(10).

Pesquisas brasileiras que avaliam a produção de textos são escassas, e aquelas que a fazem buscam instrumentalizar o professor de língua portuguesa do ensino fundamental a contemplar uma das práticas de linguagem sugeridas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN): a redação(11 - 13 ). Recentemente protocolo para análise da produção escrita foi lançado(14) no intuito de preencher essa lacuna, mas, diferentemente do que propõe este trabalho, a análise ocorreu sobre produções textuais de escolares que avançaram no processo de alfabetização, do 5º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio. Neste contexto, o principal objetivo deste estudo foi caracterizar as habilidades de escrita para produção de texto de escolares, comparar o desempenho dos estudantes das escolas pública e privada, e, ainda, verificar uma possível evolução com o decorrer dos anos escolares.

MÉTODOS

Para a realização do estudo, foi concedido o parecer CAAE 01448612.0.0000.5417 pelo Comitê de Ética em Pesquisa de instituição pública. Os responsáveis pelos escolares leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Participaram da pesquisa 160 escolares entre 8 e 13 anos, do 4º ao 7º ano do ensino fundamental, sendo 80 alunos de escolas públicas e 80 de escola particular. Em cada ano escolar foram avaliados 40 estudantes, 20 de cada tipo de escola. Optou-se por iniciar a coleta a partir do 4º ano pelo fato de os escolares dos anos anteriores apresentarem habilidades pouco desenvolvidas para a produção de texto. A abordagem pedagógica adotada nas escolas públicas pesquisadas é a Construtivista, centrada no aluno, que é visto como alguém com um tempo individual de aprendizado. Na privada, o modelo é o tradicional, centrado no conteúdo, sendo estabelecido, previamente, o quanto a criança deve aprender em cada ano.

O desempenho nos subtestes de escrita e leitura de palavras do Teste de Desempenho Escolar (TDE)(15) foi utilizado como um dos critérios de inclusão para a seleção dos escolares. Além do desempenho nos subtestes compatível com a série/ano, o estudante tinha de estar matriculado em escola de ensino fundamental, não ser repetente e não apresentar registro em prontuário escolar de qualquer deficiência, intelectual, visual, auditiva ou física. Inicialmente, 170 escolares foram selecionados; todavia, 10 foram eliminadas por não obter a pontuação prevista para o ano escolar no TDE.

Os estudantes selecionados foram convidados a elaborar três textos: narrativa, bilhete ou carta (a carta foi definida para estudantes do 6º e 7º anos, por exigir maior elaboração do que o bilhete) e descrição de regra de jogo. O papel oferecido aos escolares do 4º e 5º anos para elaborar a narrativa continha três imagens, a de uma garotinha andando de bicicleta, a de um cachorrinho e de um ambiente de sala de aula, no intuito de estimular a imaginação da criança. A folha oferecida aos escolares do 6º e 7º anos continha a imagem de uma sala de cinema, no intuito de estimular a narrativa da ida ao cinema ou de um filme, ou ambos.

Os escolares foram avaliados em pequenos grupos na própria escola em sala silenciosa e com poucos estímulos visuais. Após a realização da composição dos textos, os materiais foram analisados por pedagogo com experiência em correção de redações. A apreciação dos textos foi realizada por meio de "Protocolo de Análise de Produção Textual" (Anexo 1) desenvolvido pelos pesquisadores para este estudo. O protocolo foi construído com base em conceitos sobre tipos e gêneros textuais. Os conceitos utilizados foram os de Marcuschi(16), em que tipos textuais se referem à estrutura composicional dos textos, envolvendo os aspectos sintáticos, lexicais, gramaticais e relações lógicas, sendo eles narrativo, descritivo, expositivo e argumentativo. Os gêneros textuais são realizações linguísticas concretas orais ou escritas, como a crônica, a novela, as regras de jogo, as receitas, os e-mails, os bilhetes, as cartas e outros. A aplicação do protocolo incidiu sobre 480 produções, já que cada criança produziu 3 textos. Dúvidas sobre a correção das redações foram resolvidas por consenso.

O protocolo analisou as habilidades: estética, coerência, coesão, clareza e concisão, norma culta e estruturação gramatical e lexical, considerando duas produções (bilhete/carta e narrativa). A análise da produção textual envolvendo a descrição de regras de brincadeira ou jogo teve um tópico específico no protocolo em função de apresentar características próprias (Anexo 1).

A habilidade estética foi composta pelos itens: letra legível, ausência de rasuras, presença de margens regulares, utilização de parágrafos e de letras maiúsculas. A letra deveria ser legível em todos os parágrafos para atribuição de 1 ponto. Para o item "rasura", foi atribuído zero ponto para o escolar que não se preocupou em apagar bem, deixando o texto com uma escrita sobreposta a outra - para aqueles que elaboraram seus textos com grafite. Para os participantes do 6º e 7º anos, foi estimado zero para aqueles alunos que produziram seus textos a tinta e cometeram mais de três rasuras. Quanto aos itens "margens regulares", "utilização de parágrafos" e "letras maiúsculas", para obter 1 ponto nesses aspectos, o estudante deveria ter apresentado as habilidades descritas em todas as partes do texto.

Quanto à coerência, os aspectos analisados foram: ideia central, relação entre o título e conteúdo, ideias encadeadas, argumentos adequados, adequação à proposta, nível de linguagem compatível com o ano. Foi verificado se ao escrever o aluno desenvolveu uma ideia e se, ao expor essa ideia, soube argumentar com proposições adequadas em uma ordem temporal; se o que escreveu estava de acordo com o título proposto e, ainda, se a linguagem estava adequada ao ano escolar.

A coesão envolveu os elementos de ligação entre as partes da frase, como vírgula, conjunção, ponto e vírgula, ponto final e os elementos de ligação entre as frases e um novo parágrafo. Fez parte da análise da coesão o critério "repetição de palavras inadequadas", como "aí", "e", "então", entre outras. Para obter 1 ponto, o aluno deveria apresentar, pelo menos, uma situação em que os elementos de ligação aparecessem entre as partes das frases e entre frases e parágrafos. Não recebeu ponto quem produziu seus dois textos (narrativa e bilhete/carta) em um único parágrafo.

Quanto ao quesito clareza e concisão, os elementos verificados foram: uso de palavras com sentido apropriado, frases completas, ausência de informações repetidas e de repetição de palavras. Foi considerada informação repetida a inclusão de fatos que já tinham sido expressos e, no caso das palavras, a ausência de vocábulos sinônimos ou pronomes. O uso da mesma informação duas vezes (uma repetição), da mesma palavra três vezes (duas repetições), de duas palavras com sentido inapropriado e a construção de uma frase incompleta levavam o estudante a não pontuar no item.

A norma culta envolveu ortografia correta, acentuação completa e pontuações adequadas. Os critérios para atribuir a pontuação foram: para escolares do 4º e 5º anos, não se atribuiu ponto quando houve três ou mais erros de ortografia, de acentuação e de pontuação; já para os escolares do 6º e 7º anos não se atribuiu ponto quando houve um erro nos diferentes aspectos, considerando a consolidação da norma culta neste nível de escolaridade.

A estruturação gramatical e lexical envolveu os seguintes itens: presença de períodos simples e compostos, de concordância verbal e nominal, utilização de pronomes e advérbios. Foi atribuído 1 ponto se houve, pelo menos, três períodos de cada tipo (simples e composto). O domínio da concordância verbal foi verificado quando o verbo foi flexionado adequadamente para concordar com o sujeito, e domínio de concordância nominal foi constatado quando houve relação de gênero e número entre um substantivo (ou pronome) e as palavras que a ele se conectam. Tanto para a concordância verbal como para a nominal o aluno só recebia 1 ponto se não apresentasse erro. Para o uso de pronomes e advérbios, foi atribuído 1 ponto se houve o aparecimento de ambos, pelo menos uma vez.

Finalizando a análise, foi verificada a descrição de regras de jogo ou brincadeira: utilização de parágrafos (ou marcadores), pontuações, ideias encadeadas (sequência de procedimentos ou normas), ausência de informações repetidas e de repetição de palavras.

Foi realizada análise estatística descritiva com valores de média, mediana, desvio padrão. Para a comparação do desempenho geral no protocolo entre os anos escolares, foi utilizado o teste de Kruskal-Wallis e Miller. Não foi necessária a implementação de qualquer tipo de correção para as comparações múltiplas, pois o teste de Miller mantém o nível de significância em 5%. Para a comparação entre os grupos - escolas particular e pública - foi utilizado o teste de Mann-Whitney. Para complementar o teste de significância estatística na comparação entre os tipos de escola, foi verificado o tamanho de efeito (d) de Cohen(17), com os seguintes pontos de corte para a classificação: valores ≥0,8=tamanho de efeito grande; entre 0,8 a 0,2=tamanho de efeito médio; <0,2=tamanho de efeito pequeno. Foi adotado nível de significância de 5% (p<0,05).

RESULTADOS

As Tabelas 1 e 2 apresentam o desempenho dos escolares de escolas pública e privada nas habilidades de escrita.

Tabela 1. Desempenho nas habilidades de escrita dos escolares da escola pública  

Habilidades avaliadas Pública (n=80)
Média±DP Mediana Mínimo Máximo Lower
Quartil
Upper
Quartil
Quartil
Range
Estética 3,55±1,19 4,00 1,00 5,00 3,00 4,50 1,50
Coerência 4,28±1,90 5,00 0,00 6,00 3,00 6,00 3,00
Coesão 1,48±1,03 1,00 0,00 3,00 1,00 2,00 1,00
Clareza/concisão 3,08±1,06 3,00 1,00 4,00 2,50 4,00 1,50
Norma culta 0,56±0,82 0,00 0,00 3,00 0,00 1,00 1,00
E. Gram. e Lexical 5,66±0,64 6,00 3,00 6,00 5,00 6,00 1,00
ECC jogo 3,35±1,25 4,00 0,00 5,00 3,00 4,00 1,00
Pontuação total 21,95±5,44 23,00 6,00 31,00 18,00 26,00 8,00

Legenda: E. Gram. e Lexical = estrutura gramatical e lexical; ECC jogo = estética, coerência e clareza das regras do jogo; DP = desvio padrão

Tabela 2. Desempenho nas habilidades de escrita dos escolares da escola privada 

Habilidades avaliadas Privada (n=80)
Média±DP Mediana Mínimo Máximo Lower
Quartil
Upper
Quartil
Quartil
Range
Estética 4,63±0,70 5,00 3,00 5,00 4,50 5,00 0,50
Coerência 5,91±0,40 6,00 3,00 6,00 6,00 6,00 0,00
Coesão 2,59±0,74 3,00 0,00 3,00 2,00 3,00 1,00
Clareza/concisão 3,88±0,37 4,00 2,00 4,00 4,00 4,00 0,00
Norma culta 2,19±1,07 3,00 0,00 3,00 1,00 3,00 2,00
E. Gram. Lexical 5,99±0,11 6,00 5,00 6,00 6,00 6,00 0,00
ECC Jogo 4,23±1,20 5,00 0,00 5,00 4,00 5,00 1,00
Pontuação total 29,40±3,08 31,00 17,00 32,00 28,00 32,00 4,00

Legenda: E. Gram. e Lexical = estrutura gramatical e lexical; ECC jogo = estética, coerência e clareza das regras do jogo; DP = desvio padrão

As Tabelas 3 e 4 expõem as medidas descritivas do desempenho dos escolares das instituições pública e privada, respectivamente, em cada uma das habilidades avaliadas.

Tabela 3. Média, mediana e desvio padrão do desempenho dos escolares do 4° ao 7° ano da escola pública nas habilidades de escrita estudadas 

Habilidades avaliadas Pública (n=80)
4° ano 5° ano 6° ano 7° ano
Média±DP Md Média±DP Md Média±DP Md Média±DP Md
Estética 2,85±1,18 3,00 4,15±0,93 4,00 3,70±1,08 4,00 3,50±1,24 3,50
Coerência 4,25±2,07 5,00 3,85±2,28 5,00 4,90±1,33 5,50 4,10±1,74 4,00
Coesão 0,75±0,85 1,00 1,30±0,92 1,00 2,05±0,89 2,00 1,80±1,01 1,50
Clareza/concisão 2,60±0,94 3,00 3,10±1,07 3,00 3,65±0,59 4,00 2,95±1,32 4,00
Norma culta 0,20±0,41 0,00 0,50±0,69 0,00 0,50±0,89 0,00 1,05±1,00 1,00
E. Gram. e Lexical 5,55±0,83 6,00 5,60±0,68 6,00 5,85±0,37 6,00 5,65±0,59 6,00
ECC jogo 2,75±1,59 3,00 3,25±1,12 3,00 4,15±0,59 4,00 3,25±1,16 4,00
*Pontuação total 18,95±5,49 20,00 21,75±5,75 23,00 24,80±3,16 25,00 22,30±5,63 24,00

Legenda: Md = mediana; DP = desvio padrão; E. Gram. e Lexical = estrutura gramatical e lexical; ECC jogo = estética, coerência e clareza das regras do jogo

Tabela 4. Média, mediana e desvio padrão do desempenho dos escolares do 4° ao 7° ano da escola privada nas habilidades de escrita estudadas 

Habilidades avaliadas Privada (n=80)
4° ano 5° ano 6°’ ano 7° ano
Média±DP Md Média±DP Md Média±DP Md Média±DP Md
Estética 4,90±0,45 5,00 4,95±0,22 5,00 4,65±0,75 5,00 4,00±0,79 4,00
Coerência 5,90±0,31 6,00 5,95±0,22 6,00 6,00±0,00 6,00 5,80±0,70 6,00
Coesão 2,35±0,81 3,00 2,85±0,49 3,00 2,65±0,67 3,00 2,50±0,89 3,00
Clareza/Concisão 3,75±0,44 4,00 3,90±0,31 4,00 3,95±0,22 4,00 3,90±0,45 4,00
Norma Culta 1,85±1,27 2,5 2,50±0,89 3,00 2,00±0,97 2,00 2,40±1,05 3,00
E. Gram. e Lexical 6,00±0,00 6,00 6,00±0,00 6,00 6,00±0,00 6,00 5,95±0,22 6,00
ECC Jogo 3,75±1,62 4,00 4,75±0,55 5,00 4,10±1,17 4,00 4,30±1,08 5,00
Pontuação Total 28,50±3,24 28,50 30,90±2,15 32,00 29,35±2,41 29,50 28,85±3,88 30,00

Legenda: Md = mediana; DP = desvio padrão; E. Gram. e Lexical = estrutura gramatical e lexical; ECC jogo = estética, coerência e clareza das regras do jogo

A Figura 1 retrata a comparação da pontuação total (desempenho geral) entre os anos escolares, assinalando diferença significativa entre o 4º e 6º anos da escola pública e entre o 4º e 5º anos da escola privada. A medida "d" representada na Tabela 5 apontou tamanho de efeito alto (superior a 0,80) ou muito alto (superior a 1,30) entre os referidos anos escolares, tanto da escola pública como privada.

Figura 1. Comparação da pontuação total dos escolares por grau de escolaridade das escolas privada e pública 

Tabela 5. Tamanho de efeito da comparação do desempenho geral (pontuação total) entre os anos escolares das diferentes escolas 

Comparação entre os anos Tamanho de efeito (D)
Escola pública
(n=20)
Escola privada
(n=20)
4°x5° 0,50 0,87
4°x6° 1,31 0,30
4°x7° 0,75 0,10
5°x6° 0,66 0,68
5°x7° 0,10 0,65
6°x7° 0,55 0,15

Tamanho de efeito (d): pequeno: 0,20; médio: 0,50; alto: 0,80; muito alto: 1,30

Ao comparar os grupos de cada escola, os de instituição privada obtiveram melhor desempenho do que os da pública, havendo diferença significativa entre eles (Tabela 6). A medida "d" para as habilidades avaliadas pelo protocolo apontou tamanho de efeito médio para "estrutura gramatical/lexical" e "regras de jogo"; para as outras, o tamanho de efeito foi alto (superior a 0,80) ou muito alto (superior a 1,30).

Tabela 6. Comparação da média de pontuação das habilidades de escrita e tamanho de efeito, entre os estudantes das escolas pública e privada 

Habilidades avaliadas Pública
Média±DP
Privada
Média±DP
Valor de p d
Estética 3,55±1,19 4,63±0,70 0,000* 1,11
Coerência 4,28±1,90 5,91±0,40 0,000* 1,03
Coesão 1,48±1,03 2,59±0,74 0,000* 1,24
Clareza 3,08±1,06 3,88±0,37 0,000* 1,01
Norma culta 0,56±0,82 2,19±1,07 0,000* 1,71
Estrutura gramatical e lexical 5,66±0,64 5,99±0,11 0,000* 0,72
Estética, coerência e clareza do jogo 3,35±1,25 4,23±1,20 0,000* 0,72
Pontuação total 21,95±5,44 29,40±3,08 0,000* 1,69

*Resultado significante da comparação entre grupos (teste de Mann-Whitney). Tamanho de efeito (d): pequeno: 0,20; médio: 0,50; alto: 0,80; muito alto: 1,30 Legenda: DP = desvio padrão

DISCUSSÃO

Características dos textos dos escolares

A caracterização da produção de textos de escolares pode instrumentalizar o professor de língua portuguesa do ensino fundamental na verificação da redação de seus alunos e também auxiliar fonoaudiólogos na avaliação da elaboração de textos de seus pacientes. Este estudo analisou 480 redações de 160 crianças do 4º ao 7º ano do ensino fundamental no intuito de obter um perfil dessas produções para alunos de escolas privada e pública.

Tendo como base o gênero textual e suas características essenciais quanto ao tema e ao modo composicional (estrutura), o Protocolo (Anexo 1) verificou estética, coesão, coerência, clareza e concisão, norma culta, estruturação gramatical e alguns desses aspectos na descrição de regras de jogo.

A verificação da estética do texto analisou as habilidades dos estudantes em expressar um texto legível, sem rasuras e com estruturação visual adequada (margem, parágrafos, letra maiúscula). A média obtida pelas crianças das escolas públicas mostra que, pelo menos, três dos cinco itens são atendidos, e as da escola privada, pelo menos, quatro (Tabelas 1 e 2). A habilidade estética é essencial para o entendimento e a organização visual do texto(18). Analisando de forma qualitativa os itens verificados na estética, a utilização de parágrafos foi aquele em que os alunos da escola pública demonstraram pouca aptidão, a maioria escreveu seu texto em um único parágrafo, apesar de desencadear a ideia com coerência. Esperava-se que todos tivessem domínio deste aspecto, pois a orientação de tal regra textual inicia-se nos primeiros anos de escolarização(19). A separação em parágrafos facilita a compreensão do leitor e oferece mais organização ao texto(20).

A coerência foi outra habilidade investigada nos textos dos escolares, considerando apresentação de ideia central e encadeadas, relação entre título e conteúdo, adequação da proposta e da argumentação e nível de linguagem compatível com o ano escolar. Para que um texto seja coerente, ele deve apresentar uma relação lógica e harmônica entre suas ideias, que devem ser ordenadas e interligadas de maneira clara, formando, assim, uma unidade na qual as partes tenham nexo(1). Os estudantes da escola privada (Tabela 2) apresentaram valores da mediana iguais ao valor total do item (6,0), e os da escola pública (Tabela 1), próximo a ela (5,0). A coerência tem relevância nos PCN(19), visto que a escola prioriza e enfatiza a habilidade para a organização de ideias; assim, o bom desempenho dos alunos parece refletir tal ênfase.

A coesão é um dos princípios constitutivos da produção textual que se expressa por meio de características linguísticas na superfície do texto, dando-lhe continuidade, sequência e unidade de sentido(16 , 21 ). Apesar de um texto incoerente poder ser o resultado do mau uso dos elementos de coesão textual, já que um erro no emprego dos mecanismos gramaticais e lexicais prejudica o entendimento do texto, coesão e coerência são aspectos diferentes. Metade dos alunos da escola privada demonstrou apresentar os elementos coesivos (Tabela 2), independentemente do ano escolar (Tabela 4). Na escola pública (Tabela 3), os escolares atendem, em média, um item no 4º e 5º anos, melhorando para dois itens no 6º ano. Esses alunos produziram os seus textos, em alguns casos, em um único parágrafo, o que comprometeu a existência de cadeia coesiva.

A capacidade de clareza e concisão dos textos produzidos foi verificada em relação ao uso de vocabulário apropriado e de frases completas e à ausência de informações e palavras repetidas. Clareza e objetividade são aspectos importantes em qualquer texto e devem atender ao princípio da economia linguística: empregar o mínimo de palavras para informar o máximo(2). Uma escrita competente implica na seleção de vocábulos e no uso apropriado da gramática(3). A maioria dos estudantes de todos os anos da escola privada produziu textos com essas características (Tabela 2). Na escola pública (Tabela 1), tal habilidade mostra-se consolidada em metade dos alunos do 6º e 7º anos (medianas de ambos os anos correspondente a 4,00). Dos itens verificados, a falha na coesão referencial, ou seja, a não utilização de termos que remetem ao mesmo referente (sinônimos ou pronomes) foi aquele que mais prejudicou a clareza e a concisão dos textos.

No Protocolo utilizado para este estudo, a norma culta envolveu os aspectos de ortografia, acentuação e pontuação, sendo eles verificados de forma global, sem a classificação dos erros ortográficos. A análise da distribuição dos resultados por ano escolar indicou que a mediana do 4º ao 6º ano foi zero, subindo para 1,00 no 7º ano (Tabela 3). Na escola privada, o desempenho é melhor em todos os anos, mas, diferentemente do perfil que se observa nas outras habilidades, a mediana atinge 3,00 (pontuação máxima) somente para o 5º e 7º anos (Tabela 4).

O desempenho deficitário da escola pública em norma culta, comparado ao da escola privada (Tabela 6), pode ser reflexo do método adotado para a construção e consolidação dos conhecimentos de leitura e escrita, o chamado Construtivismo Educacional. Na concepção Construtivista adotada na Pedagogia parte-se do pressuposto de que se o aprendiz estiver mergulhado em um meio que lhe proporcione e lhe motive a aquisição da alfabetização, ele poderá realizar tal intento por si mesmo. O papel do professor é observar o aluno, investigar quais são os seus conhecimentos prévios, e, a partir dessa bagagem, procurar apresentar diversos elementos para que o aluno construa seu conhecimento(22). Portanto, as correções sobre a ortografia, a acentuação e a pontuação passam a ser indiretas e relevadas ao segundo plano.

A análise da estruturação gramatical e lexical nas redações mostrou que este aspecto está consolidado nas escolas participantes. Nos primeiros anos escolares o enfoque do ensino situa-se sobre o domínio das correspondências grafo-fonéticas, mas, com o avanço da escolaridade, a instrução passa a incidir sobre o desenvolvimento de competências mais avançadas, como produzir frases complexas(4 , 5 ). Apesar de os estudantes, paralelamente, fazerem uso da linguagem escrita informal em redes sociais (abreviação de palavras, desrespeito às regras de concordância nominal e verbal), parece que isto não está influindo na estruturação gramatical da escrita formal.

Os PCN(19) dão grande ênfase aos chamados textos instrucionais ao tratar do ensino de gêneros textuais, cuja finalidade do discurso é de instruir, orientar sobre algo. Dessa forma, tal habilidade foi contemplada no Protocolo do estudo. Quanto à habilidade para escrever regras do jogo ou brincadeira, os estudantes da escola privada demonstraram desempenho similar nos diferentes anos pesquisados (Tabela 4). As medianas para todos os anos ficaram entre 4,00 e 5,00 pontos. As medianas da escola pública apontam que metade dos estudantes do 6º e 7º anos obteve 1 ponto a mais do que os do 4º e 5º anos. Levanta-se a hipótese de que essa diferença ocorra pelo fato de que os escolares do 4º ano da instituição pública ainda não adquiriram o hábito da leitura de manuais de jogos. A inserção dos gêneros orais na rotina escolar desde a educação infantil pode servir para evitar as grandes dificuldades que os alunos encontram no futuro quando se veem diante de situações em que devem escrever manuais ou textos similares(16).

Em relação à pontuação total dos estudantes da escola pública, só a partir do 6º ano o desempenho geral deles atende a 75% do Protocolo, indicando que as habilidades avaliadas pelo instrumento não estão consolidadas nos primeiros anos. A Figura 1 mostra uma tendência de evolução do 4º ao 6º ano (Figura 1), mas a comparação entre os anos não apontou diferença estatística, exceto entre o 4º e 6º anos, com tamanho de efeito muito alto (Tabela 5). Quanto aos estudantes da escola privada, metade deles atingiu pontuação bem próxima da total, 31 pontos (Tabela 2), e 75% deles atingiram 28 pontos (mais de 85% do Protocolo). Os escolares tiveram um bom desempenho na grande maioria dos aspectos avaliados, sugerindo que os aspectos medidos pelo protocolo estão consolidados desde o 4º ano. A comparação entre os anos também não apontou diferença, exceto entre o 4º e 5º anos (Figura 1), com tamanho de efeito alto (Tabela 5).

O 5º ano da escola privada foi aquele com melhor desempenho no protocolo. Considerando os PCN(19), é nesse ano que estão sendo consolidadas diversas normas da escrita para a produção de texto, encerrando uma etapa do ensino fundamental. No 6º e 7º anos novos conteúdos são inseridos e, dessa forma, os escolares estão passando por um período de reestruturação gramatical, o que pode desestabilizar o conhecimento de outros conteúdos. Por outro lado, houve um declínio no desempenho geral desses escolares no 7º ano (Tabela 4), sendo que o motivo pode estar circunscrito a este grupo estudado, que não demonstrou motivação e interesse na realização dos textos. Preparar um texto é um trabalho que exige esforço, é dar à luz a novas ideias, portanto, necessita de envolvimento(23). Assim, a motivação é um fator sempre a ser considerado na análise de produções textuais, em particular, de adolescentes.

Comparação entre as escolas

A caracterização individualizada do desempenho dos estudantes das escolas pública e privada foi imprescindível para que os dados não fornecessem valores infiéis para a amostra dos alunos avaliados no âmbito geral.

A comparação entre o desempenho obtido pelos escolares das instituições pública e particular apontou diferença significativa em todos os aspectos avaliados (Tabela 6), com melhor desempenho dos alunos da instituição privada. O tamanho de efeito (d) apontou que a implicação de se estar na escola privada é grande em relação ao de se estar na pública na maioria dos aspectos avaliados, sendo esse efeito médio apenas para domínio da norma culta e capacidade de estruturação gramatical e lexical. Explorando a diferença de qualidade de ensino entre rede privada e pública na primeira fase do ensino fundamental, França e Gonçalves(24)encontraram resultados que indicaram uma diferença média entre as duas redes de 0,9 desvios padrão, além de uma diferença crescente segundo o nível socioeconômico da família do aluno e os salários médios pagos aos professores.

Os principais instrumentos de avaliação da qualidade do ensino no Brasil - Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP) - demonstram que existe uma enorme diferença entre ensino público e privado em todos os Estados(25). A distância entre as pontuações obtidas pelos estudantes das duas redes cresceu nas avaliações de 2003, 2009 e 2012, de acordo com o Programme for International Student Assessment (Pisa). Caímos no ranking internacional em todas as áreas em relação ao último Pisa, de 2009: de 57º para 58º lugar em matemática, de 53º para 59º em ciências e de 53º para 55º em linguagem(26). Mais do que pontuações diferentes, os números indicam níveis de conhecimento distintos em leitura, matemática e ciência. Ao completarem 15 anos, os alunos das escolas particulares conseguem ler um texto e extrair sua ideia principal, identificando argumentos contraditórios. Estudantes da rede pública só entendem informações explícitas e não são capazes de perceber trechos mais importantes em uma leitura. Há exceções nesta comparação, mas elas são um conjunto pequeno de ilhas de excelência.

Muitos fatores podem ser aqui sugeridos para essa diferença, como número de alunos em sala de aula, material inadequado, estrutura física e condições de trabalho dos professores(27). Não é objetivo deste estudo, neste momento, discutir tais fatores, mas apontar que em qualquer avaliação de habilidades de escrita o tipo de escola é uma variável que deve ser considerada.

Os 160 estudantes avaliados não traduzem o desempenho dos escolares brasileiros, mas fornecem uma amostra do comportamento deles diante da tarefa de produzir textos. O trabalho com a elaboração de textos é ainda um desafio em sala de aula, maior desafio ainda é aferir esse trabalho considerando a diversidade cultural e social do país, sendo que uma das limitações deste estudo foi não ter efetuado uma análise de produções textuais de diversas Regiões do país.

CONCLUSÃO

A maioria das crianças da escola privada apresenta consolidação das habilidades avaliadas nos diferentes anos, já na escola pública a maioria dos escolares as consolida a partir do 6º ano. O desempenho dos escolares da escola privada é superior aos da pública em todos os anos pesquisados, com diferença significativa. Há uma tendência de evolução no desempenho geral dos escolares do 4º ao 6º ano da escola pública, já na escola privada o desempenho geral é semelhante nos diferentes anos.

As características observadas na produção textual dos escolares sem dificuldades de aprendizagem podem servir de parâmetro para a análise de redações de crianças com queixa de aprendizagem no ambiente clínico e indicar fatores que possam ser revistos e melhorados quanto à metodologia de ensino para produção de textos no ensino público visando uma educação de qualidade.

REFERÊNCIAS

Geraldi JW. Da redação à produção de textos. In: Chiappini L, organizador. Aprender e ensinar com textos. São Paulo: Cortez; 1997. p. 17-24.
Rodrigues MAN, Silva RCMP. Análise das condições de produção de escrita no ensino médio. Linguasagem. 2010;13:1-11.
Graham S, Schwartz S, MacArthur C. Effects of goal setting and procedural facilitation on the revising behavior and writing performance of students with writing and learning problems. J Educ Psychol. 1995;87(2):230-40.
Gersten R, Baker S. Teaching expressive writing to students with learning disabilities: a meta-analysis . Elementary School Journal. 2001;101(3):251-72.
Silva AC. O impacto da revisão na qualidade de composições de crianças do 4º ano de escolaridade. Psicol Reflex Crit. 2013;26(1):177-83.
Carvalho CAF, Ávila CRB, Chiari BM. Níveis de compreensão de leitura em escolares. Pró-Fono R Atual Cient. 2009;21(3):207-12.
Kida ASB, Chiari BM, Ávila CRB. Escala de leitura proposta de avaliação das competências leitoras. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2010;15(4):546-53.
Capellini SA, Oliveira AM, Cuetos F. PROLEC: Provas de avaliação dos processos de leitura. . 2ª edição São Paulo: Casa do Psicólogo; 2012.
Dellisa PRR, Navas ALGP. Avaliação do desempenho de leitura em estudantes do 3º ao 7º anos, com diferentes tipos de texto. CoDAS. 2013;25(4):342-50.
Salles JF, Parente MAMP. Avaliação da leitura e escrita de palavras em crianças de 2ª série abordagem neuropsicológica cognitiva. Psicol Reflex Crit. 2007;20(2):220-8.
Pietri E. Ensino da escrita na escola processos e rupturas. Cadernos de Educação. 2010;37:133-60.
Suassuna L, Bezerra MB. Avaliação da produção escrita e desenvolvimento de sequências didáticas. Est Aval Educ. 2010;21(47):611-28.
Santos LW, Riche RC, Teixeira CS. Análise e produção de textos. São Paulo: Contexto; 2012.
Forte LK, Scarpa ML, Kubota, RS. Apet - Análise da produção escrita de textos. . 1ª edição São José dos Campos: Pulso Editorial; 2014.
Stein LM. Teste de Desempenho Escolar manual para aplicação e interpretação. . 1ª edição São Paulo: Casa do Psicólogo; 1994.
Marcushi LA. Gêneros textuais: definição e funcionalidade . In: Dionísio AP, Machado AR, Bezerra MA, organizadores. Gêneros textuais e ensino. 3ª edição. Rio de Janeiro: Lucerna; 2003. p. 19-36.
Cohen, J. Statistical Power Analysis for the Behavioral Sciences. 2nd edition. Hillsdale: Lawrence Erlbaum; 1988.
Cinel NCB. Disgrafia - prováveis causas dos distúrbios e estratégias para a correção da escrita. Revista do Professor. 2003;19(74):19-25.
Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. MEC/SEF; 1998. 126 p.
Garcia OM. Comunicação em prosa moderna: aprenda a escrever aprendendo a pensar. 27ª edição. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas; 2010. 548 p.
Koch IGV. A Coesão textual. 22ª edição. São Paulo: Contexto; 2012.
Macedo L. O construtivismo e sua função educacional. Educação & Realidade. 1993;18(1):25-31.
Herrera AS. Produção textual no ensino fundamental e médio: da motivação à avaliação [dissertação]. Maringá: Universidade Estadual de Maringá - Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada; 2000.
França MTA, Gonçalves FO. Provisão pública e privada de Educação fundamentais diferenças de qualidade medidas por meio de escore de propensão. Econ Apl. 2010;14(4):373-90.
Brasil. Câmara dos Deputados. Grupo de trabalho alfabetização infantil: os novos caminhos - relatório final. 2ª edição; 2007. 180 p.
INEP. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira [Internet]. Pisa. [cited 2014 Jun 3]. Available from: http://portal.inep.gov.br/pisa-programa-internacional-de-avaliacao-de-alunos
Machado NJ. Qualidade da educação: cinco lembretes e uma lembrança . Estudos Avançados. 2007;21(61):277-94.